Constituição de Eireli por pessoas jurídicas: o novo posicionamento do DREI
Através da IN 38, que entrará em vigor no início de maio, o DREI alterou seu entendimento acerca do tema.
quarta-feira, 5 de abril de 2017
Atualizado em 3 de abril de 2017 07:40
Historicamente, o exercício de atividades comerciais se deu, tradicionalmente, de duas formas. De um lado, a possibilidade de exercer individualmente a atividade, como pessoa natural. Alternativamente, a possibilidade do exercício coletivo da atividade, mediante a associação entre pessoas com a criação de uma sociedade.
No passado, tais figuras correspondiam ao comerciante individual e às sociedades comerciais. Com o advento do Código Civil de 2002, foram substituídas pelas figuras do empresário individual e das sociedades empresárias. Não obstante a mudança imposta pelo Código Civil, em termos de responsabilidade patrimonial o empresário individual, pessoa física que é, tal como já ocorria com o antigo comerciante, continuou tendo responsabilidade ilimitada pelas obrigações contraídas, aspecto que sempre representou fator de desestímulo à iniciativa empreendedora individual.
No exterior, diversas alternativas foram criadas para limitar o risco de empreendedores individuais. São exemplos a admissão de sociedades unipessoais ou a adoção de patrimônio separado para o empresário individual, temas que se disseminaram em toda a Europa, sendo inclusive matéria de Diretriz da então denominada Comunidade Econômica Europeia, em 1989.
Nos países da América do Sul, contudo, a limitação de risco para empreendedores individuais foi matéria que sofreu considerável resistência. Assim, por muito tempo, a obtenção de personalidade jurídica, com limitação de responsabilidade dos sócios, demandava a existência de uma sociedade.
Essa resistência passou a ceder quando o Chile, em 2003, criou a figura de sua EIRL - Empresa Individual de Responsabilidad Limitada. No entanto, como observa o jurista chileno Ricardo Sandoval Lopes1, a opção chilena não correspondeu ao observado na Europa, visto que a EIRL chilena não se tratava nem de uma sociedade unipessoal, nem de um patrimônio separado do empresário individual, mas sim de uma forma distinta de pessoa jurídica.
O Brasil, buscando enfrentar a mesma questão, inovou seu ordenamento jurídico ao também propor a criação de sua inicialmente chamada EIRL - Empresa Individual de Responsabilidade Limitada, em termos muito semelhantes ao que se verificou no Chile. Ao longo do trâmite legislativo, contudo, a sigla foi alterada, e ao final surgiu, com a lei 12.441/11, a figura denominada de Eireli.
Com essa medida, o Código Civil, em seu artigo 980-A, passou a prever nova espécie de empresário, distinta do empresário individual e das sociedades, mas que permite a uma única pessoa ser o titular exclusivo do capital da pessoa jurídica, e mediante esse instrumento legal, o titular passa a usufruir de limitação de responsabilidade.
No entanto, a criação dessa nova espécie empresarial, com um brevíssimo texto legal, gerou diversas dúvidas, polêmicas e debates. Desde 2011, muito se discutiu a respeito de inúmeras questões, tais como, dentre outras, o estabelecimento de um capital social mínimo; qual órgão seria responsável pelo registro da Eireli (surgindo daí uma divisão na prática entre as chamadas "Eireli empresárias" e "Eireli simples"); qual seria o documento constitutivo da Eireli; a possibilidade de aplicação da recuperação judicial e da falência a essa figura (dada a omissão legal a respeito); aliás, mostrou-se ela figura tão polêmica que até a pronúncia correta da sigla Eireli é matéria de divergências ainda hoje2.
Contudo, uma das principais polêmicas existentes desde 2011 diz respeito a quem pode constituir e figurar como titular de uma Eireli. Nesse sentido, o texto legal deu margem a interpretações distintas. Dado que o caput do art. 980-A dispõe que a empresa "será constituída por uma única pessoa titular da totalidade do capital social", enquanto o parágrafo 2º dispõe que "A pessoa natural que constituir empresa individual de responsabilidade limitada somente poderá figurar em uma única empresa dessa modalidade", surgiram dois entendimentos divergentes: um de que a Eireli somente poderia ser constituída por pessoas naturais; e o outro, de que tanto pessoas naturais quanto jurídicas poderiam constituir Eireli, mas a pessoa natural somente poderia figurar como titular em uma Eireli.
Ainda em 2011, o então existente DNRC - Departamento Nacional de Registro do Comércio, ao regulamentar o tema da Eireli pela Instrução Normativa 117, adotou o entendimento de que a Eireli somente poderia ser constituída e titularizada por pessoas naturais, vedando a constituição por pessoas jurídicas. Referido entendimento levou a diversos questionamentos e discussões judiciais, mantendo a polêmica em aberto.
Em 2013, com a substituição do DNRC pelo DREI - Departamento de Registro Empresarial e Integração, surgiu a expectativa de que, com a nova regulamentação do DREI, se autorizasse a constituição de Eireli por pessoa jurídica. Entretanto, o DREI, através da Instrução Normativa 10/13, em seu anexo V (Manual de Registro de Eireli), manteve o entendimento anterior do DNRC, vedando às pessoas jurídicas a condição de titular de Eireli. Com isso, continuaram as discussões e medidas judiciais em relação ao tema.
Mas eis que, nesse início de 2017, surge uma novidade a respeito dessa polêmica. Através da Instrução Normativa 38, que conforme os dados divulgados pelo site do DREI, entrará em vigor no início de maio, o DREI alterou seu entendimento acerca do tema, de modo que a nova redação do item 1.2.5 ("Capacidade para ser titular de Eireli") do Manual de Registro, em sua alínea "c", prevê expressamente que pode ser titular de Eireli a pessoa jurídica nacional ou estrangeira.
Com isso, parece que mais uma grande discussão prática sobre o tema da Eireli se encerrará, oferecendo maior segurança jurídica aos empreendedores.
_____________
1 "La otra opción para establecer la limitación de responsabilidad del empresário individual consiste em la creación de una nueva entidade, la Empresa Individual de Responsabilidad Limitada (em adelante EIRL), dotada de personalidad moral, con todas las consecuencias jurídicas que esto trae aparejado. Esta fue la alternativa elegida por el legislador chileno em la Ley n. 19.857, de 11 de febrero de 2003", in LÓPEZ, Ricardo Sandoval. Derecho Comercial - Tomo I - Volumen 1. 7.ed. Santiago: Editorial Jurídica de Chile, 2007, p. 175.
2 A esse respeito, entendemos, a partir de estudos divulgados à época da entrada em vigor da Lei 12.441, que a pronúncia correta deve destacar a letra "i" (com a pronúncia EIRELÍ), sendo uma oxítona.
_____________
*Fernando Schwarz Gaggini é advogado e professor universitário na Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo.