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Cobranças via correio - Necessidade de revisão de critériosInclusão digital e inclusão bancária - Mundo moderno

Grandes têm sido os esforços das empresas para renegociarem com seus clientes que a cobrança passe a ser feita por meio eletrônico ou débito automático ao invés do tradicional envio de correspondência.

quinta-feira, 6 de abril de 2017

Atualizado às 07:26

Acredito que quase todos sintam, pessoalmente, o que ocorre quando os Correios atrasam na entrega da correspondência. Um desses efeitos é a questão relativa ao não recebimento de boletos e outras cobranças (por exemplo, tributos).

Nesses momentos têm sido dito por alguns que a entrega não afeta a obrigação do pagamento no vencimento, isto porque o devedor deve agir no sentido de buscar com o credor uma nova forma de pagamento no prazo, como por exemplo o envio do boleto pela Internet, sem o que haveria a mora.

Vejo isso com muita ressalva e explico.

No Direito brasileiro a regra geral que vigora é a do art. 327 do Código Civil:

Art. 327. Efetuar-se-á o pagamento no domicílio do devedor, salvo se as partes convencionarem diversamente, ou se o contrário resultar da lei, da natureza da obrigação ou das circunstâncias.

Por ela o que se estabelece como regime é o da dívida quesível (quérable), isto é, cabe ao credor ir atrás do devedor pela forma acordada.

Estabelecido entre credor e devedor que a cobrança será feita mediante o envio do boleto bancário ao endereço definido como tal para local de cobrança, não há como se pretender que o credor altere essa condição sem a anuência do devedor, que tem o legítimo direito de somente pagar contra a recepção do boleto. Aliás, cabe ao credor diligenciar para que essa recepção de fato seja concretizada (é ônus seu enquanto credor).

A definição do lugar de pagamento e a forma como a cobrança é feita é ampla: (i) pode ser combinado seja feita na sede da empresa credora; (ii) ser feita mediante débito automático em conta corrente; (iii) ser feita por meio eletrônico, onde o documento de cobrança é enviado ao devedor num endereço eletrônico por ele oferecido; etc.. O que importa é o que foi contratado, lembrando que ninguém é obrigado a usar a Internet ou ter conta bancária. Aliás, nesse sentido, grandes têm sido os esforços das empresas para renegociarem com seus clientes que a cobrança passe a ser feita por meio eletrônico ou débito automático ao invés do tradicional envio de correspondência.

Abro, então, um breve espaço para tratar de algumas cobranças tributárias nas quais o procedimento legal é o envio de notificação de lançamento ao contribuinte em seu domicílio para efeitos fiscais do tributo envolvido. Pois bem, neste caso não cabe negociação e, portanto, o contribuinte deve aguardar ser cobrado. Trata-se, claramente, de obrigação quesível por estruturação legal.

Uma vez isto colocado, se o devedor não recebe a cobrança não cabe ele ir atrás do credor, o que significa que o devedor não é responsável pela mora causada por dívida cuja cobrança não lhe chegou às mãos na forma contratada uma vez não ter ele dado causa ao atraso, como exemplo, serviços não realizados pelos Correios.

Ouso dizer que se um credor contrata cobrar via correspondência, e sobretudo se ele for um credor empresário, ele deve adotar um mecanismo que lhe permita assegurar que a cobrança chegue ao devedor em tempo adequado ao pagamento e também poder comprovar isso (lembrando-se, é obrigação do credor ir atrás do devedor). Se não o faz, essa falta de diligência não o pode beneficiar, como pretender cobrar os efeitos econômicos da mora.

Ocorre que, via de regra, as cobranças por correspondências não se fazem por meio do qual seja possível identificar a data em que a correspondência efetivamente foi entregue ao devedor (aceito, porém, que a entrega na portaria de um edifício ou recepção de prédio seja considerada como válida, exceto se a forma adotada exigir cobrança pessoal). Ora, isto não é de responsabilidade do devedor. Não cabe a ele saber quando a correspondência foi postada, quando a correspondência foi deixada em seu endereço. Ele apenas aguarda que a cobrança chegue a ele em prazo razoável para pagamento. Vigora, então, a regra de que o risco da mora é do credor.

Assim, de per ser, o credor não pode, ante o argumento de que a cobrança não chegou ao devedor, impor os encargos da mora sem que demonstre que houve entrega no prazo regular e com tempo adequado para o pagamento ou que prove que o devedor recebeu.

Essa cobrança é ainda mais indevida quando há evidências de que há atrasos no trabalho dos Correios, sejam greves ou mesmo pela demora na prestação do serviço (excesso de trabalho ou carência de pessoal). Aliás, diante de força maior não pode o devedor ser responsabilizável por eventuais perdas do credor, Código Civil art. 393:

Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.

Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.

Aqui, no entanto, cabe um momento de reflexão.

Se a cobrança por correspondência está definida, e ainda mais quando se trata de obrigação de trato reiterado no tempo, isto é, cobranças que se repetem no tempo, nas quais o devedor sabe que deveria ter recebido a cobrança, mas que provavelmente isso não ocorreu por falha nos Correios, há que se discutir se a mera posição passiva não acaba por constituir em abuso de direito, isto é, o devedor passar a se beneficiar conscientemente daquele atraso, incidindo nas regras dos arts. 186 e 187 do Código Civil:

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercêlo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

Ora os negócios de todas as espécies requerem que as partes atuem com boa-fé e em respeito ao contratado. Assim, se o credor tem a obrigação de cobrar na forma adequada, o devedor sabe que deverá pagar e, no caso de obrigações conhecidas e com datas certas de pagamento, passa a ter que, em razão da boa-fé, agir para entender o que está ocorrendo, sob pena de sua inércia tornar-se abuso de direito.

Qual o resultado disso: o art. 367 impõe ao credor a diligência da cobrança; o art. 393 exime o devedor da responsabilidade pela mora em razão de força maior (aqui entendido o atraso nos Correios); mas os arts. 186 e 187 atenuam a irresponsabilidade do 393 quando há evidência de abuso de direito (e há muitos casos assim).

Diante desse cenário, tenho que em situações onde haja evidente problema no funcionamento dos Correios, seja por greve declarada ou por evidências razoáveis de atrasos, cabe, em razão da boa-fé, que o credor diligencie junto aos seus devedores a questão do pagamento da dívida, inclusive oferecendo alternativas para seu pagamento, ainda que excepcionais para aquele evento, o que inclui a modificação de data de pagamento sem incidência de quaisquer dos encargos da mora. De outro lado, cabe ao devedor, em prazo razoável, que pode ser entre três e cinco dias (apenas para efeito de argumentação), procurar seu credor para verificar como proceder com o pagamento de cobranças não recebidas no curso ordinário dos Correios, tendo direito a não ser cobrado pelos encargos da mora. No entanto, a postura direta de credores de cobrarem os encargos da mora nessas circunstâncias parece-me abusiva e ilícita.

Coloco para contraponto para a reflexão acima: o que ocorre quando há paralisação dos serviços bancários. Nesses casos há um entendimento generalizado de que não há como se pretender cobrar os encargos da mora uma vez ser fato não imputável ao credor ou ao devedor1. Em outras palavras, a força maior não agrava obrigações, algo que serve como parâmetro para o caso das paralisações formais ou informais dos serviços de Correios.

Aproveito, então, para abordar alguns temas que margeiam a questão aqui abordada, e que são: a inclusão digital e bancária.

Não há qualquer Lei que obrigue que as pessoas se incluam no mundo pelas vias digitais e bancária, isto é, pessoas não precisam ter computadores, correios eletrônicos, usar celulares, smartphones, tenham contas bancárias etc. No entanto é praticamente impossível viver-se no mundo moderno sem que isso de fato ocorra, mas isto ainda é uma questão de decisão pessoal e não de imposição legal.

Não me parece, sob a ótica da legalidade constitucional, que pessoas sejam obrigadas a se incluírem no mundo digital, por exemplo, para fazerem seu imposto de renda ou para peticionarem em juízo2. Também não há obrigação legal para que alguém tenha conta bancária.

O Direito não conseguiu resolver o dilema da modernidade (as facilidades e vantagens que a tecnologia e operações bancárias trazem) e a forma da prática de atos pelas pessoas, aliás creio que jamais ocorrerá porquanto essas são decisões estão no cerne do indivíduo e não são passíveis de serem reguladas, impostas por lei (ainda que na prática isso já ocorra e, a meu ver, de modo inconstitucional). O indivíduo tem o direito de estar excluído desses mundos, mas também deve saber que isso possivelmente o alijará da vivência regular em comunidade, mas isto é decisão na esfera pessoal.

Nesse sentido, a questão relativa aos problemas que essas facilidades trazem ao Direito, como no caso das cobranças de dívidas quesíveis, requer cautela sobretudo porque sua adoção deve gerar uma neutralidade entre os envolvidos e não disputas.

Tenho que a inclusão digital e bancária são inafastáveis (ainda que não mandatórias) e, nesse sentido, todos devem estar mais conscientes quanto aos efeitos disso na forma como transacionam. Assim, por exemplo: é razoável aceitar-se cada vez mais que cobranças sejam feitas por meios eletrônicos, porém não se pode esquecer que da mesma forma que há greve dos Correios, pode haver apagões, pode haver problemas com os servidores tanto do credor quanto do devedor que impeçam o envio eletrônico de documentos; que os devedores devem estar cientes que ao aceitarem ser cobrados por meios eletrônicos, o eventual inadimplemento nos seus serviços de acesso à Internet não poderá ser alegado em defesa do atraso de pagamento de cobranças que não lhe chegaram pela Internet; que as travas bancárias devem ser respeitadas (isto é, não cabe ao devedor encerrar uma conta bancária na qual já definiu usar para pagamento de determinada conta por via de débito automático) etc.

O que é importante, então, é que a sociedade eduque-se, até mesmo na forma de condução de suas transações (na contratação e no pós-contrato) para disciplinar com maior clareza as implicações e responsabilidades que são geradas com a incorporação crescente de tecnologias de ponta.

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1 Não entro, aqui, na discussão do tempo de paralisação dos serviços, mas uso o exemplo para aquelas paralisações que já ocorreram e até perduraram por mais de uma semana.

2 De fato, parece-me um contrassenso que o exercício de direitos civis tenha que se dar por forma específica, como pela via digital.

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*José André Beretta Filho é advogado.

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