O Tribunal da Cidadania e a Teoria do Adimplemento Substancial
A teoria acolhida pela Corte, defende que o devedor de boa-fé que tenha adimplido regularmente parcela considerável de seu débito receba do Estado proteção contra as constrições patrimoniais impostas pelo credor.
quinta-feira, 9 de março de 2017
Atualizado às 08:38
Uma recente decisão do STJ chamou a atenção por indicar mudança no posicionamento jurisprudencial daquela Corte sobre a aplicação da "Teoria do Adimplemento Substancial".
O julgado em questão cuidou de uma ação de busca e apreensão promovida por um banco de uma montadora de veículos, que concedeu um empréstimo garantido por alienação fiduciária. Mesmo adimplidas 44 das 48 parcelas contratadas, o STJ entendeu ajustada ao caso a busca e apreensão, com base no voto divergente condutor da maioria que considerou "absolutamente imprópria a invocação da teoria do adimplemento substancial (...) como fundamento idôneo a afastar o legítimo direito de ação do credor fiduciário de promover a busca e apreensão do bem".
As instituições financeiras há muito gozam de uma proteção estatal invejável. Aqui, mais do que em qualquer outro lugar, são tratadas como entidades estruturais da economia e que devem ser mantidas a salvo das intempéries da conjuntura político-econômica. Tudo se altera no seu entorno, mas os seus interesses permanecem salvaguardados: as súmulas 382 e 541 do STJ estão aí para confirmar que a limitação dos juros imposta pela CF se tornou apenas retórica e que aqui se pode, sim, praticar o anatocismo.
A alienação fiduciária é um instituto draconiano, que visa a garantia do credor de forma alheia às circunstâncias do negócio realizado entre as partes. Noções de isonomia e equilíbrio contratual não fazem parte do seu conceito. Para se ter uma noção de sua ancestralidade, a sua origem remonta ao Direito Romano e historicamente precedeu o penhor e a hipoteca. Aqui no Brasil, ganhou corpo e definição no decreto-lei 911/69, editado no período do Regime Militar para conferir maior celeridade nas execuções judiciais dos créditos das instituições financeiras. Ao longo do tempo alcançou outros segmentos de crédito: a lei 9.514/97 tornou possível a alienação fiduciária de bem imóvel e o próprio CC agora o regulamenta, nos seus artigos 1.361 a 1.368.
Diante do claro desequilíbrio das relações entre instituições financeiras e tomadores de crédito, surgiram contrapesos jurídicos como o CDC e a inserção definitiva no nosso Sistema Jurídico dos princípios da "boa-fé contratual", "proporcionalidade" e "razoabilidade", dos quais a Teoria do Adimplemento Substancial é consectário direto.
Em breve referência, a Teoria defende que o devedor de boa-fé que tenha adimplido regularmente parcela considerável de seu débito - mais de 80% - deve receber do Estado a proteção contra as constrições patrimoniais impostas pelo credor, que nesta circunstância, embora previstas contratualmente, tornam-se desproporcionais e excessivamente onerosas.
E o STJ acolheu a Teoria em seus julgados para indeferir a medida judicial constritiva quando esta se mostrou desproporcional e de caráter espoliativo, como no caso do devedor da última parcela de um longo financiamento. O fundamento da decisão foi o de que "não atende à exigência da boa-fé objetiva a atitude do credor que desconhece esses fatos e promove a busca e apreensão, com pedido liminar de reintegração de posse"1.
Agora, porém, o STJ retrocede e abandona o padrão ético que adotara para contemplar os interesses dos credores fiduciários. O argumento lançado em acórdão é o de que a invocação da Teoria não é "fundamento idôneo a afastar o legítimo direito de ação do credor fiduciário", o que aponta, nestes casos, para o apego da Corte à literalidade da lei, como se não fosse possível qualquer outro tipo de exegese; como se houvesse um impeditivo legal para se tomar uma decisão pautada no bom-senso (!). Esta mudança jurisprudencial legitima o discurso insano dos que entendem que as instituições financeiras devem receber tratamento diferenciado daquele dispensado ao conjunto da sociedade.
Lembramos do comentário à decisão feito pelo advogado da instituição financeira, para quem o acolhimento da tese poderia "encarecer o crédito, dificultar o acesso de pessoas a novos financiamentos de veículos e aumentar a recusa de bancos por novos contratos que tivessem algum risco de inadimplência." Seria plausível se aqui não praticássemos as mais altas taxas de juros de que se tem notícia; se aqui não tivéssemos o "crédito mais caro do mundo".
E causa estupefação, até, o argumento lançado de que os bancos recusariam novos contratos se tiverem "algum risco" de inadimplência. Ora, a taxa de juros não é estabelecida exatamente em cima deste risco? Em que tipo de mercado pretendem operar?
Por tudo isto, torna-se preocupante a situação dos empréstimos imobiliários, também formalizados com garantia fiduciária, que pelo visto terão este mesmo tratamento no Judiciário. São empréstimos de trinta anos ou mais, em sua maior parte contraídos para a aquisição da casa própria e que estarão sujeitos a uma jurisprudência que aplica a lei com um rigor férreo, como se a sua literalidade dispensasse qualquer outro tipo de interpretação e até contextualização.
Estaremos, então, diante de uma situação paradoxal: por um lado, a lei que protege o "bem de família"; por outro, a jurisprudência que permite seja esta perdido se os interesses do credor fiduciário não forem atendidos em sua inteireza, mesmo que de proporções ínfimas. Enfim: teremos um Estado que condiciona a proteção da família aos interesses de seus credores financeiros.
A sociedade espera mais de uma Corte que tem a missão de ser o nosso "Tribunal da Cidadania".
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1 REsp 272739/MG
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*Carlos André Rosa Martins é advogado especialista em Direito Corporativo e Coordenador da Assessoria Jurídica do escritório Amaral & Barbosa Advogados.