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Sentença do juiz Moro no caso do ex-presidente

Pão e circo, é isso que ofereceram e estão a oferecer à sociedade, e sem que vozes mais fortes se rebelem contra isso, inclusive a imprensa, que transmite o espetáculo.

terça-feira, 18 de julho de 2017

Atualizado às 09:44

Migalhas usou como epígrafe de seus comentários à sentença que condenou Lula à prisão a seguinte frase de Millôr Fernandes:

"Em política nada se perde e nada se transforma - tudo se corrompe."

Uso-a, agora para refazê-la:

"Em direito nada se perde e nada se transforma - tudo se esvai."

Explico-me, então.

Acompanho o caso e suas ramificações desde o início e o que me assombra foi que o comportamento de todos os operadores do Direito diretamente envolvidos, MP, magistrados de todos os níveis e advogados foi, antes de uma atuação profissional, uma atuação midiática, um desfilar de egos, encenações para a plateia, descompostura, arrogância etc. O Direito, de fato, parece ter ficado de fora nas peças acusatórias, nas peças de defesa, nas audiências, despachos e decisões.

O resultado é, em boa dose, esse que Migalhas aponta hoje, embora não concorde com boa parte do que foi dito: a sentença exarada que parece mais uma Carta aos Meus do que uma decisão judicial.

Outro resultado é a possibilidade de que decisões tomadas no curso de ações que tramitam com tantos desvios sejam revistas radicalmente e, na medida em que o jogo de cena existiu para criar expectativas sociais, tais expectativas sejam frustradas levando à maior perda de credibilidade do Judiciário, que já não é grande. Os atores desse filme são os responsáveis por isso, todos eles, MP, magistrados e advogados, pois optaram por tirar o conteúdo em si do Direito para tornar os casos um drama, seja pela vitimização dos réus ou pela demonização dos réus (quantos livros serão gerados, quantos direitos autorais serão ganhos...).

Pão e circo, é isso que ofereceram e estão a oferecer à sociedade, e sem que vozes mais fortes se rebelem contra isso, inclusive a imprensa, que transmite o espetáculo.

Nesse processo todo o que mais está a chamar minha atenção é a incapacidade de se entender que o crime nem sempre pode ser provado de modo absoluto, com provas irrefutáveis. O ilícito criminal decorre de uma conduta que possa, de modo plausivelmente caracterizado, ser considerada como inscrita nos tipos penais pelo concurso de inúmeras circunstâncias, devendo ser punível pelos danosos efeitos sociais que gera. A punição criminal, portanto, reflete uma visão social que não admite a conduta ilícita, uma vez socialmente prejudicial, daí exija maior flexibilidade para apuração (vide lei 2848/40, art.155), o que, de fato, impõe maior rigor à acusação.
Sistemas jurídicos são de difícil comparação, porém vale aqui buscar no sistema jurídico norte-americano pontos que ajudem na reflexão daquilo que foi comentado acima.

Pelo sistema norte-americano (e aqui vamos usar a instituição do júri popular, que lá é de uso mais amplo e para uma gama maior de casos) o júri é composto por um número sempre par de membros e que decidem por unanimidade. Qual a razão para isto? O júri, ao ser a sociedade encarnada como Poder Judiciário, deve emitir opiniões que representem ter sido ela, sociedade, convencida sobre aquilo que está em discussão e sobre o que devem decidir (daí porque ninguém é culpado até que seja condenado).

Cabe à promotoria, então, convencer os jurados, a partir das evidências (TODAS AS ADMISSÍVEIS E LEGALMENTE OBTIDAS) de que o réu se conduziu de modo a ser enquadrável, acima de dúvida razoável, como infrator da Lei e, portanto, devendo ser punido. À defesa cabe buscar demonstrar a inocência pela desconstrução argumentativa e fática de modo a indicar que as evidências não permitem a formação de convencimento razoável que leve à condenação. É esta a chave: acusação e defesa lutam para convencer a existência, ou não, de dúvida razoável e, no caso da acusação convencimento além da dúvida razoável ( "beyond reasonable doubt" ).

Se é dúvida além do razoável isso implica que para aquele Direito não é absolutamente necessário que a conduta seja tida como ilícita porque não há prova documental (provar a "propriedade" do tríplex); que os depoimentos de testemunhas e declarações obtidas mediante colaborações premiadas sejam consideradas como de baixo valor etc. O que o júri precisa decidir é que, pelo conjunto probatório legitimamente gerado, está ele convencido que a conduta requeira punição além de dúvida razoável ou, caso isso não ocorra, levando à absolvição1 , pois é a convicção social que exige a punição ou a absolvição, numa decisão unânime, ao contrário, por exemplo, do Direito brasileiro onde absolvição e condenação podem ocorrer por maioria simples de jurados (no caso 4 x 3, pois a composição do júri no Brasil é de sete membros).

Também chama minha atenção a dificuldade quanto à percepção do que seja a colaboração premiada e seus efeitos sociais, isto é, ser ela elemento probatório legítimo a ser usado. Talvez essa dificuldade decorra do fato de ser o instituto de recente aplicação e ter prática incipiente, além de atípica no Direito brasileiro tradicional. Pode ser, igualmente, que decorra da percepção de que faltou dosimetria na sua aplicação em determinados casos, algo que é natural para um sistema que se inicia. Fato é que, a colaboração premiada gera evidência válida.

Penso também ser curioso o fato de que se pretenda admitir, como natural ou sem maiores implicações, que agentes públicos possam ser agraciados com benesses vindas de setores privados sem que se faça um juízo valorativo minimamente crítico da conveniência seja da mera possibilidade da oferta da benesse, como da sua aceitação (por exemplo: Ministro do Supremo viajar em avião particular de empresário, seja a lazer ou eventualmente no exercício de função; funcionário público receber, de brinde, uma caixa de vinhos franceses de alto valor; agente ou ex-agente público frequentar com habitualidade imóvel de lazer, usando-o como se fosse seu [não é proprietário e nem possuidor na acepção estrita da palavra]; comparecer a edifício em construção na companhia de executivos de empreiteira e discutir sobre reformas e benfeitorias em determinada unidade2). A ausência dessa valoração ou a verificação da existência de situações que indiquem que esse jogo de possível oferta x possível aceitação ou não esteja ocorrendo (durante o exercício da função ou imediatamente após ela) são provas indiciárias e que não se precisam ser comprovadas por documentos, mas a partir de condutas descritas (por confissão ou depoimento pessoal). Para isto há até provérbio histórico: "À mulher de César não basta ser honesta, tem de parecer honesta".

Finalizo, então, com uma referência ao inciso XXXIX da Constituição Federal:


XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;

[...] e ao Título II do Código Penal (lei 2848/40), em particular ao seu art. 13:

Art. 13 - O resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido. (Redação dada pela lei 7.209, de 11/7/84)

para indicar que não há, exceto por construção histórica e questionável, no Direito brasileiro, a previsão de que a conduta criminal exija prova absoluta e incontrastável, pois o que existe, é que será crime aquilo que a Lei definir como tipo e, neste caso, o ato criminal será a resultante de um conduta que um agente certo, por ação ou omissão causar, sendo que a prova, em Direito é ampla e a base do convencimento (lei 2848/40 arts. 150 a 157).

Tudo isto, porém, foi eclipsado pela atuação midiática dos operadores de Direito diretamente envolvidos, em desfavor do Direito, que como comentei, se esvai.

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1 Não se entra, aqui, na discussão de que a conduta possa levar, num mesmo processo, a múltiplos
enquadramentos, cada qual exigindo deliberações específicas do júri, o que pode resultar que o réu, pela
primeira acusação seja considerado absolvido; na segunda absolvido; mas na terceira condenado.

2 Aqui faço uma outra observação: (a) é impressionante a tranquilidade que se admite que despesas
particulares de autoridades públicas (na ativa ou não) sejam arcadas por instituições da qual participem
(instituições sem fins lucrativos ou afins) e que são financiadas por agentes privados que mantém contínuas
relações institucionais com o setor públicos, ainda que sob a forma de pagamento por palestras proferidas;
e (b) também é impressionante perceber que não se ache estranho que proferir palestras em eventos privado, isto é, ocorrendo fora de instituições de ensino, sem implicações de formação educacional, recebendo-se
por isso alta remuneração (mesmo que tais receitas sejam doadas), sendo essas palestras privadas
chanceladas como exercício de magistério!

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*José André Beretta Filho é advogado.



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