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Os detetives de mentes e o enigma da falsa memória

O trabalho do perito criminal tem ganhado destaque nos veículos de comunicação e, consequentemente, despertado o interesse da sociedade sobre a sua participação no deslinde dos crimes de maior notoriedade investigados pelos órgãos competentes.

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Atualizado às 08:29

INTRODUÇÃO

A respeito do desenvolvimento histórico do Brasil nos últimos anos, em especial do acesso a informação como um conceito socialmente muito forte, verifica-se um crescente interesse da opinião pública sobre as investigações policiais e ações penais em andamento.

Sem aprofundar a discussão sobre a seletividade de casos veiculados principalmente na televisão e internet, o fato é que o trabalho do perito criminal tem ganhado destaque nos veículos de comunicação e, consequentemente, despertado o interesse da sociedade sobre a sua participação no deslinde dos crimes de maior notoriedade investigados pelos órgãos competentes.

Muito embora o perito criminal seja, na verdade, um auxiliar dos delegados, promotores e juízes na busca da verdade material é ele quem examina os fatos e os esclarece. E, na maioria das vezes, as decisões judiciais são fundamentadas com base nas informações trazidas pelo expert. Daí porque o trabalho do perito se revela tão interessante para a sociedade e porque a mídia faz tantas referências a ele, sanando a curiosidade das pessoas, as quais buscam manterem-se informadas acerca das notícias relacionadas à violência e aos crimes.

Logo, o objetivo da perícia criminal é produzir a prova da materialidade e vincular o autor à cena do crime e, assim, contribuir para a elucidação do delito. Para que isto aconteça, o perito comumente socorre-se das ciências forenses, tais como: a química, biologia, geologia, engenharia, física, medicina, toxicologia, odontologia, documentoscopia, psicologia, antropologia entre outras, já que as ciências estão em constante evolução.

Um bom exemplo de ciência que evoluiu bastante ao longo dos anos foi a Arte Forense. Atualmente denominada de Representação Facial Humana (RFH) é aplicável nos casos de desaparecimento - que geralmente são precedidos de um crime - e nos casos de crimes de autoria desconhecida e de difícil solução, os quais podem ser esclarecidos pela Polícia com a ajuda de retratos falados e da reconstituição de imagens a partir de gravações em vídeos. Estes trabalhos são realizados pelo Setor de RFH da Polícia que, aliás, engloba a execução de várias outras atividades, porém, o retrato falado é a mais conhecida do grande público.

No começo, a técnica do retrato falado era realizada por peritos em desenho facial, mas hoje em dia existem vários softwares que realizam este mesmo trabalho com a ajuda de ferramentas para desenho e combinação de imagens. Então, a tarefa de construção do rosto humano fica a cargo do perito papiloscopista e sua fundamentação residirá no uso de dados etnigráficos, antropométricos (aferição das medidas do rosto), antropológicos e visuais, consubstanciados em fichas e programas, os quais guardam vários modelos de partes de fisionomia humana, tornando a composição do retrato mais prática e real.

Entretanto, o trabalho do perito não pode e nem deve ser considerado de cunho eminentemente técnico. Isto porque, existem casos em que as vítimas sofrem um grande trauma ou estão amedrontadas onde só com o emprego da boa técnica o perito não conseguirá ganhar a confiança do ofendido. É nesse momento que o fator humano será o diferencial para a consecução de um bom resultado. E é por isso que se espera do perito que ele seja mais do que um mero operador das técnicas. Ele também deverá propiciar um ambiente favorável para a colheita dos dados, bem como demonstrar habilidade em "vasculhar" a mente da vítima ou testemunha para dela extrair informações fidedignas e mais próximas da realidade, tudo isso com vistas a minimizar possíveis falhas de lembrança e a contaminação do processo por falsas memórias.

Nessa esteira, existem policiais e peritos em identificação que utilizam técnicas para reativar a memória das vítimas e testemunhas para que elas possam passar os elementos básicos para se formar o retrato de um suspeito. Porém, estas técnicas são um campo fértil para novas pesquisas. Daí porque surge a necessidade de um perito altamente especializado que, além de utilizar os mecanismos de elaboração do desenho, seja capaz de ir além da criação de imagens atualizadas a partir de um retrato, vídeo ou declaração, mas que, sobretudo, tenha o cuidado de investigar e corrigir caso a caso os retratos, na medida em que a vítima permitir o acesso a sua memória.

Não se pode olvidar que essa fase é de suma importância, pois, em uma investigação criminal o retrato falado tem por finalidade diminuir o universo de suspeitos, dando um direcionamento àquelas investigações cuja pista inicial seja a lembrança que uma vítima ou testemunha tenha em sua mente. Por ser um elemento de prova fundamental para determinados tipos de crimes, um reconhecimento mal feito pode vir a dificultar o descobrimento da autoria ou incriminar um inocente. Então, um erro no procedimento, seja pela demora na colheita ou pela inobservância dos requisitos do art. 226 do CPP , o processo poderá acabar sendo viciado por falhas graves, e o retrato falado não vir a ser aproveitado, tampouco a verdade ser esclarecida.

A propósito, a ONG norte-americana chamada "The Innocence Project"1 realizou uma pesquisa sobre os erros de reconhecimento na identificação dos possíveis sujeitos de um crime e constatou que 75% das condenações foram de pessoas inocentes e que em muitas delas o sentenciado foi parar no corredor da morte, equivocadamente, por um crime que não cometeram. Ainda segundo essa fonte, o erro ocorre principalmente porque as vítimas falham em identificar os suspeitos, cuja principal causa do erro está na semelhança do suspeito com outras pessoas.

Nessa toada, Mariângela Tomé Lopes2 nos ensina que:

"O reconhecimento possui alto grau de falibilidade e, portanto, valor probatório de escassa consistência. Isso porque, o subjetivismo inerente à prova em questão contamina sua eficácia. Entretanto, por sua força impressionística, mesmo diante das comprovadas falhas desse meio de prova, os juízes continuam a ser influenciados pela identificação positiva realizada pela testemunha, ainda que tais resultados equivalham a uma pacífica indicação de culpa (LOPES, 2011, p.6)."

O CPP, no seu art. 226, prevê as regras aplicáveis ao ato de reconhecimento de pessoa pela vítima ou testemunhas do delito apurado, atribuindo a determinada pessoa a autoria do fato ou, ainda, que indicará, em meios às coisas apreendidas, aquela que possui algum tipo de conexão com o ato criminoso. Reza o art. 226, do CPP:

Art. 226. Quando houver necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma:

I - a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida;
II - a pessoa, cujo reconhecimento se pretender, será colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem qualquer semelhança, convidando-se quem tiver de fazer o reconhecimento a apontá-la;
III - se houver razão para recear que a pessoa chamada para o reconhecimento, por efeito de intimidação ou outra influência, não diga a verdade em face da pessoa que deve ser reconhecida, a autoridade providenciará para que esta não veja aquela;
IV - do ato de reconhecimento lavrar-se-á auto pormenorizado, subscrito pela autoridade, pela pessoa chamada para proceder ao reconhecimento e por duas testemunhas presenciais.
Parágrafo único. O disposto no III deste artigo não terá aplicação na fase da instrução criminal ou em plenário de julgamento.

Todavia, se o reconhecimento da pessoa for feito em desatenção às hipóteses enumeradas no art. 226 do CPP, sua força probante evapora, de maneira que não poderá ser utilizado como fundamento da condenação. Até porque, do respeito a esse artigo resultará o valor do reconhecimento do retrato falado como meio de prova. Portanto, no nosso sistema penal vigente não há falar-se em contraposição ao atendimento do art. 226 do CPP, uma vez que feriria o Princípio da Legalidade, além do fato de que o reconhecimento, para ser havido como prova legal, tem que atender às hipóteses legais do sobredito artigo, sob pena de flagrante ato ilícito. Portanto, se ilícito, será passível de desentranhamento do processo penal. A esse respeito, diz o art. 157 do CPP:

"São inadmissíveis, devendo ser desentranhadas do processo, as provas ilícitas, assim entendidas as obtidas em violação às normas constitucionais ou legais."

Nesse sentido, segue abaixo transcrito dois julgados, sendo o primeiro deles do Tribunal de Alçada de Minas Gerais e o outro do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo:

"ROUBO - PROVA - PALAVRA DA VÍTIMA - RECONHECIMENTO PESSOAL - FORMALIDADES - ARTIGO. 226 DO CPP - ABSOLVIÇÃO.

Se o reconhecimento de pessoa for realizado sem o comprimento das regras previstas no art. 226 do CPP, sua força probante se esvai e não pode ser apontado como fundamento da condenação."3

"PROVA CRIMINAL - Auto de reconhecimento de pessoa - Falhas em sua realização - Autoria do delito negado pelo acusado - Inexistência de outros
elementos de convicção - Absolvição decretada - Inteligência do art. 226 do CPP.

Na sistemática do CPP, somente se pode falar em reconhecimento quando observadas as normas cautelares do art. 226, seja o ato realizado diante da autoridade policial, seja diante da autoridade judiciária".4

"Notadamente, quanto ao reconhecimento, da ensinança de Tourinho Filho se retira que "De todas as provas previstas no nosso diploma processual penal, esta é a mais falha, a mais precária. A ação do tempo, o disfarce, más condições de observação, erros por semelhança, a vontade de reconhecer, tudo, absolutamente tudo, torna o reconhecimento uma prova altamente precária."5

Não será demasia acrescer que as identificações equivocadas são a maior causa isolada de condenações injustas na história dos erros judiciários, somando muitos casos de reconhecimentos falsos, seja por suposição equivocada, por falibilidades próprias da memória ou até mesmo por perversidade. Nesse diapasão, convém mencionar outra possibilidade dentre as muitas já mencionadas, que é a de poder estar perante uma vítima ou testemunha acometida por um transtorno de personalidade conhecido como sociopatia e também, quiçá, a psicopatia. Em ambos os casos de transtornos, os traços comuns são a desconsideração por leis, por normas sociais e direitos de outras pessoas, a falta de sentimento de culpa e o comportamento violento. Ademais, nos dois casos eles têm dificuldade em reconhecer as expressões de medo, tristeza, compaixão, nos rostos dos indivíduos. Além do que, são manipuladores e mentirosos natos. Então, ainda que eles estejam na condição de vítima ou de testemunha de um crime, podem ter dificuldade de indicar os traços da fisionomia do rosto do suspeito, bem como podem manipular essa informações através da indicação de características alheias à verdade.

Por essa e outras razões - que não convém esposá-las no momento- mostra-se cada vez mais importante a investigação sobre o funcionamento da memória, com a finalidade de entender como funciona o processo de reconstrução das informações pela mente humana e, consequentemente, sua influência na verdade dos fatos colhidos durante a persecução penal.

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1 A "The Innocence Project" foi criada em 1992, nos Estados Unidos e se trata-se de uma ONG especializada em pedir indenização ao Estado americano por condenações de pessoas inocentes. Acesso em 1/2/16.

2 Em boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, cujo título é: Reconhecimento de pessoas e coisas como meio de prova irrepetível e urgente. Necessidade realização antecipada. In: Boletim IBCCRIM, Ano XIX, n. 229, dez. 2011, p. 6-7.

3 Informação extraída do texto de FURTADO, Renato de Oliveira. Os riscos do reconhecimento sem as formalidades legais. Acesso em 13/3/16.

4 Idem.

5 Ibidem. FURTADO, Renato de Oliveira apud Tourinho Filho, Fernando, CPP Comentado, Ed. Saraiva, 12° Edição, ano 2009, Tomo I, pag. 645.
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*Maria Tereza Couto Magrani mestranda em Direito pela Universidade Católica de Petrópolis, especialista em Direito Civil e Tributário.


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