Do Direito e da Política: uma análise do tratamento governamental aos serviços de streaming
A inovação tecnológica, por fim, tem inegavelmente reformulado mundialmente a atividade econômica e as relações jurídicas, o que obriga não só ao Poder Público, mas ao próprio Direito, a se adequar ao novo.
terça-feira, 11 de abril de 2017
Atualizado às 07:50
No início do mês de março, o Presidente da Netflix, Reed Hastings, afirmou 1 que a empresa não repassará aos seus usuários brasileiros o custo decorrente da aplicação da lei Complementar 157/2016 2, que acrescentou à lista de serviços sujeitos à tributação do Imposto Sobre Serviços (ISS) a disponibilização, sem cessão definitiva, de conteúdos de áudio, vídeo, imagem e texto por meio da internet, medida que abarca justamente serviços da empresa, além da Spotify, dentre outras.
A alíquota mínima de 2% ficará, no caso da Netflix, diluída no custo operacional da empresa, não atingindo diretamente aos consumidores, como se previa antes da publicação da lei Complementar no final de 2016. Muitos analistas do mercado de comunicações criticaram a inclusão dos serviços de streaming na listagem de serviços sujeitos à tributação, mas as objeções, em sua maioria, restringiram-se ao eventual aumento de custo ao consumidor final, não quanto ao modelo escolhido pelo país para tratar sobre as novas tecnologias.
E a exemplo da escolha por uma tributação tradicional no caso do ISS, está em gestação há no mínimo quatro anos no Governo Federal também a possibilidade de cobrança sobre os mesmos serviços de streaming da chamada Condecine - Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional. Se a justificativa governamental ao final do ano passado era a possibilidade de incrementar a receitas dos municípios brasileiros, que terão até o final deste ano para editar suas legislações próprias sobre o tema, desta feita o objetivo seria o aumento da arrecadação federal em aproximadamente R$ 300 milhões 3 para os próximos cinco anos, somente vinculados à Netflix, por exemplo.
A simples notícia da possibilidade de implementação dessa nova forma de arrecadação por parte do Governo Federal retomou a discussão crítica sobre a sanha arrecadatória da União, mas novamente não se buscou grande aprofundamento relativo à forma. Este é o ponto, justamente, que merece maior discussão não só no meio jurídico, mas fundamentalmente no meio político do Brasil, na medida em que se verificam insistentes tentativas de enquadramento de inovações tecnológicas e de novos serviços colocados à disposição do público em arcaicas legislações de controle e de tributação que em nada dialogam com a velocidade e capacidade de mutação do mercado tecnológico atual.
Do ponto de vista jurídico, inegável a necessidade de análise quanto à aparente inconstitucionalidade da LC157/2017, na medida em que os contratos de streaming não se subsumem à definição de serviço para fins de incidência de ISS e, portanto, não estão inseridos na materialidade de tal imposto. Uma vez não sendo serviços caracterizados como obrigação de fazer de natureza física ou intelectual, como bem definido por Marçal Justem Filho 4 e sim como obrigação de dar, ceder, como paradoxalmente o próprio subitem do anexo da LC em questão define a natureza do streaming como disponibilização sem cessão definitiva de conteúdos, não há, com a máxima vênia, como enquadrar-se juridicamente tais plataformas tecnológicas como passíveis de tributação como feito pela União. 5
Igualmente, merece crítica jurídica o possível enquadramento dos serviços de streaming à Condecine, que incide sobre a veiculação, a produção, o licenciamento e a distribuição de obras cinematográficas e videofonográficas com fins comerciais. Tal contribuição, instituída pela Medida Provisória 2.288-1/01 6, e ampliada pela lei 12.485/11 7 tem por objetivo o incentivo ao audiovisual brasileiro por meio do fomento à atividade através do Fundo Setorial do Audiovisual, destino da arrecadação da contribuição. Parece plausível, em uma análise perfunctória, que a cobrança de uma contribuição de intervenção no domínio econômico não poderia ter como objetivo a promoção da cultura por meio da atividade cinematográfica, fugindo de um propósito estritamente econômico. Do mesmo modo, o possível enquadramento dos serviços de streaming em tal contribuição violaria o Princípio da Referibilidade, por não trazer qualquer benefício específico às empresas que porventura venham a pagar a contribuição.
Já do ponto de vista político, fundamental é ver que em ambos os casos de avanço dos braços tributários do Estado sobre as novas tecnologias que beneficiam o consumidor, há uma motivação comum além do óbvio interesse financeiro do Poder Público: a concorrência no setor de entretenimento audiovisual e a perniciosa relação público-privado existente entre os setores tradicionais da economia e o Estado.
No tocante ao ISS, sempre houve reclamação das empresas tradicionais do setor de TV por assinatura de que as novas tecnologias estavam praticando concorrência desleal por não ter o mesmo tipo de encargo fiscal que o mercado tradicional, em uma argumentação em muito parecida com qualquer setor tradicional que se depara com novas ferramentas, como no caso dos taxistas com aplicativos de transporte individual e telefonia em face de aplicativos de troca de dados, por exemplo. A migração de consumidores às novas alternativas e a queda de faturamento das empresas há anos instituídas no país e com profundas relações - nem sempre republicanas - com órgãos governamentais e de regulação poderiam explicar, também, o açodamento como se deu o enquadramento dos serviços de streaming ao ISS, mesmo com todos os óbices jurídicos acima apontados.
Com relação à Condecine, então, escancarada fica a nada republicana relação público-privado vigente no setor. Quando da discussão que originou a lei 12.485/11 - dispõe sobre a comunicação audiovisual de acesso condicionado - as grandes empresa do setor de telecomunicação, interessadas no ingresso no segmento de TV por assinatura, fechado a elas até então, aceitaram a inclusão da então cognominada Condecine Teles, em substituição a parte do que as empresas já pagavam a título de taxa de fiscalização das telecomunicações, também cobrada pela Agência Nacional do Cinema. Sancionada e vigente a lei, em uma conta rápida o dispêndio das empresa de telecomunicação ficava muito similar ao que já se praticava, mas com a imensa vantagem de poder atuar em um segmento importante - esta a origem dos tão reclamados combos de TV, internet e telefone, por exemplo.
Contudo, em 2015, a Condecine foi reajustada pela Ancine em aproximadamente 30%, fazendo surgir no mercado tradicional a irresignação jurídica contra a natureza da contribuição, o que redundou na propositura de Mandado de Segurança Coletivo 1000562-50.2016.4.01.3400, com liminar deferida pela 4ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal, confirmada em sede de Agravo de Instrumento pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região, somente sendo suspensa por força da Suspensão de Segurança 5116, em decisão do então Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Ricardo Lewandowski. Confirmada a cobrança em face das empresas tradicionais, a mesma ação perpetrada na questão do ISS parece em curso em face das empresas de streaming.
Vê-se, pois, que não somente a falta de adequação técnico-jurídica prejudica o correto tratamento de questões concorrenciais no segmento das telecomunicações e de novas tecnologias, mas também a forma pouco aconselhável de se travar a natural disputa por espaço de mercado e de preferência do público no país. Enquanto empresas, tradicionais e modernas, não vislumbrarem que a ampliação do leque de opções ao consumidor final e que o equilíbrio regulatório, em bases sólidas e transparentes, é a melhor saída para a subsistência de todos no segmento, as distorções aqui relatadas seguirão ocorrendo. Enquanto o Governo não se atentar à inadequação que o enquadramento das novas tecnologias da modernidade às velhas estruturas pensadas para mercados passados e com base em relações não transparentes só traz prejuízos econômicos de longo prazo ao próprio Governo e a seus administrados o cenário de insegurança jurídica e de atraso tecnológico, o Brasil seguirá retardatário nas questões tecnológicas e de consumo.
A inovação tecnológica, por fim, tem inegavelmente reformulado mundialmente a atividade econômica e as relações jurídicas, o que obriga não só ao Poder Público, mas ao próprio Direito, a se adequar ao novo. Tal adaptação, entretanto, deve se dar de forma republicana, pelas vias do Estado Democrático de Direito, sem sobressaltos, arbitrariedades ou obscurantismos. Só assim o futuro se fará presente para todos.
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1 Netflix diz que imposto não vai aumentar preço do pacote no Brasil
2 Lei Complementar 157/16
3 Governo estuda cobrar R$ 300 milhões em taxas da Netflix BR até 2022
4 O Imposto sobre Serviços na Constituição. Ed. RT. p. 80.
5 Neste ponto, fundamental também se atentar, por analogia, para o disposto na Súmula Vinculante 31, que vedou a incidência de ISS sobre a locação de bens móveis.
6 Medida Provisória 2228-1/01
7 Lei 12.485/11
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*Cauê Vieira é advogado na Cauê Vieira Consultoria e Advocacia.