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Sigilo no TCU: da inconstitucionalidade à ausência de transparência

Transparência é remédio para coibir distorções e decisões desiguais, independente do espaço em que esse assunto esteja em discussão.

quinta-feira, 1 de junho de 2017

Atualizado às 08:32

O TCU é o órgão auxiliar ao Congresso nacional para o exercício da fiscalização contábil, financeira e orçamentária dos recursos federais. Em seu artigo 71, a CF estabelece as matérias de competência do TCU e no § 2º do art. 74 garante que "qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte legítima para, na forma da lei, denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o TCU".

No texto constitucional, a amplitude de partes legitimadas a fazer denúncias de irregularidades e ilegalidades perante o TCU demonstra uma vontade de transparência. São vários atores habilitados a participar de procedimentos envolvendo denúncias contra atos ilícitos em face do erário.

Apenas para reiterar, a CF afirma que essas entidades são "partes legítimas". Mas ao contrário do que indica a CF, o regimento interno do TCU, em seu artigo 146, condiciona a participação do denunciante nos autos processuais à aceitação do Ministro relator. Tal "permissão" raramente é deferida, sob argumento de sigilo processual. Vejamos o que diz a lei infraconstitucional a respeito do tema.

A lei Orgânica do TCU1, lei 8.443, de 16 de julho de 1992, em seus artigos 53, 54 e 55, copiou o comando constitucional ratificando - literalmente - que "qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte legítima para denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o TCU". Sobre a publicidade dos processos, a lei definiu no § 3º, do art. 53 que "a denúncia será apurada em caráter sigiloso, até que se comprove a sua procedência, e somente poderá ser arquivada após efetuadas as diligências pertinentes, mediante despacho fundamentado do responsável".

Esse sigilo dos autos não é permanente, já que o § 4º do mesmo artigo afirma que "reunidas as provas que indiquem a existência de irregularidade ou ilegalidade, serão públicos os demais atos do processo, assegurando-se aos acusados a oportunidade de ampla defesa". No artigo 54, a lei indica os prazos para que o Tribunal apresente certidão do processo ao denunciante e no art. 55 a norma expõe que esse mesmo denunciante só poderá ser responsabilizado em caso de comprovada má-fé.

No texto da lei Orgânica, o enunciado constitucional é ratificado no caput do artigo 53 para garantir que "qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte legítima para denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União" e em seu § 3º é afirmado que "a denúncia será apurada em caráter sigiloso, até que se comprove a sua procedência". Já no parágrafo seguinte (§ 4º), a lei estabelece que a partir de "provas que indiquem a existência de irregularidade ou ilegalidade, serão públicos os demais atos do processo".

Note-se que a norma legal não possui referência ao julgamento final da causa, mas apenas ao momento de instrução processual que fornece o "indicativo" da existência de irregularidades. Podemos declarar que a tramitação processual no TCU, pela letra da lei, possui uma fase sigilosa, em que apenas as partes poderão ter acesso aos autos, e depois uma pública em que qualquer pessoa física ou jurídica poderá ter acesso aos autos da denúncia. Esse momento da publicidade dependerá apenas de indícios de materialidade das irregularidades apontadas.

Em contrapartida, nos termos do artigo 55 da lei orgânica do TCU, a regra de publicidade, após a reunião das provas iniciais, poderá ser flexibilizada por decisão do Tribunal quando necessária à manutenção de direitos e garantias individuais, ou seja, quando o acesso aos autos puder trazer prejuízo irreparável às partes envolvidas na denúncia. O sigilo, portanto, que é a exceção, poderá ser aplicado desde que fundamentado.

Na prática não é isso que ocorre. A regra na instrução processual do TCU é que o sigilo se impõe automaticamente até a decisão final da Corte de Contas, independente de fundamentação de proteção aos direitos e garantias fundamentais dos acusados. Nenhum cidadão terá acesso aos processos do Tribunal. Porém, o caso torna-se mais grave por um aspecto: o denunciante é parte e não está sujeito ao sigilo processual.

Apresento, diante da leitura da lei, as seguintes premissas: (1) Qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte legítima para denunciar perante o TCU; (2) Sendo parte legítima, portanto, participará de todo o processo, independente da fase, seja ela sigilosa ou não; (3) Após a instrução inicial, havendo identificação de indícios de irregularidades, o processo passa ser totalmente público até a sua decisão final; (4) Em caso de ofensa à direitos e garantias individuais, o Tribunal poderá decretar o sigilo até a decisão final, o que seria uma exceção à publicidade dos atos.

A Constituição e a lei Orgânica do TCU reconhecem que "qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte legítima", mas o regimento interno do TCU afasta a norma constitucional para negar a participação dos denunciantes no acompanhamento da matéria na Corte de Contas. São impostos requisitos novos que estão ausentes na norma legal. O regimento interno não apenas dificulta a participação de pessoas físicas ou jurídicas, praticamente inviabiliza.

A lei Orgânica do TCU2 reconhece, ao menos, duas espécie de participação processual de pessoas físicas ou jurídicas e públicas ou privadas. As partes poderão ser classificadas como "Responsáveis", que seriam as pessoas físicas ou jurídicas denunciadas, e os "Interessados", que seriam pessoas físicas ou jurídicas que possuem alguma ligação direta ou indireta com os fatos analisados numa respectiva denúncia. No caso específico de denúncia/representação, o denunciado seria Responsável e o seu autor seria, obviamente, Interessado. Mas isso não corresponde à prática da Corte.

O autor de denúncia que deveria ser, automaticamente, considerado "Interessado" porque se predispôs a fazer a narrativa fática que deu origem à investigação do TCU, precisa fazer um requerimento ao Ministro relator e nesse pedido é majoritariamente negado na Corte. Isso acontece mesmo com a possibilidade do autor ser responsabilizado em caso de indeferimento da denúncia e posterior interpretação de má-fé.

O arquivamento de denúncia formulada por pessoa física ou jurídica, a depender da interpretação da Corte ou do denunciado, poderá ter como consequência uma ação cível, penal ou processo administrativo em sentido contrário, o que seria um grave prejuízo causado. Como poderia alguém que possui esse nítido interesse não ser considerado Interessado pelo Tribunal? São diversas as decisões do TCU nesse sentido (acórdãos do Plenário 773/04, 320/06, 2.323/06, 139/07, 1.855/07, 519/08, 649/08, 1.218/08, 923/10, 1.090/10, 1.430/10, 1.793/10, 2.627/10, 3.327/10, 88/11, 161/11, 257/11, 2.217/12, 401/13).

A norma constitucional e ordinária não pretendeu tal grau de sigilo, limitando acesso à parte explicitamente interessada. Não é por outra razão que a própria lei define prazo para recurso por parte do denunciante que, como já se demonstrou, é interessado direto. Diz o artigo 31 da lei 8.443, de 16 de julho de 1992, que "em todas as etapas do processo de julgamento de contas será assegurado ao responsável ou interessado ampla defesa". Definitivamente, é a explícita garantia do devido processo legal ao denunciante.

Sobre o fim do sigilo de denunciante para definir a sua responsabilidade por má-fé, o Senado Federal, por meio da Resolução 16 de 2006, suspendeu "a execução da expressão manter ou não o sigilo quanto ao objeto e à autoria da denúncia constante do § 1º do art. 55 da Lei Federal nº 8.443, de 16 de julho de 1992 e do contido no disposto no Regimento Interno do TCU, quanto à manutenção do sigilo em relação à autoria de denúncia, em virtude de declaração de inconstitucionalidade em decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, nos autos do Mandado de Segurança nº 24.405-4 - Distrito Federal"3.

Nesse Mandado de Segurança citado na Resolução do Senado, o STF decidiu que, "no caso, já falamos, a denúncia não é anônima relativamente ao órgão público. Ela o é, entretanto, relativamente ao servidor denunciado (...) Indaga-se: qual a ratio legis do disposto no art. 144 da lei 8.112/90? A razão da lei é esta: evitar, justamente, o denuncismo irresponsável. Aquele que, irresponsavelmente, formula denúncia contra alguém, deve responsabilizar-se pelo seu ato, respondendo, na Justiça, pelos danos causados à honra subjetiva e objetiva do denunciado (...)". Com esse argumento, a Suprema Corte afastou o anonimato indiscriminado daqueles que buscam o TCU para iniciar investigação contra suspeitos de utilização ilegal de verbas públicas. Quem não será acobertado pelo anonimato e poderá responder processualmente nas três instâncias, precisa ter a chance de participar de todos os atos processuais desde o início da instrução para obter a garantia do contraditório.

O princípio da publicidade é a regra dos atos administrativos e não se poderia imaginar que o processo administrativo em tramitação no TCU pudesse ter uma regra sigilosa para a parte legitima assim definida na Constituição. Vejamos que, numa outra vertente constitucional, agora caminhando pela trilha jurisdicional, aquele mesmo cidadão ou associação poderia se utilizar de ferramentas como a ação popular ou ação civil pública para atacar as irregularidades que serviram para o protocolo de denúncia perante o TCU. Nessas ações judiciais, aqueles a quem a CF chamou de "parte legítima para denunciar irregularidades" poderão interagir integralmente durante a instrução, mas o regimento do TCU restringe essa mesma atuação ferindo o comando constitucional.

Nesses termos, não resta outro caminho para além da conclusão de inconstitucionalidade dos artigos 146 e 282 do Regimento Interno do TCU . Transparência é remédio para coibir distorções e decisões desiguais, independente do espaço em que esse assunto esteja em discussão. Muito embora o TCU seja uma instituição de muito valor ao patrimônio público brasileiro, suas práticas não estão imunes às críticas. E esse é o papel que este artigo se predispõe a cumprir com o objetivo de auxiliar na evolução do trabalho desempenhado por aquele Tribunal.
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1 Lei 8443/92:
Art. 53. Qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte legítima para denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o TCU.
§ 1° (
Vetado)
§ 2° (
Vetado)
§ 3º A denúncia será apurada em caráter sigiloso, até que se comprove a sua procedência, e somente poderá ser arquivada após efetuadas as diligências pertinentes, mediante despacho fundamentado do responsável.
§ 4º Reunidas as provas que indiquem a existência de irregularidade ou ilegalidade, serão públicos os demais atos do processo, assegurando-se aos acusados a oportunidade de ampla defesa.
Art. 54. O denunciante poderá requerer ao TCU certidão dos despachos e dos fatos apurados, a qual deverá ser fornecida no prazo máximo de quinze dias, a contar do recebimento do pedido, desde que o respectivo processo de apuração tenha sido concluído ou arquivado.
Parágrafo único. Decorrido o prazo de noventa dias, a contar do recebimento da denúncia, será obrigatoriamente fornecida a certidão de que trata este artigo, ainda que não estejam concluídas as investigações.
Art. 55. No resguardo dos direitos e garantias individuais, o Tribunal dará tratamento sigiloso às denúncias formuladas, até decisão definitiva sobre a matéria.
§ 1° Ao decidir, caberá ao Tribunal manter ou não o sigilo quanto ao objeto e à autoria da denúncia. (
Expressão suspensa pela Resolução SF 16, de 2006)
§ 2° O denunciante não se sujeitará a qualquer sanção administrativa, cível ou penal, em decorrência da denúncia, salvo em caso de comprovada má-fé.

2 Lei Orgânica do TCU
- Art. 22. A citação, a audiência, a comunicação de diligência ou a notificação far-se-á: I - mediante ciência do responsável ou do interessado, na forma estabelecida no Regimento Interno; (...) Parágrafo único. A comunicação de rejeição dos fundamentos da defesa ou das razões de justificativa será transmitida ao responsável ou interessado, na forma prevista neste artigo. (...) Art. 30. Os prazos referidos nesta lei contam-se da data: I - do recebimento pelo responsável ou interessado: (...) Art. 31. Em todas as etapas do processo de julgamento de contas será assegurado ao responsável ou interessado ampla defesa.

3 Texto da Resolução 16 de 2006.
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*Antonio Rodrigo Machado é advogado especialista em Administração Pública e Presidente da Comissão de Legislação Anticorrupção e Compliance da OAB/DF.


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