Da extinção da obrigação alimentar entre cônjuges e companheiros
Os precedentes refletem a evolução da obrigação alimentar entre cônjuges e companheiros, ao longo dos últimos anos no Brasil, notadamente no que tange à substituição do binômio tradicional necessidade/possibilidade pelo trinômio contemporâneo da necessidade/possibilidade/proporcionalidade.
segunda-feira, 24 de julho de 2017
Atualizado em 21 de julho de 2017 07:40
O STJ decidiu, recentemente, em mais um Recurso Especial, tendo por objeto demanda de exoneração de alimentos, que deve ser extinta a "obrigação alimentar quando a alimentada for pessoa saudável, com condições de exercer sua profissão e tiver recebido a pensão alimentícia por tempo suficiente para que pudesse se restabelecer e seguir a vida sem o apoio financeiro da ex-cônjuge". Isso aconteceu no julgamento do REsp 1.531.920 - DF relatado pela ministra Nancy Andrighi1. A mesma 3ª Turma do STJ já havia decidido, em fevereiro deste ano, que "os alimentos devidos entre ex-cônjuges devem ser fixados por prazo certo, suficiente para, levando-se em conta as condições próprias do alimentado, permitir-lhe uma potencial inserção no mercado de trabalho em igualdade de condições com o alimentante2."
Os precedentes refletem a evolução da obrigação alimentar entre cônjuges e companheiros, ao longo dos últimos anos no Brasil, notadamente no que tange à substituição do binômio tradicional necessidade/possibilidade pelo trinômio contemporâneo da necessidade/possibilidade/proporcionalidade, e que trouxe aos alimentos devidos entre ex-cônjuges e ex-companheiros o conceito de excepcionalidade, que repudia a anacrônica presunção de que aquele que recebe os alimentos possa permanecer inerte - quando tenha capacidade laboral, deixando ao outro a perene obrigação de sustentá-lo.
O dever de assistência material, que se converte em obrigação alimentar quando da dissolução do vínculo, não se presta como supedâneo de "aposentadoria" ao cônjuge ou companheiro que se mantém omisso e que não procura, por seu próprio esforço, obter os meios necessários à sobrevivência, sob pena de enriquecimento sem causa.
Por outro lado, o Princípio Constitucional da Solidariedade, que se manifesta de forma muito expressiva nas relações de família, não pode fundamentar qualquer pretensão de se manterem os deveres conjugais e convivenciais, especialmente o da assistência material, de forma permanente, definitiva ou vitalícia, depois de rompida a convivência, de modo a que um ex-cônjuge ou companheiro se torne eternamente devedor do outro, pouco importando o tempo decorrido desde o divórcio ou a dissolução da união estável.
A jurisprudência consolidada no âmbito do STJ mostra-se consentânea com a nova realidade de isonomia entre os parceiros conjugais e aponta para um norte muito claro de extinção dos alimentos devidos entre ex-cônjuges, que só devem ser fixados em situações muito excepcionais, quando um dos cônjuges encontra-se impossibilitado de trabalhar e, simultaneamente, não possua outra fonte de renda. Verificada tal situação, os alimentos podem ser expressamente fixados com lastro na incapacidade laboral permanente ou na impossibilidade prática de inserção no mercado de trabalho.
Acrescente-se que, mesmo nesses casos, a obrigação de sustento, decorrente do princípio da solidariedade, deve ser direcionada preferencialmente aos parentes, especialmente aos filhos maiores e capazes, quando os houver, e não ao ex-cônjuge ou ex-companheiro, em relação aos quais já foram rompidos todos os laços de afetividade que poderiam justificar a continuidade da prestação de assistência material3.
Entretanto, não se pode negar que esse novo momento da jurisprudência brasileira tem causado situações de perplexidade, como nos casos em que pessoas, há muitos anos em situação de dependência dos alimentos, são surpreendidas com a cessação do pagamento, sem qualquer período de transição. Nem mesmo a idade de quem recebe os alimentos tem sido determinante para manutenção da obrigação alimentar. Em um julgamento paradigmático, o STJ determinou a exoneração da obrigação alimentar que perdurava por mais de 18 (dezoito) anos, cuja alimentanda contava com 60 (sessenta) anos quando do julgamento do recurso4.
Em outros casos, pessoas que se divorciam ou dissolvem uma união estável após décadas de convivência e estando, por idêntico período, fora do mercado de trabalho, recebem alimentos transitórios, limitados a períodos muito curtos, o que se mostra absolutamente insuficiente para uma apropriada reinserção no mercado, especialmente em um país com tamanhas distorções, como sói acontecer no Brasil.
No caso ora comentado, a sentença de primeiro grau havia fixado pensão alimentícia para a autora no percentual de 10% sobre a remuneração da parte ré, pelo período de 3 (três) anos. Decorrido menos de um ano e meio, o STJ assentou que a demandante não deveria continuar a receber a verba alimentícia, por se tratar de "pessoa aparentemente jovem, que não sofre de nenhum problema que a incapacite para o trabalho e tenha curso técnico de enfermagem".
A decisão é coerente com a opção que vem sendo trilhada pelo Tribunal da Cidadania, mas, no caso concreto, o tempo de transitoriedade dos alimentos (pouco mais de um ano) talvez não tenha sido o bastante para assegurar a tão sonhada inserção no mercado de trabalho em igualdade de condições com o alimentante.
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1 PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE RECONHECIMENTO E DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO.
OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU OBSCURIDADE. NÃO OCORRÊNCIA. ALIMENTOS DEVIDOS AO EX-CÔNJUGE. PEDIDO DE EXONERAÇÃO. POSSIBILIDADE. 1. Ausentes os vícios do art. 535 do CPC/73, rejeitam-se os embargos de declaração. 2. Os alimentos devidos entre ex-cônjuges devem ser fixados por prazo certo, suficiente para, levando-se em conta as condições próprias do alimentado, permitir-lhe uma potencial inserção no mercado de trabalho em igualdade de condições com o alimentante. 3. Particularmente, impõe-se a exoneração da obrigação alimentar tendo em vista que a alimentada tem condições de exercer sua profissão e recebeu pensão alimentícia por um ano e seis meses, tempo esse suficiente e além do razoável para que ela pudesse se restabelecer e seguir a vida sem o apoio financeiro da ex-cônjuge. 4. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, não provido. (REsp 1531920/DF, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 04/04/2017, DJe 11/04/2017)
2 CIVIL E PROCESSO CIVIL. ALIMENTOS DEVIDOS AO EX-CÔNJUGE. PEDIDO DE EXONERAÇÃO. POSSIBILIDADE. 1. Cinge-se a controvérsia a determinar se o recorrente deve ser exonerado da pensão paga a sua ex-cônjuge, desde a época da separação, ocorrida há quase dez anos, tendo em vista que a recorrida exerce já tinha formação profissional à época da separação. 2. Os alimentos devidos entre ex-cônjuges devem ser fixados por prazo certo, suficiente para, levando-se em conta as condições próprias do alimentado, permitir-lhe uma potencial inserção no mercado de trabalho em igualdade de condições com o alimentante. 3. Particularmente, impõe-se a exoneração da obrigação alimentar tendo em vista que a alimentada tem condições de exercer sua profissão, tem uma fonte de renda e recebeu pensão alimentícia por nove anos, tempo esse suficiente e além do razoável para que ela pudesse se restabelecer e seguir a vida sem o apoio financeiro do ex-cônjuge. 4. Recurso especial conhecido e provido.(REsp 1616889/RJ, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 13/12/2016, DJe 01/02/2017)
3 Nesse sentido já decidiu o Tribunal d Justiça de São Paulo: REVISIONAL DE ALIMENTOS. ex-conjuge. BINÔMIO POSSIBILIDADE/NECESSIDADE. Insurgência contra sentença que julgou improcedentes pedidos da ação revisional de alimentos movida pela alimentanda, ex-cônjuge do alimentante. Não acolhimento. Sentença mantida por seus próprios fundamentos. Art. 252, RITJSP. Análise diferenciada dos alimentos à ex-cônjuge. Inexistência de dever de assistência mútua prevista no art. 1.694, CC. Ausência de parentesco. Necessidade que não se presume. Manutenção da pensão sem majoração. Autora possuidora de bens de considerável valor decorrente da partilha de bens do casal. Ausência de modificação da necessidade que justifique majoração da pensão destinada a ela. Auxílio financeiro complementar deve ser requerido aos que têm primordial obrigação legal para tanto: os filhos e parentes mais próximos (art. 1.694 e 1.699, CC). Sentença mantida. Recurso desprovido. (TJSP - 8ª Cam. Civ. - Ap. n.º 0007455- 35.2013.8.26.0010. 15/09/2015) (grifos nossos)
4 CIVIL E PROCESSO CIVIL. ALIMENTOS DEVIDOS AO EX-CÔNJUGE. PEDIDO DE EXONERAÇÃO. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. INEXISTÊNCIA.VIOLAÇÃO DE DISPOSITIVO CONSTITUCIONAL. DESCABIMENTO. (...)2. Cinge-se a controvérsia a determinar se o recorrente deve ser exonerado da pensão paga a sua ex-cônjuge, desde a época da separação, ocorrida há mais de 18 anos, tendo em vista que a recorrida encontra-se vivendo e trabalhando no exterior.(...) 5. Os alimentos devidos entre ex-cônjuges não podem servir de fomento ao ócio ou ao enriquecimento sem causa. Por isso, quando fixados sem prazo determinado, a análise da pretensão do devedor de se exonerar da obrigação não se restringe à prova da alteração do binômio necessidade-possibilidade, mas deve agregar e ponderar outras circunstâncias, como a capacidade potencial do alimentado para o trabalho e o tempo decorrido entre o início da prestação alimentícia e a data do pedido de desoneração. 6. Particularmente, impõe-se a exoneração da obrigação alimentar tendo em vista que a alimentada está trabalhando, embora tenha afirmado que o valor recebido em contrapartida é insuficiente à própria manutenção, sendo, ademais, relevante o fato de que a obrigação de prestar alimentos, correspondentes a doze salários mínimos, subsiste há mais de dezoito anos, tempo esse suficiente e além do razoável para que ela pudesse se restabelecer e seguir a vida sem o apoio financeiro do ex-cônjuge. 7. Recurso especial conhecido e provido.(REsp 1396957/PR, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 03/06/2014, DJe 20/06/2014)
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*Mário Luiz Delgado é advogado do escritório MLD - Mário Luiz Delgado Advogados. Doutor pela USP. Mestre pela PUC/SP. Professor. Diretor de Assuntos Legislativos do IASP. Presidente da Comissão de Assuntos Legislativos do IBDFAM.