Oportunidade perdida
A melhor política criminal para o caso demandava a observância equilibrada de duas balizas fundamentais: a escalada da criminalidade violenta e a superlotação desumana das unidades prisionais.
terça-feira, 31 de janeiro de 2017
Atualizado em 30 de janeiro de 2017 10:50
O indulto coletivo, como é sabido, é a concessão do perdão das penas aos presos que preencheram os requisitos nele definidos. Termina conferido pelo juiz da Vara das Execuções Criminais, a quem incumbe confirmar o benefício concedido pelo presidente da República - única autoridade competente para concedê-lo, após receber sugestões do Ministério da Justiça, que se baseiam no texto apresentado pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, que é subordinado àquela pasta.
Na qualidade de membro do referido Conselho, fomos o Relator do Projeto do indulto natalino de 2016. Após receber sugestões de tribunais, órgãos especializados e profissionais atuantes na área, além de realizar audiências públicas, o Conselho decidiu, por votação majoritária, rejeitar o texto apresentado e remeter ao Ministério da Justiça outro, contido em manifestação - voto-vista - de um de seus membros. Conquanto mantivesse boa parte das proposições do relatório inicial, esse novo texto alterava substancialmente a proposta original, ampliando as hipóteses de perdão pleno.
Apesar disso, o texto enviado pelo ministro da Justiça ao presidente da República, que foi por ele aprovado e assinado, era bastante diferente dos dois anteriores, advindos do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, adotando somente algumas das sugestões que lhe foram apresentadas.
Para nós, como relator da matéria, a melhor política criminal para o caso demandava a observância equilibrada de duas balizas fundamentais: a escalada da criminalidade violenta e a superlotação desumana das unidades prisionais.
O decreto presidencial publicado, entretanto, preocupou-se apenas com a primeira delas, restringindo ao máximo as hipóteses de sua aplicação, tangenciando a ineficácia.
Apesar de salutar, a diferenciação do tratamento reservado aos condenados por crimes violentos, que constava do projeto inicialmente apresentado, e a falta do contraponto referente à liberação de vagas ocupadas por presos de menor periculosidade foi evidente e bastante prejudicial.
Impossível deslembrar que o indulto é instrumento de política criminal e, se a intenção era a manutenção de pessoas presas, mais eficaz seria simplesmente não publicar decreto algum.
A melhor política criminal, embora um tanto diversa do pensamento do próprio Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, demandaria que também se lançassem olhos para a superlotação carcerária, que leva à dificuldade de ressocialização do preso e fomenta o acúmulo de poder das facções criminosas, quando são misturados presos de maior e menor periculosidade no mesmo ambiente deletério dos presídios.
Não se cogitava de consagrar texto favorável ao tratamento prisional mais brando nem à libertação indiscriminada de presos condenados, mas, sim, do reconhecimento da necessidade de racionalização do emprego dos recursos disponíveis para a segregação dos condenados de maior periculosidade.
Assim, o instrumento de política criminal apresentado originariamente ao Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, e por ele alterado, buscava, de forma inovadora, a proteção da sociedade, com a manutenção no cárcere tão somente dos presos perigosos, visando aliviar a irresponsável superlotação da população presidiária, a substituição de penas privativas de liberdade por serviços comunitários, esta exclusivamente aplicável a pessoas condenadas por crimes não violentos, abrindo-se com esse procedimento grande número de vagas nas unidades prisionais.
O resultado seria importante, para a garantia da ordem pública, com abertura de espaço para receber condenados que realmente necessitassem ser segregados. Os que fossem libertados antecipadamente, para cumprimento de pena substitutiva, exerceriam atividades de interesse social, retratando-se moralmente perante a sociedade pelos delitos cometidos, com a certeza de que, em caso de praticarem novos crimes ou de descumprirem as condições impostas, retornariam ao cárcere.
Ainda que a responsabilidade não possa ser atribuída exclusivamente ao atual governo, resta a sensação de que esse perdeu preciosa oportunidade de remanejar o sistema prisional. Está aí, em nossa memória muito recente, a amarga comprovação do caos do sistema penitenciário. Jamais nos esqueceremos dos recentes banhos de sangue que tingiram de inesquecível incompreensão os nossos presídios.
Resta esperar que a lição perdure e não seja tragada pela voragem do esquecimento, que é sempre péssima conselheira.
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*Otávio Augusto de Almeida Toledo é desembargador do TJ/SP e membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, órgão do Ministério da Justiça.