A questão da essencialidade dos bens dados em garantia de alienação fiduciária nos contratos celebrados com empresas em regime de recuperação judicial
É possível inferir-se que, além da condição de bem de capital, deve o bem ostentar o atributo da essencialidade, o qual deve ser demonstrado pelo devedor.
quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017
Atualizado às 07:52
A questão da essencialidade de bens é tema constantemente enfrentado pelos credores fiduciários nos Tribunais pátrios, que buscam reaver os bens dados em garantia dos contratos firmados com empresas em recuperação judicial.
Pois bem, no tocante ao credor que goza da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, disciplina a lei de Falências e Recuperação de Empresa que seu crédito não ficará submetido aos efeitos da recuperação judicial (art. 49, § 3º, da lei 11.101/05), preponderando os direitos de propriedade e as condições contratuais, não se permitindo, contudo, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial.
Da simples leitura do texto legal, é possível inferir-se que, além da condição de bem de capital, deve o bem ostentar, também, o atributo da essencialidade, o qual deve ser demonstrado pelo devedor.
Via de regra, ao proferir o despacho que defere o processamento da recuperação judicial, o magistrado determina a "suspensão de todas as ações ou execuções em face da recuperanda, pelo prazo de 180 dias, na forma do art. 6º da lei 11.101/05, ressalvadas as ações previstas nos §§ 1º, 2º e 7º do art. 6º e as relativas a créditos excetuados na forma dos § 3º do art. 49".
Em verdade, faz-se imprescindível uma verificação da essencialidade caso a caso, não estando o julgador autorizado a concluir, indiscriminadamente, pela concessão irrestrita do benefício legal em detrimento da satisfação do crédito garantido por alienação fiduciária.
Exemplificando, são as hipóteses já enfrentadas pelo STJ, dentre elas o bem imóvel que serve de sede à sociedade empresária, cuja consolidação da propriedade fiduciária - com a consequente alienação em hasta pública - poderia acarretar prejuízos à recuperação judicial em vista de sua notória essencialidade (CC 110.392/SP), e, ainda, o estoque da empresa em recuperação judicial (CC 105.315/PE).
As hipóteses elencadas tratam de situações excepcionais, nas quais a utilidade do bem está diretamente ligada à preservação da atividade empresarial, o que justifica a exceção à regra esculpida no § 3º, do artigo 49, da lei 11.101/05.
Conforme entendimento pacificado da doutrina e jurisprudência, cabe ao juízo da recuperação judicial apreciar a possível essencialidade dos bens para a atividade empresarial da recuperanda.
Contudo, se o magistrado, ao deferir o processamento da recuperação judicial, proíbe a retirada dos bens essenciais, não esclarecendo quais seriam tais bens, a decisão tende a prejudicar o credor fiduciário, que na maioria das vezes tem o seu processo de busca e apreensão suspenso, apenas com a juntada aos autos da cópia do referido despacho pela recuperanda.
Porém, conforme dito anteriormente, a verificação da essencialidade deve ser feita caso a caso. E tal só é possível a partir do momento em que a recuperanda traz aos autos a relação de bens, indicando quais são essenciais à sua atividade, comprovando o local onde se encontram e de que forma vêm sendo utilizados na atividade produtiva.
Após a apresentação de tal relação, deve o administrador judicial apresentar parecer fundamentado sobre a essencialidade e, sendo necessário, fazer visita in loco para averiguar a situação do bem.
Não são poucas as vezes em que nos deparamos com situações em que a recuperanda alega a essencialidade de bem que na verdade está ocioso, não há relação direta com a atividade empresarial ou foi cedido à terceiro. Tal situação não deve ser admitida.
Desta forma, até o momento em que não tenha sido reconhecida a essencialidade dos bens, não pode subsistir qualquer impedimento para sua retomada.
Incumbe às empresas recuperandas comprovar detalhadamente a essencialidade dos bens, carreando os autos de provas fidedignas da imprescindibilidade destes para o desenvolvimento das suas atividades. Do contrário, não é lícito que permaneçam da posse dos bens alienados.
A jurisprudência pátria é uníssona no sentido de que inexistindo prova da essencialidade dos bens objetos de garantia fiduciária, não há impedimento para o prosseguimento das ações de buscas e apreensão.
Neste sentido:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. DECISÃO DE 1º GRAU QUE RECONHECEU A ESSENCIALIDADE DE BENS PARA A ATIVIDADE PRODUTIVA DA RECUPERANDA. ART. 49, §3º, LEI 11.101/05. DECISÃO REFORMADA. AUSÊNCIA DE PROVA DA ESSENCIALIDADE DOS BENS OBJETOS DE GARANTIA FIDUCIÁRIA. RECURSO PROVIDO.
(TJ/PR - 17ª C. CÍVEL - AGRAVO DE INSTRUMENTO 1.425.710-6 - REL. DES. LAURI CAETANO DA SILVA - JULG. 9/12/15)
ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA - BUSCA E APREENSÃO Veículo automotor Devedora sob recuperação judicial - Sujeição ao juízo onde se processa a recuperação judicial de todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos - Exceção legal do credor proprietário fiduciário - Alegação de que o bem é essencial à atividade empresarial da devedora e não pode ser retirado do estabelecimento do devedor Inteligência do art. 49, § 3º, da lei 11.101 /05. Hipótese, ademais, de ausência de prova da essencialidade do bem. Cumprimento da liminar. Possibilidade. Prazo de suspensão de 180 dias improrrogáveis, a teor do parágrafo 4º do artigo 6º da citada lei - Decisão mantida Recurso desprovido.
(TJ/SP - 27ª CÂMARA DE DIREITO PRIVADO - AGRAVO DE INSTRUMENTO 00428857820138260000 - - REL. DES. CLAUDIO HAMILTON - JULG. 22/7/13)
AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO - CREDOR TITULAR DA POSIÇÃO DE PROPRIETÁRIO FIDUCIÁRIO DE BENS MÓVEIS - JUIZ DETERMINA A DEVOLUÇÃO DOS BENS APREENDIDOS - IMPOSSIBILIDADE - SUSPENSÃO DECORRENTE DO DEFERIMENTO DO PROCESSAMENTO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL DA PARTE RÉ SOMENTE IMPEDE A VENDA OU RETIRADA DE BEM ESSENCIAIS À ATIVIDADE EMPRESARIAL - AUSÊNCIA DE PROVA DA ESSENCIALIDADE DOS BENS.
Nos termos do § 3º, do art. 49, da lei 11.105/05, tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º do art. 6º desta lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial.
Diante da ausência de prova da essencialidade dos bens apreendidos na ação originária, a manutenção destes na posse da parte autora é medida que se impõe.
(TJ/MG - 17ª CÂMARA CÍVEL - AGRAVO DE INSTRUMENTO 10000160074845001 - REL. DES. EVANDRO LOPES DA COSTA TEIXEIRA - JULG. 5/0/16)
Na prática, o abuso de direito pelo devedor pode ser obstado se o juízo da recuperação determinar que seja vedada a retirada tão somente dos bens que vierem a ser declarados essenciais, e mais, que o juízo da busca e apreensão suspenda apenas as ações relativas aos bens que tenham sido declarados essenciais no processo de recuperação judicial.
Não se pode olvidar que o principal objetivo da recuperação judicial é viabilizar a superação da crise financeira da empresa, o que atende aos interesses da atividade econômica, dos empregados e do mercado consumidor. Assim, a parte final do dispositivo legal veda a retomada de "bens de capital essenciais à atividade empresarial" o que, por óbvio, deve ser comprovado pela devedora.
Ademais, não se pode desconsiderar que a forte expectativa de retorno do capital decorrente deste tipo de garantia permite a concessão de financiamentos com menor taxa de risco e, portanto, induz à diminuição do spread bancário, o que beneficia a atividade empresarial e o sistema financeiro nacional como um todo.
Desta forma, recomenda-se que o juízo da busca e apreensão proceda a citação da recuperanda, a qual poderá alegar em sua defesa, o processamento da recuperação judicial e existência de declaração da essencialidade dos bens objeto de alienação fiduciária, uma vez apurada nos autos de recuperação judicial.
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*Giovana Harue Jojima Tavarnaro é gestora da Carteira de Recuperações Judiciais e Falências do escritório Ferraz, Cicarelli & Passold Advogados Associados.