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É abusiva a diferenciação de preços a partir da forma de pagamento escolhida pelo consumidor?

Deverão os termos da MP 764/16 serem declarados como abusivos.

sexta-feira, 31 de março de 2017

Atualizado às 08:10

Como uma das medidas de curto prazo para aquecimento da economia1, o Poder Executivo adotou e posteriormente submeteu ao Congresso Nacional a MP 764 de 20162 que autoriza a "(.) diferenciação de preços de bens e serviços oferecidos ao público, em função do prazo ou do instrumento de pagamento utilizado".

Em linhas gerais o vendedor / fornecedor fica autorizado a cobrar valores diferentes pelo mesmo produto / serviço colocado no mercado de consumo, a depender da forma / plataforma de pagamento (cartão de crédito, cheque ou dinheiro, etc.).

A MP (ainda) afirma (no parágrafo único do artigo primeiro) ser nula a cláusula contratual que proíba ou restrinja a diferenciação autorizada em seu caput.

Considerando a fidelidade da base governista no Congresso (ao menos no momento em que este artigo é escrito) a MP (aparentemente) não terá maiores obstáculos para ser convertida efetivamente em lei.

O que se pretende analisar, e de forma superficial, é a legalidade do texto proposto (e já vigente) quando se trata de aplicação para o consumidor (somente o compreendido / protegido pelo CDC.

DOS JULGAMENTOS PROFERIDOS PELO STJ

No ano de 2015 o STJ julgou Recurso Especial3 que analisou o tema.

A discussão era exatamente analisar a possibilidade de prática de preços diferentes para vendas do mesmo produto / serviço a partir da plataforma de pagamento escolhida pelo consumidor.

O entendimento final (e unânime) foi o da abusividade de qualquer cláusula que permita tal ato "discriminatório" ao consumidor.

No final do ano de 2016 o STJ novamente analisou o tema4, ratificando o quanto decidido anteriormente, declarando a abusividade de diferenciação de preços de produtos e serviços colocados no mercado de consumo, a depender da forma de pagamento escolhida pelo adquirente (consumidor).

As razões de ambos os julgados são, em resumo: (i) a aplicação do Art. 39 em seus incisos V e X do CDC; (ii) o rol meramente exemplificativo do Art. 51 do CDC, o que permite a "inclusão" dos preços diferentes em seu regime de abusividades; (iii) a vedação existente no inciso X, da alínea "d" do § 3º do Artigo 36 da lei 12.529/11 (Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência).

Ocorre que mesmo após a MP 764/16 os escritos (lidos pelo subscritor do presente texto) sobre o tema simplesmente vinculam-se quase que integralmente aos citados julgados, como se nenhuma mudança tivesse ocorrido.

É como se a realidade jurídica do momento dos citados julgamentos (em especial o de 2015) fosse a mesma que agora, propiciando a aplicação irrestrita daquele entendimento do STJ.

É importante afirmar que estabilização da jurisprudência não é o mesmo que imutabilidade incondicionada de seus termos. A sedimentação jurisprudencial é saudável, quando visa trazer segurança à quem busca a solução (ou orientação) de seu caso concreto, contando que se recorde sempre que as questões sociais, econômica, jurídicas são constantemente mutáveis, não podendo o operador do direito fechar seus olhos para esse ponto.

DA (ATUAL) EXISTÊNCIA DE DOIS TEXTOS LEGAIS VIGENTES

Ora, diferentemente de 2015 há uma MP, editada pelo órgão constitucionalmente competente, afirmando exatamente o contrário do que decidiu o STJ.

Se antes os Ministros da Corte Cidadã se posicionaram a partir do CDC (arts. 39 e 51, inclusive nesse último incluindo uma abusividade inexistente no texto), agora há uma MP que afirma exatamente o contrário.

Além disso a lei 12.529/11 afirma a impossibilidade de diferenciação de preços enquanto a MP afirma (também) o contrário. Qual norma, então, deve ser aplicada (se sobrepõe) e, principalmente, por qual(is) fundamento(s)?

O CDC é aplicado sempre que houver uma relação de consumo, (exatamente o caso analisado neste texto) e, sobre isso, são desnecessárias maiores análises.

Ocorre que a partir da existência de uma MP, afirmar (isoladamente) afronta ao inciso X do artigo 39 cai por terra, exatamente pelo fato de que o aumento ocorre com justa causa: questões econômicas que demandam uma movimentação de valores no mercado, ensejando uma norma vigente que permite tal ato.

Se há ordem autorizando a alteração de preços a partir da plataforma de pagamento escolhida, também cai por terra a aplicação isolada do inciso V.

A vantagem, pautada em lei vigente, não pode ser isoladamente declarada como excessiva. Caso contrário qualquer outro normativo legal que fosse de encontro a qualquer interesse do consumidor seria enquadrado nesse dispositivo.

Constando a possibilidade de cobrança a partir de MP, sendo ela então justificada, não sendo (isoladamente) uma vantagem excessiva a outra parte, como afirmar que haveria mesmo que implícita uma afronta ao artigo 51 do CDC e consequentemente ser declarada nula uma cláusula do negócio que aplique uma norma legal?

Os fundamentos atuais que visam afirmar que a cobrança diferente de preços a partir da plataforma de pagamento não podem ser sustentados, havendo a necessidade de outro, mesmo que, ao final, alguns dos dispositivos legais sejam os mesmos.

Para tanto é preciso saber, reitere-se, qual norma deve ser aplicada: MP 764/16 ou 12.529/11?

A SUPRALEGALIDADE DO CDC E O DIÁLOGO DAS FONTES

Me parece que seja o caso do segundo dispositivo legal, não pelo seu texto, mas sim por entender que ele se aplica e se amolda ao interesse do CDC. Explico.

A doutrina trata o CDC como tendo uma natureza jurídica de supralegalidade. Referido diploma legal, então, seria "superior" aos demais quando trata dos direitos do consumidor, exatamente pelo fato de que a própria CF 5 afirmou a necessidade de o Estado promover a defesa dos consumidores.

Sendo o CDC uma norma intimamente decorrente de ordem Constitucional, ela se torna supralegal, sobrepondo-se à outros normativos que vão de encontro a essa "defesa" dos direitos dos consumidores.

Nesse ponto, e para que esse conceito fique claro, é importante trazer ensinamento de Sérgio Cavalieri Filho6.

"Aqui não cabe invocar o princípio lex posterior generais non derrogar priori speciali, porque em matéria de consumo o CDC é lei especial, específica e exclusiva, a lei que recebeu da Constituição a incumbência de estabelecer uma disciplina única e uniforme para todas as relações de consumo, que deve prevalecer naquilo que inovou. As leis incompatíveis com o CDC, gerais ou especiais, não prevalecem, apenas coexistem naquilo que com ele estão em harmonia."

Assim as leis que, mesmo posteriores, vão de encontro aos termos do CDC não prevalecem, exatamente pelo status constitucional que o legislador originário deu à defesa dos direitos dos consumidores.

Interessante artigo que afirma sobre a supralegalidade do CDC foi escrito por Rogério Gomes de Lauro, Shirlena Campos de Souza Amaral, Nathani Siqueira Lima e Carlos Henrique Medeiros de Souza7. É importante citar trecho do referido trabalho.

O CDC é considerado pela doutrina como uma norma de caráter principiológico, em face da previsa~o constitucional do mesmo, em seu ja' citado artigo 5o, XXXII. Atribui-se a ele, inclusive, uma ordem pu'blica e de interesse social, geral e principioló'gica, de forma que, no ordenamento juri'dico brasileiro, prevalece em detrimento das demais normas especiais anteriores em eventuais conflitos. Exemplo disso e' a prevale^ncia do CDC sobre as chamadas leis especiais setorizadas, que tratam do transporte, automo'veis, alimentos, dentre outros. Assim, diz-se que o Co'digo Consumerista tem efica'cia supralegal, o que e' equivalente a dizer que, em um prisma hiera'rquico, encontra-se entre a CF e as leis ordina'rias.

Sendo assim o CDC sobrepõe-se às leis que "afrontem" o seu texto, indo de encontro a seus normativos.

Seu caráter supralegal o coloca em posição privilegiada na análise vertical da estrutura normativa nacional (e internacional, já que suas disposições aplicam-se inclusive a tratados, por exemplo, que digam o contrário).

Diante dessa característica de supralegalidade, com origem constitucional, e sendo o CDC uma norma principiológica, seus termos e intenções legalmente estabelecidos, "aspergem" seus efeitos a outras normas legais que visem proteger o bem jurídico que ele tutela, qual seja: a defesa do consumidor.

O CDC (e nesse ponto é pedida vênia pela figura de linguagem que utilizará) "imanta" outras normas que tratam e conferem direitos aos consumidores, partes essas hipossuficientes dentro da relação de consumo.

A norma consumerista "dá peso constitucional" quando algum outro diploma legal trate e traga norma e previsão mais favorável ao consumidor. Tal "fenômeno" (se assim pode ser chamado), não é desconhecido da doutrina.

Conforme ensina Marques (2004), ha' um dia'logo entre as fontes, de forma que se torna possi'vel a aplicac¸a~o concomitante de duas normas, ao mesmo tempo, e ao mesmo caso, tanto de forma complementar como subsidia'ria. Assim, estabelece-se uma composic¸a~o do liti'gio que seja aberta, flexi'vel, que busca a protec¸a~o ao mais vulnera'vel. E' uma aplicac¸a~o coerente das leis de Direito Privado, chamada Coere^ncia Derivada ou Restaurada, que busca uma coere^ncia mais eficaz, seja hiera'rquica ou funcional do sistema legal, de modo a evitar a antinomia.8

Unem-se as normas que tratam do direito ao consumidor, considerando a ordem constitucional de que ele deve ser protegido. Além da doutrina o tema já foi afirmado na jurisprudência. O STJ já se manifestou sobre o assunto diversas vezes, sempre primando pela norma mais benéfica ao direito do consumidor.

CONSUMIDOR E CIVIL. ART. 7º DO CDC. APLICAÇÃO DA LEI MAIS FAVORÁVEL. DIÁLOGO DE FONTES. RELATIVIZAÇÃO DO PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE. RESPONSABILIDADE CIVIL. TABAGISMO. RELAÇÃO DE CONSUMO. AÇAO INDENIZATÓRIA. PRESCRIÇÃO. PRAZO.
- O mandamento constitucional de proteção do consumidor deve ser cumprido por todo o sistema jurídico, em diálogo de fontes, e não somente por intermédio do CDC.
- Assim, e nos termos do art. 7º do CDC, sempre que uma lei garantir algum direito para o consumidor, ela poderá se somar ao microssistema do CDC, incorporando-se na tutela especial e tendo a mesma preferência no trato da relação de consumo.
(.) Recursos especiais providos.9

Sendo assim (atualmente) a lei 12.529/11 se aplica pelo fato de que a MP 764/16 traz norma mais prejudicial ao consumidor, e não pelos fundamentos anteriormente invocados pelo STJ nas decisões anteriores.

A lei 12.529/11, por trazer disposição mais benéfica "magnetiza-se" ao CDF, ante sua natureza supralegal, aplicando-se o dialogo das fontes, tomando maior envergadura, sobrepondo-se à norma (MP 764/16) que afirme o contrário.

Deverão os termos da MP 764/16 serem declarados como abusivos, vez que contrariam norma já existente mais benéfica ao consumidor, indo de encontro com a norma Constitucional de proteção à parte hipossuficiente da relação de consumo.

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1 Governo quer legalizar descontos para compras à vista: hoje, isso é proibido

2 MP 764/16
3 REsp n.º 1.479.039 - MG
4 REsp n.º 1.610.813 - ES
5 Art. 5º, inciso XXXII
6 Cavalieri Filho, Sergio, Programa de direito do consumidor, 2. ed., São Paulo: Atlas, 2010, p. 17
7 O Código de Defesa do Consumidor no contexto do ordenamento jurídico brasileiro e a teoria do diálogo das fontes
- Acessado em 27/02/2017 às 20:15
8 O Código de Defesa do Consumidor no contexto do ordenamento jurídico brasileiro e a teoria do diálogo das fontes - Acessado em 27/02/2017 às 20:15
9 REsp n.º 1009591

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*José Tito de Aguiar Junior é advogado e pós-graduado em Direito Processual Civil.

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