Processo e autonomia da vontade
Há, ao longo de todo o texto do CPC/2015, uma evidente preocupação do legislador em promover mecanismos que realmente confiram uma maior eficiência ao processo.
terça-feira, 20 de junho de 2017
Atualizado às 08:09
Sob o pretexto de uma busca incessante pela adequação constitucional e maior efetividade do processo, tem-se que uma das principais mudanças instituídas pelo novo Código de Processo Civil revela-se na possibilidade dos sujeitos que integram a relação processual promoverem uma autêntica flexibilização no procedimento.
Desta feita, rompe-se com o paradigma excessivamente formalista já consolidado pelo Código Buzaid e parte-se para a adoção de uma nova concepção de processo, que por seu turno, viabilize e proporcione o alcance de resultados mais efetivos às necessidades dos principais destinatários da prestação jurisdicional, isto é, os jurisdicionados.
Tem-se que o sistema processual consiste no "instrumento" do qual o Estado dispõe para exercer a sua função jurisdicional, que possui como principal escopo justamente a dissolução dos conflitos de interesses ocorridos na sociedade.
Ocorre que o acesso a esse "instrumento", por si só, não necessariamente garante que todo e qualquer conflito será solucionado. Não basta apenas a possibilidade de se ingressar em juízo, é preciso que exista um processo eficaz, apto a proporcionar uma resposta célere e efetiva às necessidades da sociedade.
O CPC/73 previa em seu texto uma série de ritos e procedimentos especiais que poderiam vir a ser utilizados pelos jurisdicionados, a depender do caso que pretendessem conduzir à análise do Judiciário. Entretanto, não havia uma previsão sequer que contemplasse a flexibilização desses procedimentos. Isto é, todos os integrantes da relação processual estavam "enclausurados" à concepção formalista imposta pelo antigo códex.
O caput do artigo 5º da Constituição Federal de 1988, por sua vez, é expresso ao determinar a liberdade como um direito fundamental e inviolável, vejamos:
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade nos termos seguintes:
[...]
É de uma eventual "soma" do princípio do devido processo legal a esse comando constitucional que decorre o denominado princípio do respeito ao autorregramento da vontade no processo. Nesta tônica, o eminente processualista baiano Fredie Didier Jr. é catedrático ao dispor que:
Um processo que limite injustificadamente o exercício da liberdade não pode ser considerado um processo devido. Um processo jurisdicional hostil ao exercício da liberdade não é um processo devido, nos termos da Constituição Federal1.
O princípio do respeito ao autorregramento da vontade no processo também se coaduna intimamente com o sistema cooperativo/comparticiptivo estabelecido pelo novo CPC, levando em consideração a atribuição significativa de autonomia às partes que integram a relação processual. Dessa maneira, em certa equivalência ao direito privado, o processo civil também passa a ser um ambiente em que a vontade das partes possui soberania.
Outrossim, também em atenção à flagrante necessidade de simplificação do processo, o CPC/2015 revogou diversos dos ritos e procedimentos especiais instituídos pelo Código Buzaid, de maneira que passa a adotar um procedimento comum bem mais amplo que seu antecessor, contemplando a maioria das situações e, inclusive, possibilitando aos integrantes da relação processual uma verdadeira lapidação do procedimento.
Essa "onda" renovatória é inspirada diretamente no processo arbitral, que tem como principal pressuposto justamente a possibilidade de as partes compactuarem os termos nos quais a sua causa será julgada.
Uma das hipóteses do procedimento baseado nos denominados negócios jurídicos está prevista no artigo 190 do novo Código de Processo Civil, que assim estabelece:
Art. 190. Versando o processo sobre direitos que admitam autocomposição, é lícito às partes plenamente capazes estipular mudanças no procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre os seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, antes ou durante o processo.
Parágrafo único. De ofício ou a requerimento, o juiz controlará a validade das convenções previstas neste artigo, recusando-lhes aplicação somente nos casos de nulidade ou de inserção abusiva em contrato de adesão ou em que alguma parte encontre em manifesta situação de vulnerabilidade.
A partir da análise do referido dispositivo, de plano já é possível notar que o legislador optou por conferir uma autonomia considerável às partes, que até então, restavam subordinadas à natureza cogente das normas procedimentais instituídas pelo Código Buzaid.
Nesse sentido, a única previsão trazida pelo CPC/73 era a disposta no seu artigo 111, que outorgava às partes a opção de dispor contratualmente acerca do foro em que uma possível ação oriunda do contrato seria proposta.
Entretanto, é sempre importante ressaltar que os negócios jurídicos dispostos no CPC/2015, sejam eles processuais ou pré-processuais, devem sempre se limitar à aspectos procedimentais disponíveis e, ainda, que não sejam vedados expressamente por lei, já que uma eventual convenção acerca da modificação da competência absoluta, por exemplo, seria nula de pleno direito, dada a indisponibilidade dessa norma processual. Semelhante restrição também se aplica às causas que versem sobre direitos indisponíveis, tal como disposto no caput do artigo 190.
É mister ressaltar que no âmbito dos negócios jurídicos a figura do advogado se mostra como imprescindível, tendo em vista que a assessoria e consultoria jurídica são atividades privativas dessa classe profissional.
Em análise sobre o artigo 190, parágrafo único do CPC/2015, o III Fórum Permanente de Processualistas Civis, em seu enunciado 18, ratificou o entendimento acima esposado, dispondo que um possível negócio jurídico realizado pela parte sem assistência técnica-jurídica, evidenciaria indícios de vulnerabilidade, reforçando a necessidade da presença dos advogados nesses casos.
Mais adiante, no artigo 191, o novo Código de Processo Civil também oferece às partes e ao juiz, mediante comum acordo, a possibilidade da fixação de um calendário processual.
Dessa maneira, até mesmo os prazos para a prática de determinados atos processuais, como a apresentação de contestação ou réplica, realização de audiências, perícias, dentre outros, podem vir a ser objeto de deliberação entre os integrantes da relação processual, o que por si só, otimiza o andamento do processo, assegurando a sua razoável duração.
Observa-se, ainda, que a possibilidade de adequação do procedimento ao caso sob análise do Judiciário não se revela como uma faculdade restrita apenas às partes, de modo que o juiz também passa a dispor de autonomia para deliberar acerca de convenções processuais.
O § 1º do referido artigo dispõe que o calendário convencionado passa a vincular as partes e o próprio juiz, de maneira que os prazos ali fixados não podem vir a ser modificados sem prévia justificativa.
De uma análise desse dispositivo em conjunto com o artigo 200 do CPC/2015, que, por sua vez, estabelece que as declarações unilaterais ou bilaterais das partes, produzem imediatamente a constituição, modificação ou extinção de direitos processuais, é evidente a materialização do princípio do respeito ao autorregramento da vontade no processo, bem como do princípio da cooperação processual.
Além dos atos processuais passarem a ser mais previsíveis e simplificados, a fixação do calendário processual também proporciona uma economia de tempo considerável, haja vista que o §2º do artigo 191 do CPC/2015 determina que todas as intimações referentes à prática de atos ou realização de audiências dispostos no calendário deverão ser dispensadas.
Dessa forma, é certo concluir que há, ao longo de todo o texto do CPC/2015, uma evidente preocupação do legislador em promover mecanismos que realmente confiram uma maior eficiência ao processo, dada a sua indispensabilidade para a dissolução dos conflitos que são levados à análise do Judiciário todos os dias.
Por fim, se faz importante pontuar que todas essas inovações guardam íntima relação com os preceitos estabelecidos em nossa Constituição, o que reforça ainda mais a ideia de um processo civil constitucional, e, consequentemente, democrático, que de fato atende às necessidades da sociedade.
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1. DIDIER JR, Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 17. ed. Salvador: JusPodivm. 2015, p. 133
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*Matheus Levy é advogado e membro das Comissões de Jovens Advogados e de Direito do Consumidor da OAB/MA.