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A mudança de paradigma quanto ao depositário infiel tributário

Saul Tourinho Leal e Nayanni Enelly

O Brasil é o país com a maior carga tributária em toda América Latina e Caribe.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Atualizado em 23 de fevereiro de 2017 11:45

Em sua primeira reunião como presidente da Suprema Corte ano passado, a ministra Cármen Lúcia, diante de 26 governadores ansiosos para encontrarem uma solução para a guerra fiscal, afirmou que a "justiça restaurativa" poderia ser uma saída. Semanas depois, ao fim de uma reunião com secretários de Fazenda, arrematou: "Ao invés de falarmos em guerra fiscal, podemos começar a falar em conciliação". Negando ser a revanche a saída, propôs a restauração de laços esgarçados entre irmãos federados. Depois, rompendo com o paradigma da "guerra", exortou todos a buscarem o caminho da reconciliação.

Cortes Constitucionais, e seus juízes, muitas vezes se comunicam como se falassem por parábolas, enviando mensagens sutis à comunidade por meio de comentários breves sobre pontos relevantes. É fundamental que os interessados em dialogar com a jurisdição constitucional tenham sensibilidade para decifrar todas as nuances que essas manifestações como essa.

O constitucionalismo global tem se debruçado sobre pautas voltadas à emancipação do semelhante, o controle do poder, à prosperidade e à estabilidade política. Nesse cenário, temas tributários aparecem frequentemente. E, como consequência, uma nova forma de olhar a relação entre o contribuinte e o Estado pode estar em curso. Inclina-se a uma dimensão mais humanista da tributação.

Respeito à comunidade, proteção às minorias, reafirmação de compromissos morais e materialização da dignidade são motes influentes do debate constitucional contemporâneo. O Direito Tributário brasileiro tem sido impactado por isso. Amplia-se a consistente base construída e consolidada no século XX cobrindo-a por um compromisso humanista contemporâneo.

Mergulhada nessa atmosfera, a Suprema Corte, no final do ano passado, declarou a inconstitucionalidade da lei 8.866/94, que: (i) criou a ação de depósito fiscal, para forçar, sob pena de prisão, o devedor a depositar o valor referente à dívida na contestação, ou após a sentença, no prazo de 24 horas; (ii) impôs ao devedor o processo judicial de depósito, sem que tenha ocorrido a finalização do processo administrativo fiscal; e (iii) dispôs sobre a proibição de, em se tratando de coisas fungíveis, seguir-se o disposto sobre o mútuo (CC/16, art. 1280; CC/02, art. 645), com a submissão do devedor a regime mais gravoso de pagamento. O conjunto de medidas exprime uma ética ultrapassada quanto à forma pela qual a comunidade deve pagar tributos.

Depositário infiel é quem está obrigado a recolher aos cofres públicos impostos, taxas e contribuições, inclusive à Seguridade Social. Quando não o faz, pode sofrer uma ação civil de depósito, para que seja assegurado o valor devido. Passados 15 dias da citação, não tendo havido o depósito, era considerado infiel. Até mesmo a apresentação da sua defesa - um direito fundamental - estava condicionada à comprovação do depósito judicial de todo o valor devido à Fazenda Pública. Isso é o mesmo que exigir depósito prévio como requisito de admissibilidade de ação judicial, algo vedado pela súmula vinculante 28 do STF. Há também violação às garantias constitucionais do devido processo legal (art. 5º, LIV e LV da CF) e ao princípio da proporcionalidade e seus subprincípios da necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito.

No STF, julgando a ADI 1055, no final do ano passado, o ministro Gilmar Mendes destacou que o Estado possui diversos mecanismos para assegurar o pagamento dos tributos, além de haver precedente da própria Corte vedando a prisão do depositário infiel, por disposição do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e da Convenção Americana de Direitos Humanos.

Segundo o ministro Gilmar Mendes, a lei 8.866/94 institui a figura do depositário infiel tributário por pura ficção legal, hipótese que contraria o art. 110 do CTN, o qual dispõe que a lei infraconstitucional não é apta a alterar definições, conteúdos, conceitos e formas inerentes ao direito privado.

Apesar de a Suprema Corte reconhecer um dever fundamental de pagar tributos, expresso no § 1º do art. 145 da CF, a lei de Execução Fiscal (lei 6.830/80) e a medida cautelar fiscal (lei 8.397/92) são instrumentos suficientes, adequados e proporcionais para a cobrança tributária. Bem por isso, a ação de depósito fiscal está em desuso, fato reconhecido pelo STF nesse julgamento. O relator também citou a possibilidade de penhora de bens e a inscrição do devedor em cadastro de inadimplentes como formas idôneas de buscar a satisfação do crédito tributário. Intimidar contribuintes em suas liberdades para que paguem com o próprio corpo dívidas tributárias criaria uma "situação desproporcional para maximizar a arrecadação".

Conferindo segurança jurídica às consequências geradas pela decisão, a Suprema Corte entendeu que as ações de depósito fiscal em curso deverão ser transformadas em ação de cobrança, de rito ordinário, com oportunidade ao Poder Público para a sua adequação ou para requerer a sua extinção. A decisão alcançada pelo julgamento da ADI 1055 foi unânime.

O Brasil é o país com a maior carga tributária em toda América Latina e Caribe. Estudo da OCDE revela que brasileiros pagam o equivalente a 33,4% do tamanho da economia em taxas e impostos. A vida do contribuinte aqui nunca foi fácil. Nem a do empreendedor. É um erro apostar as fichas num modelo de arrecadação segundo o qual o contribuinte pagará seus débitos tributários com o corpo e a liberdade. Oferecer condições para que empresários em dificuldade saneiem seus negócios, retornem ao mercado com dignidade, gerem receitas e paguem os tributos é uma combinação valiosa para a concretização do ideal constitucional de função social da propriedade (art. 170, III).

A decisão do STF mostra uma forma de restaurar o devedor, ao contrário de destruí-lo. Também converte a revanche em reconciliação entre irmãos - públicos e privados - cuja missão de prosperidade requer cooperação e uma sincera relação de confiança.

A aposta na inteligência e na cooperação como instrumentos modernos da satisfação desses créditos pode encorajar países com dificuldade de arrecadação a fazerem o mesmo. O Estado deveria, sim, concentrar seus esforços no estabelecimento de políticas fiscais eficientes que facilitassem o efetivo pagamento das dívidas tributárias. É uma saída que se funda numa justiça tributária restaurativa em substituição à uma justiça retributiva.

Essa decisão do STF mostra ter a razão a presidente da Corte, ministra Cármen Lúcia, quando, em 2016, afirmou ser a reconciliação uma opção à guerra, e a restauração uma solução ao esgarçamento. São essas mensagens embutidas em discretos comentários de juízes de Supremas Cortes que abrem espaço para se enxergar o amanhã na jurisdição constitucional.
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*Saul Tourinho Leal é associado sênior do escritório Pinheiro Neto Advogados e doutor em Direito Constitucional.

*Nayanni Enelly é colaboradora do escritório Pinheiro Neto Advogados e acadêmica de Direito da UnB.










* Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.
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