Uma arbitragem mortal III
Dando continuidade à instigante fábula, o autor traz o último capítulo da trilogia.
quinta-feira, 27 de abril de 2017
Atualizado em 26 de abril de 2017 08:52
Caro leitor, o caso está chegando ao fim e retomamos a narrativa pela réplica do paciente. Antes disto houve uma pausa e todos os presentes confraternizaram educadamente ao lado de uma mesa na qual havia sido colocado um gostoso lanche que constava de salgadinhos, bolos, doces, sucos, refrigerantes e café. É sabido que no campo da arbitragem o fair play entre partes, advogados e árbitros é um princípio que sempre deverá regê-la, pois seu objetivo é a busca da verdade, animosidades à parte. Ninguém conversou sobre qualquer aspecto do processo, tendo tratado apenas de amenidades, o que no Brasil atual representa uma grande dificuldade e um único assunto que normalmente seria trivial, ligado a um posto onde se lava carros a jato. O paciente comeu e bebeu de tudo porque qualquer que fosse o resultado do julgamento, a dieta não teria mais sentido para ele.
Pouco depois, tendo os participantes retornado aos seus lugares, o paciente tomou a palavra para iniciar a sua réplica.
- Prezados senhores árbitros, tratemos inicialmente os pontos colocados pela Requerida. Claro que ela é parte legítima neste processo arbitral. Minha relação direta é com ela mesma e, se ela tem um monopólio inerente ao seu campo trabalho, concertado com terceiro, isto não me diz respeito. Se ela desejasse, poderia ter requerido o ingresso do seu Chefe como parte interessada ou até mesmo alegar que se trataria de parte relacionada, assunto sobre o qual este tribunal arbitral deveria então resolver. Mas não o fez e o seu eventual direito neste campo, portanto, está precluso. O fato da sua alegada imparcialidade a respeito de quem leva ou deixa nesta terra é irrelevante na presente arbitragem. Apenas observo que ela tem mais trabalho com pobres do que com ricos, mas não discutirei as causas dessa situação.
- Não repetirei argumentos a respeito da patrimonialidade e disponibilidade do meu direito, o que para fim está suficientemente provado. E, considerando-se que vivemos em uma sociedade extremamente egoísta, a prova de que agi com bondade e misericórdia em relação ao meu próximo mostra que consegui superar de forma eficaz e benfazeja a índole malévola que caracteriza o nosso DNA comportamental. É uma vitória pessoal, digna de merecimento, sou obrigado a dizer em relação a mim mesmo. Eu poderia ter tido o melhor sítio em Atibaia ou o melhor apartamento no Guarujá, mas preferi condições mais modestas para o descanso do meu corpo cansado. Meu único luxo foram os meus livros e algumas viagens que fiz ao exterior apenas com o intuito de conhecer a diversidade de culturas que formam o nosso mundo e para compreender melhor a sociedade em que vivemos. Neste sentido, tenho direito ao deferimento das minhas pretensões dentro de um julgamento por equidade.
- De outro lado, não se trata de pedir que a Ré perca o seu emprego e, com isso, fique subvertida a ordem que reina na terra ("ordem", tem até graça!). Mas eu fiz o meu pedido e outras pessoas se desejarem façam o mesmo. Para este efeito não tenho procuração da humanidade.
- Finalmente, eu trago um argumento definitivo: requeiro a aplicação de um precedente. Se não sabem os ilustres árbitros porque não são experts no métier jurídico, especialmente quanto ao direito anglo-norte-americano, afirmo que se trata de uma decisão tomada anteriormente por algum tribunal que se torna de adoção obrigatória nos futuros julgamentos de casos idênticos.
- Cerca de sete séculos antes de Cristo, reinava o rei Ezequias em Israel (mais precisamente no Reino do Sul ou de Judá, com capital em Jerusalém). Um dia, quando estava doente, Deus mandou avisá-lo por meio do profeta Isaias que ele não seria curado e que deixasse seus negócios em dia porque era chegado o tempo da Ré (ou seja, de sua morte). Tendo o profeta ido embora, aquele rei virou-se no seu leito para o lado da parede e fez um pedido: "Ó Senhor, lembra-te como sempre me esforcei por te obedecer e te agradar em tudo o que fiz". Tendo ouvido esta petição, o Senhor mandou naquela mesma hora que Isaias retornasse e dissesse ao monarca que ele havia sido atendido e que seria curado, tendo se lhe dado mais quinze anos de vida.
- Este é o meu precedente. As lágrimas que escorreram durante estes últimos meses pelo meu rosto provam que tenho repetido o mesmo pedido daquele rei até a exaustão e, não tendo sido ouvido até o momento, requeri a presente arbitragem. E aqui termino a exposição do meu caso.
Os presentes estiveram completamente silenciosos durante a defesa do paciente, notando-se que os árbitros se sentiram tocados pelas palavras daquele. Logo em seguida a Senhora Morte tomou a palavra para fazer sua tréplica.
- Senhores membros deste Tribunal Arbitral. Ainda que a situação pessoal do Requerente possa ser considerada bastante triste, aqui não é lugar para sentimentalismos. Não tem qualquer árbitro o direito, mas sim o estrito dever de aplicar os princípios que devem reger seu julgamento. Neste caso a equidade, que não pode ser confundida com a vontade de se conceder ao Autor um benefício indevido sob aquele título. O paciente ao recorrer à equidade neste caso está desejando fugir à aplicação da lei, que existe e é vigente desde que eu surgi neste planeta. E não se esqueça de que os tribunais arbitrais têm sido acusados de condescendência, aplicando penas menos graves quando sentem os julgadores que o peso da condenação poderá ser muito grave para o perdedor. Não se trata disto. Lei ou equidade (a verdadeira), cada uma delas deve ser aplicada em toda a sua extensão, conforme o caso, sob pena de desmoralização do instituto da arbitragem.
- O precedente invocado pelo Requerente não tem lugar neste caso. A cura e a sobrevida do finado (finalmente) Ezequias não estiveram fundadas na equidade e muito menos na lei. Sua base foi a graça, princípio que sempre regeu o relacionamento entre meu Superior e a raça humana. Nas relações com o Conselho Máximo de Administração cada indivíduo tem um tratamento de natureza particular e não se pode discutir o mérito das orientações que são tomadas particularmente quanto a cada ser humano. É estabelecida uma determinação de transporte para o destino final e eu a cumpro. E, somente para argumentar, se tal precedente pudesse ser aqui aplicado, então o médico que anunciou a doença e morte do paciente seria unicamente aquela mesma pessoa responsável por trazer a boa nova da sua cura, tal como foi o papel do profeta Isaias. Senhores membros do Tribunal Arbitral, já externei todos os meus pontos de vista. Aqui encerro meus argumentos.
Os árbitros, não tendo perguntas a fazer e tendo sido instruídos pelo secretario ad hoc Samuel, pediram que o paciente e a Senhora Morte se retirassem da sala para que pudessem deliberar sobre a decisão a ser tomada. Foram ambas as partes para o quarto do paciente, onde aguardariam o resultado, porque este estava bastante fatigado com a duração da audiência.
E agora, caros leitores, sinto que os frustrarei, mas aqui encerro a minha narrativa por determinação expressa do paciente. A cada um caberá imaginar como foi a decisão daquele terminal arbitral. Na verdade, tomem vocês mesmos o lugar dos árbitros e construam a sua decisão segundo a sua própria convicção e, se forem bondosos para com este escriba, me informem como teria sido a sua sentença.
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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados e Professor Sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP.