A EC 95/16 entre o teto e o assoalho do estado
O Estado pós-social introduz na sociedade o temor inverso por meio de medidas como a EC95: o de que a CF que mirava no teto das conquistas sociais quando foi promulgada termine resignada ao assoalho da austeridade fiscal.
terça-feira, 17 de janeiro de 2017
Atualizado às 08:23
Alguns meses antes de seu 28º aniversário, a CF foi alvo de mais uma investida reformadora. A iniciativa coube ao Poder Executivo, que se valeu da PEC 241/16, que no Senado passou a ser chamada PEC 55/16, depois ganhou o apelido que lhe daria notoriedade (PEC do Teto dos Gastos) e, por fim, recebeu seu nome de batismo: Emenda Constitucional 95.
Segundo a exposição de motivos com que a então PEC foi apresentada, seu objetivo seria o de tentar "reverter, no horizonte de médio e longo prazo, o quadro de agudo desequilíbrio fiscal em que nos últimos anos foi colocado o Governo Federal".
Para além do uso habilidoso da voz passiva (o Governo não se colocou em situação de desequilíbrio, ele "foi colocado" ali) e da duvidosa constitucionalidade da emenda, já questionada pela AJUFE, ANAMATRA e AMB, a simples existência da EC 95 é bastante reveladora: sugere que o modelo de Estado sob o qual a CF foi promulgada talvez esteja em descompasso com aquele que atualmente se entende necessário para atingir todos os ambiciosos objetivos estabelecidos em seu preâmbulo: "o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça".
Fiquemos apenas no bem-estar e no desenvolvimento. Para perceber como a CF/88 valoriza o bem-estar, basta ver o enorme alcance dos direitos sociais trazidos pelo art. 6o, cujo exercício é atribuição do Estado garantir ("a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados").
A Constituição não é menos generosa quanto ao desenvolvimento: ao longo de mais de duas centenas de artigos, lê-se que o desenvolvimento deve ser a um só tempo econômico, social, urbano, educacional, regional, nacional, científico, tecnológico, pessoal, cultural e humano, dentre outros. Uma tarefa e tanto.
O tratamento dado ao bem-estar e ao desenvolvimento ilustra a vocação progressista e não conservadora da nossa CF, cujo preâmbulo anuncia a criação de forma de Estado com nítidos contornos de Welfare State - o Estado do Bem-Estar Social, cuja característica mais saliente é a voracidade com que assume mais e mais atribuições em nome de uma causa nobre: a inclusão efetiva dos cidadãos em uma sociedade cada vez mais complexa e por isso mesmo cada vez mais carente de regulamentação.
De fato: a complexidade crescente de um mundo em que não mais assamos o próprio pão ou costuramos as próprias roupas (FRIEDMAN, 1986) faz com que o Estado inercialmente já seja obrigado a intervir em um número cada vez maior de relações sociais. Hoje, é natural esperar do Estado que estabeleça padrões sanitários mínimos para os pães que compramos e que garanta condições mínimas de dignidade para os trabalhadores que fabricam as roupas que vestimos.
Nem sempre foi assim: passamos do Estado Liberal, cujo maior legado foi a diminuição das desigualdades formais ("todos são iguais perante a lei", repetem a maioria das constituições de meados do século XX para cá), ao Estado do Bem-Estar Social, que - com a CF de 88 - colocou a diminuição das desigualdades materiais como prioridade na agenda política.
Todavia, passadas algumas décadas, a chegada da maturidade da nossa Constituição welfarista atrai cada vez mais adeptos para a tese - verdadeira ou falsa, é um outro assunto - de que o Estado não consegue materializar todas as boas intenções do constituinte originário apenas por meio da arrecadação tributária. Dissemina-se o temor de que o rol de conquistas sociais garantido pela CF/88 poderá ficar reduzido a mero protocolo de intenções caso não haja cooperação da iniciativa privada e arrocho nas finanças públicas.
Nesse ambiente difundem-se modelos de concessões de serviços públicos (1995), regulamentam-se as organizações da sociedade civil de interesse público (1999) promulga-se a lei de responsabilidade fiscal (2000), instituem-se normas para as parcerias público-privadas (2004) e agora aprovam-se as medidas de contenção da EC 95 (2016). O Estado aperta os cintos e se torna cada vez menos prestador e mais promotor. Ao invés de executar políticas públicas, o Estado as delega onde possível e lhes supervisiona a execução. Sai o Estado agente, entra o Estado catalisador. É o chamado Estado pós-social.
Gestado no receio da inviabilidade econômica e política de garantir plenamente os direitos típicos do Welfare State, o Estado pós-social introduz na sociedade o temor inverso por meio de medidas como a EC 95: o de que a Constituição que mirava no teto das conquistas sociais quando foi promulgada termine resignada ao assoalho da austeridade fiscal. Em matéria de garantias coletivas, passa-se do "quase tudo" da CF/88 para o possível "quase nada" da EC 95.
O Estado brasileiro não é mais aquele: que sua atual crise de identidade não afaste a ponderação entre a necessidade de materialização de direitos sociais e a temperança na gestão do erário. A prodigalidade na administração das finanças públicas é danosa, mas o engessamento de direitos da coletividade também o é.
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*Luciano Velasque Rocha é sócio do FWRP Advogados. Atua nas áreas consultiva (elaboração de opiniões legais e pareceres) e contenciosa (atuação em ações judiciais e arbitragens de alta complexidade).