A alienação fiduciária e o pagamento parcial da dívida
A aplicação da teoria do adimplemento substancial no contrato de alienação fiduciária em detrimento à busca e apreensão, a depender do caso, tende a ser banalizada.
segunda-feira, 3 de abril de 2017
Atualizado às 08:42
Em recente decisão, o STJ entendeu que o credor poderá se valer da busca e apreensão do bem, objeto de alienação fiduciária, mesmo quando o devedor estiver inadimplente com uma pequena parte do valor do contrato.
Sendo a Alienação Fiduciária regrada pelo decreto-lei 911/69, a qual prevê o referido procedimento para a satisfação do crédito em caso de inadimplemento, por que o STJ se viu obrigado a reafirmar a possibilidade de busca e apreensão do bem em caso de não pagamento de qualquer uma das parcelas?
Ocorre que os tribunais estaduais proferiram recentes decisões sob o entendimento de que, diante do pagamento de parte relevante das parcelas do financiamento do bem dado em alienação fiduciária, o credor deveria buscar outros meios para a satisfação do seu crédito, que não a busca e apreensão do bem, já que esta medida é a mais gravosa para o devedor.
O posicionamento dos tribunais estaduais decorre da adoção da teoria do adimplemento substancial1. Referida teoria surgiu da desproporcionalidade que poderia resultar da resolução contratual (o que culminaria na busca e apreensão do bem) aplicada em situações nas quais a obrigação havia sido cumprida quase integralmente2.
Como se sabe, na alienação fiduciária, o devedor, sendo proprietário do bem móvel, aliena-o ao credor a título de garantia, ficando, o devedor, com a posse deste bem até que seja satisfeita a obrigação.
Em se tratando de benefício ao credor, a alienação fiduciária em garantia é muito mais vantajosa em comparação às outras garantias reais, uma vez que a satisfação do crédito garantido pela fidúcia é célere e segura e pode efetivar-se, inclusive, de maneira extrajudicial.
Desse modo, comprovada a mora do devedor, pode o credor considerar vencidas todas as obrigações contratuais e ajuizar ação de busca e apreensão. A mora, neste caso, será decorrente do simples vencimento do prazo para pagamento de uma parcela do contrato. Essa é a disposição do decreto-lei 911/69, que trata da busca e apreensão de bem alienado fiduciariamente, e no mesmo sentido pronunciou-se o STJ ao julgar o Recurso Especial 1.418.593 - MS3.
Contudo, diante do caso concreto e baseando-se apenas no critério quantitativo e não qualitativo, quando se verifica o cumprimento da maior parte das parcelas previstas no contrato, a título de exemplo, de "87% do débito"4, ou "de 32 das 47 parcelas acordadas"5, aplicar-se-ia, segundo os tribunais regionais, a teoria do adimplemento substancial para liberar o devedor da busca e apreensão regrada pela lei.
Considerou-se que a apreensão se trata de medida desproporcional para o caso de adimplemento de boa parte do contato, devendo o credor, neste caso, socorrer-se de outras medidas menos gravosas ao devedor, como a execução do título, a cobrança ou a indenização por perdas e danos.
Entretanto, o STJ foi na contramão deste entendimento e, por ocasião do julgamento do Recurso Especial 1.622.555-MG6, afirmou que independentemente da extensão da mora ou da proporção do inadimplemento, o credor está legitimado a promover a ação de busca e apreensão, isto porque a teoria, que não está expressa em texto legal, não deve prevalecer sob o que dispõe a lei acerca da busca e apreensão dos bens.
E o STJ justificou-se dizendo que a teoria do adimplemento substancial poderia ser um incentivo ao inadimplemento, o que acarretaria no aumento dos custos das instituições financeiras para a recuperação do crédito, que, ao final, serão repassados aos demais consumidores que buscam financiamento por esta modalidade de garantia.
Assim, a aplicação da teoria do adimplemento substancial no contrato de alienação fiduciária em detrimento à busca e apreensão, a depender do caso, tende a ser banalizada, posto que, segundo afirmado pelo STJ, tal benefício poderia servir de incentivo aos devedores contumazes para protelarem o cumprimento das obrigações, o que prejudicaria não só a economia, mas também a própria cadeia de consumo.
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1 Conforme ensina Carlos Roberto Gonçalves: "O adimplemento substancial do contrato, todavia, tem sido reconhecido, pela doutrina, como impedimento à resolução unilateral do contrato. Sustenta-se que a hipótese de resolução contratual por inadimplemento haverá de ceder diante do pressuposto de atendimento quase integral das obrigações pactuadas, ou seja, do incumprimento insignificante da avença, não se afigurando razoável a sua extinção como resposta jurídica à preservação e à função social do contrato (CC, art. 421)"
2 STJ. Resp 1581505-SC, 4ª Turma, Relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, julgado em 18/08/2016.
3 STJ. REsp 1.418.593 - MS, Segunda Seção, Relator Ministro Luís Felipe Salomão, julgado em 10/05/2014.
4 TJ/SP. Apelação 1003200-36.2016.8.26.0002, 25ª Câmara de Direito Privado, Relator Claudio Hamilton, julgado em 23/02/2017.
5 TJ/SP. Apelação 1019836-98.2016.8.26.0577, 27ª Câmara de Direito Privado, Relatora Ana Catarina Strauch, julgado em 21/02/2017.
6 STJ. REsp 1.622.555-MG, Segunda Seção, Relator Ministro Marco Buzzi, julgado em 22/02/2017.
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*Eduardo Nieves é sócio sênior do WFaria Advogados e coordenador da área de Contencioso Cível.
*Aline Varella atua na área de Contencioso e Consultivo Cível. Atuação direta na administração de litígios cíveis na Justiça Estadual e Tribunais Superiores.