A lei de recuperação e falência de empresas (lei 11.101/05) e o critério de competência territorial do juízo concursal - uma proposta de mudança
O objetivo deste breve artigo é apontar um ponto da atual legislação - qual seja, o critério de competência territorial do juízo concursal - que merece mudança, na visão destes autores, para adequá-lo à realidade/necessidade dos processos de falência e recuperação judicial.
terça-feira, 18 de abril de 2017
Atualizado em 17 de abril de 2017 09:17
No final de 2016, foi criado pelo Ministério da Fazenda um grupo de trabalho multidisciplinar para elaborar um projeto de reforma da Lei de Recuperação e Falência de Empresas (lei 11.101/051), conforme previsto na Portaria 467/16.
Após mais de uma década de vigência da referida legislação, não se pode deixar de registrar que houve evolução de alguns institutos concursais, seja na falência ou na recuperação judicial. Mas, nem tudo são flores. É importante registrar também que ocorreu muito desvirtuamento do texto legal, por parte da jurisprudência, bem assim que a legislação não conseguiu apresentar respostas a várias demandas das partes que figuram nos feitos concursais.
Com a crise econômico-financeira (e política) instalada há tempos no Brasil, os nossos empresários e seus credores precisam, mais do que nunca, de uma Lei de Insolvência que permita a proteção da empresa viável, sem se descurar da preservação dos interesses creditórios.
O objetivo deste breve artigo é apontar um ponto da atual legislação2 - qual seja, o critério de competência territorial do juízo concursal - que merece mudança, na visão destes autores, para adequá-lo à realidade/necessidade dos processos de falência e recuperação judicial.
Segundo define o artigo 3º da LRFE, "é competente para homologar o plano de recuperação extrajudicial, deferir a recuperação judicial ou decretar a falência o juízo do local do principal estabelecimento do devedor ou da filial de empresa que tenha sede fora do Brasil." (grifamos).
O critério adotado pela legislação para identificar em que Comarca deve tramitar a ação concursal não é dos mais felizes, uma vez que se mostra necessária a interpretação da expressão equívoca "principal estabelecimento do devedor", para definição da competência absoluta juízo, revelando-se tal exercício hermenêutico bastante difícil em muitos casos.
Tanto a doutrina3 como a jurisprudência4 possuem divergência na interpretação dessa regra de competência e, volta e meia, ocorrem longas discussões processuais em ações de falência e/ou de recuperação judicial5 , unicamente para resolver-se qual é o juízo territorial competente para presidir o feito concursal. Ora se entende pela competência do juízo do local onde se encontra a sede administrativa (efetiva) do devedor, ora reputa-se que deve a ação seguir no juízo do lugar em que se localiza o "centro vital da empresa" (corrente adotada na maioria dos casos pelo STJ6).
Se se está diante de uma ação de recuperação judicial, o empresário devedor (único legitimado a propor tal demanda, segundo artigo 48 da LRFE) possui condições para saber tanto onde se localiza sua sede administrativa como o local do centro vital da empresa. Mas se isso não impede alguns "planejamentos" convenientes quanto ao foro de distribuição, não raro em detrimento de credores, o que dizer então quando o que está em pauta é uma ação de falência, em que o pedido pode ser formulado por credores ou pelo devedor (art. 97 da LRFE), a situação se complica. Isso porque, ao credor não é franqueada publicamente a informação sobre o lugar em que o empresário possui maior número de negócios na ocasião da propositura da demanda, restando-lhe a opção de consultar o cadastro público da Junta Comercial, para identificar onde deve propor a ação em tela. Nesse banco de dados, a informação que o credor conseguirá obter será a do local em que a empresa é administrada, pois o empresário não informa em que lugar ele está concentrando o centro de suas atividades no Registro Público de Empresas Mercantis.
O problema agrava-se ainda mais quando se está diante de um pedido de recuperação judicial ou de falência envolvendo um "Grupo Empresarial", estrutura jurídico-societária dentro da qual se encontram diferentes empresários, que podem se localizar em distintos locais. No caso do precedente citado na nota 5 deste breve artigo, o STJ reputou que a competência territorial do juízo concursal da recuperação deveria ser o local sede administrativa daquela que o referido Tribunal entendeu seria a principal empresa do Grupo.
Tanto na falência como na recuperação, a indefinição sobre a competência territorial do juízo concursal presta um desserviço à eficiência econômica do processo, uma vez que o custo da ação fica mais caro com o passar do tempo, dificultando e/ou obstando seja possível ao devedor e aos credores conseguirem materializar seus interesses/direitos.
Em função desses problemas ora apontados, não se pode admitir que o critério de competência (absoluta) territorial continue sujeito a tanta insegurança jurídica, devendo-se evitar discussões sobre um tema tão caro da legislação processual concursal. Para impedir-se tal tipo de incerteza, a lei poderia adotar o lugar da sede administrativa do empresário como referência de competência territorial do juízo, tanto para ações de recuperação judicial como de falência, consignando que essa competência é relativa (e não absoluta). Para os processos concursais envolvendo "Grupos Empresariais", a proposta de mudança é definir-se na LRFE como juízo competente aquele do local da sede administrativa do empresário que possuir o maior faturamento bruto no ano anterior ao da propositura da ação ou, sendo impossível obter-se tal informação com segurança, o juízo do lugar onde se encontra o empresário integrante do Grupo que iniciou sua atividade há mais tempo.
Mas, a versão preliminar do texto apresentado pela Comissão Reformista do Ministério da Fazenda não trata dessas mudanças no art. 3º da lei, apesar de criar uma regra para os casos da chamada "consolidação processual", no sugerido texto do art. 69-A, § 2º, da LRFE7.
E, se o tema é polêmico quanto a uma ou algumas sociedades, o que dizer de grandes conglomerados com pesados organogramas societários, que infelizmente são justamente os ramos mais afetados pelo cenário de crise nacional (veja-se, p. ex. a par das empreiteiras e companhias energéticas, o caso recente da incorporadora PDG, onde o pleito de recuperação abrange algo em torno de 500 empresas).
Pensamos, assim, que um dos pontos dramáticos que estão afetando o regular início e o tranquilo desenvolvimento das ações concursais será definido na lei de modo mais seguro, fato que contribuirá para a tramitação mais eficiente e célere do processo recuperacional ou falimentar.
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1. Doravante referida apenas por "LRFE".
2. Noutros artigos serão propostas outras sugestões de alteração da LRFE.
3. Segundo Marlon Tomazette (2014) "o artigo 3o da lei 11.101/05 diz que: É competente para homologar o plano de recuperação extrajudicial, deferir a recuperação judicial ou decretar a falência o juízo do local do principal estabelecimento do devedor ou da filial de empresa que tenha sede fora do Brasil. Diante de tal dispositivo, vemos que há uma dupla regra de competência: o local da filial no país para empresários estrangeiros e o local do principal estabelecimento para os empresários brasileiros. (...) Gladston Mamede afirma que não há uma solução única para identificar o principal estabelecimento, devendo-se analisar caso a caso qual será o mais importante para o empresário. No regime da lei anterior que tinha o mesmo dispositivo, Jorge Pereira Andrade preferia entender o principal estabelecimento como a sede contratual, na medida em que em tal lugar se encontraria o empresário para a citação. Silva Pacheco, já no regime atual, também reconhece como juízo competente aquele da sede contratual, afirmando que "principal estabelecimento é aquele constante do respectivo registro". Júlio Kahan Mandel crítica a redação da lei e afirma que o melhor seria definir a competência pela sede contratual no ano anterior ao pedido, o que dificultaria eventuais fraudes. Afastando a ideia da sede como principal estabelecimento, alguns autores entendem que o principal estabelecimento é aquele de mais importância econômica, o de maior movimento, o que permitiria a captação de mais bens na falência, para satisfação do maior número possível de credores". (TOMAZETTE, Marlon. Curso de direito empresarial, v 3: falência e recuperação de empresas. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 32-33).
Já Ricardo Negrão (2015) aduz que "diversamente do que dispõe a Lei Civil acerca da pessoa natural que tiver outras residências, onde alternativamente vivam ou vários centros de ocupações habituais, considerando domicílio qualquer um deles, a lei 11.101/05 somente admite, para efeitos de fixação de competência falimentar, um domicílio: o lugar onde o empresário possuir seu principal estabelecimento, entendido este como o local onde fixa a chefia da empresa, o centro de suas atividades, o irradiador das ordens de seus negócios (art. 3o)". (NEGRÃO, Ricardo. Manual de direito comercial e de empresa, volume 3: recuperação de empresas e falência. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 335).
Por fim, Fábio Ulhoa Coelho (2016) afirma que "a competência para a apreciação do processo de falência e de recuperação judicial, bem como de seus incidentes, é do juízo do principal estabelecimento do devedor no Brasil (LF, art. 3o). Quando a sociedade empresária é pequena e tem apenas um só estabelecimento, a questão de se delimitar o conceito legal que circunscreve a competência no direito falimentar, por evidente, não se põe. Quando, porém, possui mais de um estabelecimento, situados em localidades abrangidas por diferentes jurisdições territoriais, é necessário discutir os contornos do conceito, para se encontrar o juízo competente. Por principal estabelecimento entende-se não a sede estatutária ou contratual da sociedade empresária devedora, a que vem mencionada no respectivo ato constitutivo, Nemo estabelecimento maior física ou administrativamente falando (cf. Requião, 1975, 1:81). Principal estabelecimento para fins de definição da competência para o direito falimentar, é aquele em que se encontra concentrado o maior volume de negócios da empresa; é o mais importante do ponto de vista econômico". (COELHO, Fabio Ulhoa. Curso de direito comercial, volume 3: direito de empresa. 17. ed. rev. Atual e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 250-251).
4. O TJMG entendeu que "o principal estabelecimento corresponde ao centro gerador das decisões negociais, que deve ser buscado do ponto de vista econômico, justamente por ser o local em que se encontra o maior número de bens da empresa e de seus credores" (TJMG - Agravo de Instrumento-1.0521.12.017298-1/001, Rel. Des. EDILSON FERNANDES , 6ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 28/06/2016, publicação da súmula em 08/07/2016 - grifos nossos). Por sua vez, o STJ reputou que "tornados os bens indisponíveis e encerradas as atividades da empresa cuja recuperação é postulada, firma-se como competente o juízo do último local em que se situava o principal estabelecimento, de forma a proteger o direito dos credores e a tornar menos complexa a atividade do Poder Judiciário, orientação que se concilia com o espírito da norma legal. 4. Concretamente, conforme apurado nas instâncias ordinárias, o principal estabelecimento da recorrente, antes da inatividade, localizava-se no Rio de Janeiro - RJ, onde foram propostas inúmeras ações na Justiça comum e na Justiça Federal, entre elas até mesmo um pedido de falência, segundo a recorrente, em 2004, razão pela qual a prevenção do referido foro permanece intacta. 5. Recurso especial improvido." (REsp 1006093/DF, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, Quarta Turma, julgado em 20/5/14, DJe 16/10/14 - destacamos).
5. Cite-se, a título de exemplo, o julgamento do CC 146.579/MG, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Segunda Seção, julgado em 09/11/2016, DJe 11/11/16.
6. Ver Item 2 da Jurisprudência de Tese 35/STJ.
7. Não entraremos aqui na discussão sobre a interpretação do instituto da "consolidação substancial", para a qual dedicaremos textos futuros
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*Guilherme Carvalho Monteiro de Andrade é advogado e professor dos cursos de graduação e de pós-graduação em Direito do IBMEC/MG.
*Henrique Cunha Barbosa é advogado e coordenador e professor da pós-graduação em Direito do IBMEC/MG.