Recall presidencial: temos maturidade política para isso?
Neste momento em que há pouco mais de um ano cassou-se o mandato presidencial, e surge novo escândalo capaz de abalar o atual presidente da República, não parece mais do que um casuísmo mal disfarçado discutir-se isoladamente a implantação de um instituto de natureza política de tamanha importância.
sexta-feira, 30 de junho de 2017
Atualizado às 09:40
Recentemente foi aprovado na CCJ do Senado a proposta de emenda à Constituição (PEC), mediante a qual se pretende implantar no Brasil o instituto denominado "recall" presidencial, que consiste na possibilidade do povo ser chamado a decidir se o presidente da República eleito deve ou não permanecer no cargo.
A palavra recall, de origem inglesa, significa, em linhas gerais, um "chamamento de volta", e é muito conhecida na indústria automobilística, quando uma montadora faz um chamamento aos compradores de veículos para verificação ou troca de algum componente que não se comporta dentro dos padrões técnicos exigidos.
Na prática, no campo político, o recall pode ser definido como uma revogação de mandato.
Em tempos de crise não é raro surgirem propostas mirabolantes. Será esse o caso?
Considero mais apropriado que nossos legisladores fizessem primeiro uma profunda reforma político-eleitoral, acompanhada de uma ampla e eficiente reforma do ensino, em todos os níveis, para possibilitar, enfim, um crescimento da cidadania, para diminuirmos a grande quantidade de brasileiros analfabetos políticos1.
A legislação eleitoral é uma verdadeira colcha de retalhos. O Código Eleitoral, por exemplo, que é de 1965, encontra-se fatiado (e invalidado) em vários aspectos, principalmente por conta do advento da Constituição de 1988, existindo, ademais, uma lei de eleições, outra sobre inelegibilidades, outra, ainda, sobre partidos políticos, além das infindáveis resoluções editadas pelo TSE, com força de lei.
Há hoje, na verdade, um emaranhado confuso de normas.
Penso que há tempos faz falta uma nova codificação (ou consolidação, pelo menos) do sistema político-eleitoral brasileiro, até mesmo para evitar a indesejável insegurança jurídica, decorrente do ativismo judicial do TSE, que surge para, em tese, preencher e suprir um pouco essa ausência de uniformização e sistematização.
E o que o recall tem a ver com isso?
Ocorre que, neste momento em que há pouco mais de um ano cassou-se o mandato presidencial, e surge novo escândalo capaz de abalar o atual presidente da República, não parece mais do que um casuísmo mal disfarçado discutir-se isoladamente a implantação de um instituto de natureza política de tamanha importância.
Não se trata de posicionar-me contra ou a favor, mas de reconhecer que, talvez, não seja o momento mais apropriado para tal tipo de discussão isolada, especialmente porque ainda temos muitos outros temas importantes que devem, segundo penso, anteceder tal assunto, como a manutenção da obrigatoriedade do voto, a lista fechada de candidatos, a forma de financiamento de campanhas eleitorais, dentre tantas matérias igualmente relevantes para o Estado de Direito Democrático.
Numa sociedade em que faltam os mais básicos direitos do cidadão, em que se discute o combate ao ainda crescente fenômeno denominado "caixa-2" de campanha eleitoral, além de extensa lista de formas de corrupção eleitoral e abuso de poder, por exemplo, não parece existir a necessária maturidade do eleitor para revogar o mandato de um presidente da República, pois, mantido o atual quadro de corrupção e cooptação ilegais (de eleitor, de candidatos, de partidos, etc.) não seria difícil imaginar uma expressiva e odiosa manipulação da população para afastar o mandatário maior da nação, apenas por vontade do grupo político adversário, para citar uma só hipótese.
Em resumo, parece-me apressada e inadequada, neste momento histórico, a pretendida implantação de recall presidencial, sem uma anterior e profunda mudança de cultura, que englobe formação (e reforma) educacional ampla, contemplando matérias como filosofia, cidadania, teoria política e do Estado, dentre outras correlatas, que promovam a libertação cívica do povo, para que, de posse de um discernimento e amadurecimento, que ainda não tem, possa decidir livremente, inclusive neste importante campo.
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1 Bertold Brecht.
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*Gisele Nascimento é advogada, sócia do escritório Alves, Barbosa e Nascimento Advogados Associados. Especialista em Direito Civil e Processo Civil e pós-graduanda em Direito do Consumidor. Membro da Comissão de Defesa da Mulher OAB/MT.