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A proibição de preços diferenciados para homens e mulheres na União Europeia e a lei brasileira

A partir da observação da experiência da União Europeia, que possui um dos sistemas de defesa do consumidor mais avançados do mundo, é possível extrair algumas lições também para o direito e o povo brasileiros.

quinta-feira, 22 de junho de 2017

Atualizado em 21 de junho de 2017 10:12

A União Europeia destaca-se como uma organização internacional bastante peculiar. Isso porque ela atende não apenas aos requisitos de uma organização internacional constituída basicamente por um tratado entre Estados (com personalidade jurídica própria, objetivos, órgãos, sede etc.), mas também aos requisitos de uma organização supranacional. As normas por ela concebidas vinculam, jurídica e diretamente, os residentes nos Estados-membros sem necessidade de um ato específico do legislador nacional que transforme e incorpore esse direito ao direito interno de cada um deles.1 Trata-se de organização inovadora e pioneira que, nas palavras de Jean Monnet, não possui um fim em si mesma, "é um processo de transformação que continua o de que nossas formas de vida nacionais provieram no decorrer de uma fase anterior da História. [...] As nações soberanas do passado não são mais o quadro em que podem resolver os problemas do presente."2

A União Europeia é precursora em diversos sentidos, inclusive em termos de proteção dos seus consumidores. A Diretiva 2004/113/CE do Conselho União Europeia, aprovada em 13 de dezembro de 2004, aplica o princípio de igualdade de tratamento entre homens e mulheres no acesso a bens e serviços e seu fornecimento. Adotada por unanimidade pelo Conselho de Ministros da União Europeia, a Diretiva proíbe a discriminação direta e indireta em razão do sexo, estabelecendo que as diferenças de tratamento só podem ser aceitas se forem justificadas por um objetivo legítimo e desde que os meios utilizados para alcança-lo sejam adequados e necessários.
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Uma das exceções à proibição de diferenciação de preços por sexo existia, por exemplo, no contrato de seguro. No entanto, em março de 2011 o Tribunal de Justiça da União Europeia declarou inválida a previsão que permitia aos Estados Membros manter uma distinção entre homens e mulheres para efeitos de prêmios e de benefícios individuais nesses contratos. Nos termos do acórdão, as seguradoras que atuam na União Europeia não podem usar o gênero como um fator de risco determinante para justificar diferenças nos preços dos prêmios. Admite-se apenas que os valores pagos por condutores prudentes, homens ou mulheres, diminuam com o tempo em função do seu comportamento ao volante. Antes da proibição, um jovem condutor do sexo masculino que seja prudente pagaria mais pelo seguro automóvel somente pelo fato de ser homem.
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Desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) é assegurado o direito à não discriminação por qualquer condição humana: "Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.5"

Do mesmo modo, o art. 1ª da Convenção Americana de Direitos Humanos veta qualquer tipo de discriminação à pessoa ao dispor que os Estados-partes comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma, por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social.6

Jorge Cesa Ferreira da Silva sustenta que as normas antidiscriminatórias fundamentam-se "na proteção do indivíduo frente a atos de injusta diferenciação". Logo, trata-se de "consequência do princípio da igualdade e da proteção à dignidade humana". Outro fundamento reside na circunstância de que a discriminação "é um fenômeno vinculado à compreensão - difundida socialmente por meio de preconceitos, ainda que de forma não expressa - segundo a qual determinados grupos são inferiores em relação a outros". Neste contexto busca-se a cessação da "hierarquia social, garantindo a igualdade de chances".7

O Brasil, no entanto, ainda engatinha na percepção dos efeitos da discriminação no mercado de consumo, o que constitui um dos grandes desafios a serem vencidos no futuro. Embora a
Constituição vede qualquer forma de discriminação (art. 3o, IV; 5o, XLI; 227, dentre outros da CF/1988), o tratamento discriminatório ainda é recorrente. A diferenciação de preços de entradas em casas de shows para homens e mulheres é um dos vários exemplos de práticas discriminatórias.8 Vale lembrar que o decreto 5.903/06, que regulamenta a lei 10.962, de 11 de outubro de 2004 e a lei 8.078, de 11 de setembro de 1990, estabelece que: "art. 9o Configuram infrações ao direito básico do consumidor à informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, sujeitando o infrator às penalidades previstas na lei 8.078, de 1990, as seguintes condutas: [...] VII - atribuir preços distintos para o mesmo item."

A habitualidade de algumas práticas abusivas faz com que a ilegalidade passe despercebida no dia-a-dia do consumidor brasileiro. Os avanços observados no âmbito do Direito da União Europeia são fonte de inspiração também para o ordenamento jurídico pátrio. Os temas lá debatidos logo tornam-se latentes no nosso território, o que motiva a sua análise aprofundada: a partir da observação experiência da União Europeia, que possui um dos sistemas de defesa do consumidor mais avançados do mundo, é possível extrair algumas lições também para o direito e o povo brasileiros.

Válida, aqui, a lição de Edgard Morin, de que devemos "desconfiar de nossas confianças, sem, por isso, confiar em nossas desconfianças."9 É preciso, com prudência, colocar à prova as nossas convicções em cada oportunidade, como ele diz, "saber ver" e "saber pensar."

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1. RECHSTEINER, Beat Walter. Direito Internacional Privado: teoria e prática. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 70-71.

2. MONNET, Jean. Memórias: a construção da unidade europeia (1976). Tradução: Ana Maria Falcão. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1986. p. 460-461.

3. UNIÃO EUROPEIA. Diretiva 2004/113/CE do Conselho, de 13 de Dezembro de 2004, que aplica o princípio de igualdade de tratamento entre homens e mulheres no acesso a bens e serviços e seu fornecimento. Disponível em: (
Clique aqui). Acesso em: 16 jun. 2017.

4. O acórdão conclui expressamente: "O artigo 5.°, n.° 2, da Directiva 2004/113/CE do Conselho, de 13 de Dezembro de 2004, que aplica o princípio de igualdade de tratamento entre homens e mulheres no acesso a bens e serviços e seu fornecimento, é inválido, com efeitos a 21 de Dezembro de 2012." Trata-se do artigo que permitia diferenciações proporcionadas nos prémios e benefícios individuais "sempre que a consideração do sexo seja um factor determinante na avaliação de risco com base em dados actuariais e estatísticos relevantes e rigorosos." (UNIÃO EUROPEIA. Tribunal de Justiça Europeu. Processo C-236/09. Disponível em: (
Clique aqui). Acesso em: 16 jun.2017.) Veja mais sobre esse tema em: UNIÃO EUROPEIA. Comissão Europeia. Comunicado de imprensa de 20 de dezembro de 2012. Disponível em: (Clique aqui). Acesso em: 16 jun. 2017. E (Clique aqui). Acesso em: 16 jun. 2017.

5. NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos (The Universal Declaration of Human Rights). Veja mais em: DOTTI, René. Declaração Universal dos Direitos do Homem. 3. ed. Curitiba: Lex Editora, 2006.

7. BRASIL. Decreto 678, de 6 de novembro de 1992. Promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969.

8. SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. A proteção contra discriminação no direito contratual brasileiro. In: MONTEIRO, Antônio Pinto; NEUNER, Jörg; SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais e direito privado. Coimbra: Edições Almedina S/A. 2007, p. 394-396.

9. BERGSTEIN, Laís Gomes; MARQUES, Claudia Lima. Socialização de riscos e reparação integral do dano no direito civil e do consumidor no Brasil. Apresentado no VI Encontro Internacional do CONPEDI - Costa Rica, em 24 de maio de 2017.

10. MORIN, Edgar. Para sair do Século XX. Tradução: Vera de Azambuja Harvey. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p. 259-260.


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*Laís Bergstein é advogada do Escritório Professor René Dotti.







*José Roberto Trautwein
é advogado do Escritório Professor René Dotti.

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