Contratações lícitas, sem licitação
Em situações com circunstâncias especiais e sempre a bem do serviço público, pode a Administração Pública optar por contratar sem procedimento licitatório.
segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017
Atualizado em 17 de fevereiro de 2017 11:29
Dado o alto grau de corrupção que grassa em nosso país, e com o advento no cenário jurídico-político nacional da "Operação Lava Jato", é até certo ponto natural a proliferação de acusações contra órgãos e autoridades públicas, no sentido de contratar obras e/ou serviços públicos, sem a devida observância dos princípios administrativos e especialmente das normas e leis atinentes à licitação pública.
A lei 8.666/93, que institui normas para licitações e contratos da Administração Pública, disciplina a matéria, impondo conceitos, regras e limites. Mas também prevê situações de inexigibilidade de licitação, dentro de determinadas condições e circunstâncias, e sempre que houver necessidade e até vantagem para o Poder Público. Assim dispõe o artigo 25 da lei supra citada :-
"Art. 25. É inexigível a licitação quando houver inviabilidade de competição, em especial:
I. para aquisição de materiais, equipamentos, ou gêneros que só possam ser fornecidos por produtor, empresa ou representante comercial exclusivo, vedada a preferência de marca, devendo a comprovação de exclusividade ser feita através de atestado fornecido pelo órgão de registro do comércio do local em que se realizaria a licitação ou a obra ou o serviço, pelo Sindicato, Federação ou Confederação Patronal, ou, ainda, pelas entidades equivalentes;
II. para a contratação de serviços técnicos enumerados no art. 13 desta lei, de natureza singular, com profissionais ou empresas de notória especialização, vedada a inexigibilidade para serviços de publicidade e divulgação;
III. para contratação de profissional de qualquer setor artístico, diretamente ou através de empresário exclusivo, desde que consagrado pela crítica especializada ou pela opinião pública.§ 1o - Considera-se de notória especialização o profissional ou empresa cujo conceito no campo de sua especialidade, decorrente de desempenho anterior, estudos, experiências, publicações, organização, aparelhamento, equipe técnica, ou de outros requisitos relacionados com suas atividades, permita inferir que o seu trabalho é essencial e indiscutivelmente o mais adequado à plena satisfação do objeto do contrato." = grifos nossos =
É de se atentar que, ao dispensar o procedimento licitatório, a norma o faz apenas em determinadas situações, justificadas pela prestação de serviços técnicos especializados de natureza singular, em que se contrata profissional ou empresa com notória especialização, elevado conhecimento técnico e larga experiência profissional. Assim, não basta que o profissional ou empresa a ser contratado(a) goze da confiança pessoal do gestor público. A sua qualificação há que ser diferenciada e aferida por elementos objetivos, reconhecidos pelo mercado e pela sociedade em geral, com sólida formação acadêmica e profissional (inclusive em caso de empresa e/ou de equipe de trabalho), e ainda com comprovada experiência e atuação pretérita em diversos casos semelhantes.
Outrossim, especificamente com relação à prestação de serviços jurídicos por contratação da Administração Pública, a jurisprudência pátria já tem reconhecido ser impossível aferir, por processo licitatório, o trabalho intelectual do advogado, considerado de natureza personalíssima e singular. De V. Acórdão do STJ, no REsp 1.192.332 RS, extrai-se que :-
"A singularidade dos serviços prestados pelo advogado consiste em seus conhecimentos individuais, estando ligada à sua capacitação profissional, sendo, dessa forma, inviável escolher o melhor profissional, para prestar serviço de natureza intelectual, por meio de licitação, pois tal mensuração não se funda em critérios objetivos (como menor preço). Diante da natureza intelectual e singular dos serviços de assessoria jurídica, fincados, principalmente na relação de confiança, é licito ao administrador, desde que movido pelo interesse público, utilizar da discricionariedade, que lhe foi conferida pela lei, para a escolha do melhor profissional (...)".
Também a Doutrina socorre a tese da singularidade da prestação de serviços jurídicos, no sentido da Administração dispensar a respectiva contratação de procedimentos licitatórios. O consagrado mestre CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO define que
"um serviço deve ser havido como singular quando nele tem de interferir, como requisito de satisfatório atendimento da necessidade administrativa, um componente criativo de seu autor, envolvendo o estilo, o traço, a engenhosidade, a especial habilidade, a contribuição intelectual, artística ou a argúcia de quem o executa. É o que ocorre quando os conhecimentos científicos, técnicos, artísticos ou econômicos a serem manejados (conforme o caso) dependem, pelo menos, de uma articulação ou organização impregnada pela específica individualidade e habilitação pessoal do sujeito (pessoa física ou jurídica, indivíduo ou grupo de indivíduos) que o realize. O serviço, então, absorve e traduz a expressão subjetiva e, pois, a singularidade de quem o fez, no sentido de que -- embora outros, talvez até muitos, pudessem também fazê-lo -- cada qual o faria à sua moda, de acordo com os próprios critérios, sensibilidade, juízos, interpretações e conclusões, parciais ou finais".
Também o insigne MARÇAL JUSTEN FILHO entende que singular é o interesse público a ser satisfeito, com estas palavras :-
"Como já observado, a natureza singular não é propriamente do serviço, mas do interesse público a ser satisfeito. A peculiaridade do interesse público é refletida na natureza da atividade a ser executada pelo particular. Surge, desse modo, a singularidade". Dessa afirmação, extrai-se que os serviços advocatícios são singulares, pois decorrem sempre de um relevante interesse público a ser satisfeito". (pág.355 item 7.3 e seguintes Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos 13ª Edição).
Destarte, nas hipóteses supra caracterizadas, pode a Administração optar por contratar sem procedimento licitatório e sem contrariedade ao critério básico do preço/custo menor. E, em tais condições, há que se ter prudência ao tecer críticas e/ou acusações perfunctórias, como sói acontecer nos veículos de comunicação (imprensa escrita, falada, televisada, redes sociais, etc). Na área jurídica, ações judiciais de responsabilização por atos de suposta improbidade administrativa são por vezes movidas por órgãos do MP, contra entes do Poder Público e/ou seus agentes administrativos, simplesmente com origem em meras opiniões ou conceitos divorciados da realidade, passando a infligir enormes aborrecimentos e transtornos àqueles que, dentro embora da máquina pública, agem com respeito aos princípios administrativos da legalidade, moralidade, impessoalidade, eficiência, economicidade e da maior vantagem em prol da Administração Pública.
In fine: mesmo no Brasil atual, em situações com circunstâncias especiais e sempre a bem do serviço público, pode a Administração Pública optar por contratar sem procedimento licitatório.
Enfim, pode perfeitamente ocorrer uma contratação lícita, sem licitação!
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*Reinaldo Federici é associado da Advocacia Hamilton de Oliveira.