ISS não incide em contratos de franquia
O contrato de franquia tem como atividade-fim a cessão de um modelo de negócio para o qual concorrem uma multiplicidade de atividades de ambas as partes.
quinta-feira, 2 de março de 2017
Atualizado em 1 de março de 2017 14:36
Prática de origem estrangeira, o franchising se caracteriza pelo acordo entre franqueador e franqueado por meio do qual o último passa a usar o modelo de negócio e a marca do primeiro.
A marca é inserida, aí, como parte importante do modelo de negócio e como uma das responsáveis por permitir que o franqueado já obtenha um certo número de clientes (por ela atraídos) logo no início de seu novo empreendimento (SHERMAN, Andrew J. Franchising & licensing: two powerful ways to grow your business in any economy. 3 ed. New York: American Management Association, 2004, p.11-12). O conjunto de direitos dados ao franqueado costuma ser amplo, usualmente abarcando um conjunto de marcas e códigos (logotipo, design, uniformes, etc.) e, em especial, o "know-how", cuja transmissão se dá por meio de manuais, programas de treinamento e de suporte (SHERMAN, op. cit., p.107).
Em poucas palavras: cuida de espécie de "locação" ou "cessão" de um modelo de negócio, mediante pagamento de valor, enquanto durar o uso ou locação do negócio em questão.
Pelo menos trinta e três países possuem regulação jurídica explícita sobre o franchising, dentre eles o Brasil, que define legalmente a "franquia" como o sistema pelo qual o franqueador cede ao franqueado "o direito de uso de marca ou patente", "o direito de distribuição exclusiva ou semi-exclusiva de produtos ou serviços" e "o direito de uso de tecnologia de implantação e administração de negócio ou sistema operacional desenvolvidos ou detidos pelo franqueador" (art. 2º da lei 8.955/94).
A definição legal brasileira é sábia. Sendo "locação" ou "cessão" de todo um modelo de negócio, o franchising pode adquirir inúmeras feições, cada qual com um ou mais elementos da definição legal. Independentemente das variações, há algo que os une: os diferentes direitos e atividades envolvidos sempre servem ao fim último de proporcionar ao franqueado a reprodução do negócio concebido pelo franqueador.
O contrato de franquia tipicamente abrange, portanto, prestações recíprocas de natureza variada. Ambas as partes assumem obrigações de dar e de fazer, todavia indivisíveis, porquanto partes de um todo (a franquia), de uma locação ou cessão de todo um modelo de negócio. Por isso, é compreendido pelos estudiosos como um contrato que abrange "prestações recíprocas e sucessivas com o fim de se possibilitar a distribuição, industrialização ou comercialização de produtos, mercadorias ou prestação de serviços, nos moldes e forma previstos em contrato de adesão". (SIMÃO FILHO, Adalberto. Franchising. 3 ed. São Paulo: Atlas, 1998, p.36, 42). Em sentido semelhante, o STJ salientou que o contrato de franquia é "formado por vários elementos circunstanciais" (AgRg no Ag 746597/RJ).
No debate sobre a incidência ou não de ISSQN sobre franquia, destacam-se três linhas argumentativas: (1) comparação entre franquia e locação de bem móvel; (2) comparação entre franquia e o conceito constitucional de serviço para fins tributários; (3) exame da questão diante da distinção entre atividade-meio e atividade-fim.
Sobre o ponto (1), argumenta-se que, antes da LC 116, o contrato de franquia deveria ser tributado pelo ISSQN a título de "locação de bem móvel" (item 79 da lista anexa ao DL 406/68).
No leading case sobre interpretação jurídica sobre a incidência do ISSQN (RE 114354/RJ), o STF assentou que, na cobrança desse tributo, não cabe incluir atividades-meio e não cabe incidência por analogia (o que, aliás, remonta ao clássico acórdão do STF no caso RE 78927/RJ, ocasião na qual Aliomar Baleeiro afirmou a impossibilidade de cobrança do Imposto Municipal sobre Serviços através de ampliação dos itens taxativos da lista por emprego de analogia).
Mais recentemente, em 2014, o mesmo STF, em Plenário, reafirmou os critérios tributários interpretativos da vedação de incidência analógica e a necessidade de respeito aos conceitos de direito privado adotados pelo Direito Tributário, "na forma do art. 110 do CTN, à luz da interpretação conjunta do art. 146, III, combinado com o art. 155, inciso II e § 2º, IX, 'a'," todos da CF (cf. RE 540829/SP; RE 602295 AgR/RJ).
Os critérios agasalhados pelo STF levam à conclusão da impossibilidade de incidência tributária da franquia como se "locação de bem móvel" fosse; afinal, a tese contrária desconsideraria a relação entre meio e fim própria da franquia e das múltiplas atividades e direitos que podem lhe compor, promoveria analogia entre locação de bem móvel e a vária prática da franquia e, por fim, equipararia institutos diferentes (locação e franquia), contrariando, assim, o respeito constitucional e infraconstitucional aos conceitos de direito privado adotados na seara tributária.
De toda sorte, afastados os critérios do STF mencionados supra, a incidência a título de locação de bem móvel ainda assim esbarraria no entendimento afirmado pela mesma Corte Constitucional em sede de Súmula Vinculante (ref. Súmula Vinculante 31).
Sobre o ponto (2), nos mesmos termos do entendimento consubstanciado na Súmula Vinculante 31, o STF também afirmou a existência de um "conceito constitucional de serviço que provém do direito privado", cujo núcleo consiste em obrigação de fazer (cf. RE 602295 AgR/RJ; RE 446.003-AgR; AI 623.226-AgR). Em linhas gerais, o fato gerador do ISS enquadra-se no conceito de serviço, prestado com autonomia, na mesma linha da definição do CC já revogado, no seu art. 1.216, constante do art. 594 do CC atual.
A franquia, no entanto, não se amoldaria a tal conceito, por ser contrato que envolve prestações recíprocas de natureza variada. Ambas as partes assumem obrigações de dar e de fazer, indivisíveis porquanto partes de um todo, a franquia, a cessão de um modelo de negócio (que, de sua parte, evidentemente não pode ser reduzido a um fazer).
Esse mesmo entendimento já foi adotado pelo STJ em inúmeras oportunidades (AgRg no Ag 746597 / RJ; AgRg no Ag 581593 / MG; REsp 222246 / MG; REsp 189.225; etc.), e coincide com a forma pela qual a doutrina examinou a questão, ao afirmar que o conceito constitucional de serviço tributável abrange "a) as obrigações de fazer e nenhuma outra; b) os serviços submetidos ao regime de direito privado não incluindo, portanto, o serviço público (porque este, além de sujeito ao regime de direito público, é imune a imposto, conforme o art. 150, VI, "a", da Constituição); c) que revelam conteúdo econômico, realizados em caráter negocial - o que afasta, desde logo, aqueles prestados a si mesmo, ou em regime familiar ou desinteressadamente (afetivo, caritativo, etc.); d) prestados sem relação de emprego - como definida pela legislação própria - excluído, pois, o trabalho efetuado em regime de subordinação (funcional ou empregatício) por não estar in comércio." (BARRETO, Aires F. ISS - Não incidência sobre Franquia. Revista de Direito Tributário, n. 64, p.216, 221).
Em relação ao ponto (3), em muitas ocasiões diferentes ao longo do tempo, o mesmo STF logrou afirmar e reafirmar que não pode haver incidência de ISSQN em relação às chamadas atividades-meio (AI 601009 AgR / MG; RE 114.354; RE 108.665; RE 105.844; RE 97.804; etc.); o mesmo ocorreu no âmbito do STJ (v.g., AgRg no AREsp 445726 / RS; REsp 883254/MG; AgRg nos EDcl no AREsp 48.665/PR; AgRg no REsp 1.192.020/MG; REsp 883.254/MG; etc.).
O contrato de franquia tem como atividade-fim a cessão de um modelo de negócio (do qual a marca é um dos itens importantes), para o qual concorrem uma multiplicidade de atividades de ambas as partes. Desmembrá-lo para fins tributários pode ser tido como violação da distinção entre atividade-meio e atividade-fim e da intributabilidade da atividade-meio no âmbito do ISSQN, consagrada na jurisprudência dos tribunais superiores. Além disso, pode incorrer em contrariedade à unicidade que o contrato de franquia caracteristicamente confere à diversidade de relações jurídicas que congrega internamente (e a proteção especial dada aos conceitos de direito privado pelo art. 110 do CTN).
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*Henrique Napoleão Alves é sócio do escritório Sacha Calmon - Misabel Derzi Consultores e Advogados.
*Eduardo Junqueira Coelho é sócio conselheiro do escritório Sacha Calmon - Misabel Derzi Consultores e Advogados.