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Direito de arrependimento deve ser respeitado (também) nos contratos de consórcios particulares

Jonas Sales Fernandes da Silva e Júlio Edstron Secundino Santos

A negação do direito de arrependimento é uma afronta tanto à boa fé contratual, quanto a uma norma vigente.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Atualizado às 08:30

Devido, em grande medida, à crise financeira brasileira e a mudança estrutural da política macroeconômica de crédito observada nos últimos anos, consumidores se valem cada vez mais dos consórcios no intuito de autofinanciar a aquisição de bens ou serviços. Nesse sentido é que a Associação Brasileira de Associadas de Consórcio (ABAC) computou, até maio de 2016, que 7,1 milhões de brasileiros participavam de alguma forma de consórcio privado, número bem maior que os 5,3 milhões aferidos pela mesma associação em 20131.

O consórcio particular caracteriza-se pela reunião de pessoas físicas e/ou jurídicas que, constituindo um grupo, por um determinado período de tempo e com número de cotas previamente especificadas, contribuem periodicamente com um certo valor em percentual destinado a um fundo comum visando proporcionar aos seus membros, quando de sua contemplação, um crédito de valor igual ao discriminado na opção feita pelo consorciado.

Quanto à adesão aos consórcios, na prática as administradoras, autorizadas a operar pelo Banco Central, se utilizam da oferta por meio de seus sites, malas diretas e principalmente por contato telefônico, opções nas quais o consumidor, no calor do momento pode ser compelido a aceitar vantagens que podem não ser sustentáveis ao médio e longo prazo. Para os vulneráveis que assim agem, a legislação consumerista consagra talvez seu instituto mais original2, qual seja, o direito de arrependimento3.

Em outras palavras, tem-se que geralmente o consumidor recebe uma ligação, sem saber como a empresa de consórcios conseguiu o seu número, com o oferecimento de condições especiais, principalmente quanto ao acesso ao crédito e baixas taxas de juros, para que ele "adquira" o direito de participar daquele negócio jurídico. Assim, muitas vezes por conta das circunstâncias, impulsionado por uma propaganda motivante acaba aceitando o negócio proposto.

Porém, ao analisar com mais calma, exercendo o seu período de reflexão, o consorciado/consumidor percebe que, por diversos motivos, normalmente pela verificação de um risco real de seu inadimplemento ou uma onerosidade incompatível com os seus rendimentos, o consumidor vacila e se arrepende do seu ato, nascendo, nesse momento, desde que seja no referido prazo legal de 7 dias previsto no CDC, o seu sagrado direito de arrependimento.

Mas o que se tem percebido recentemente é o raso argumento das empresas de consórcio em negar o direito de arrependimento do consumidor, mesmo com a expressa previsão legal e ao arrepio do direito, quando ele participa (geralmente de maneira tácita, sem ter de fato conhecimento do que se passa) de assembleias, destinadas, conforme art. 8.º da lei 11.795/08, a apreciação de contas prestadas pela administradora e a realização de contemplações.

Ora, a negação do direito de arrependimento é uma afronta tanto à boa fé contratual, quanto a uma norma vigente - e cogente - do Direito brasileiro, não podendo prevalecer no plano concreto4.

Nesse particular, é inequívoco o entendimento da doutrina brasileira, conforme se observa, verbi gratia, na doutrina de Bruno Miragem, para quem

"O direito de desistir do contrato não está condicionado a qualquer espécie de situação, quanto à existência de vícios ou demonstração de equívoco quanto às qualidades do produto ou serviço. Basta que haja a decisão do consumidor, sem a necessidade de motivá-la ao fornecedor. Esta ausência de motivação, por sua vez, não tem por finalidade promover decisão arbitrária do consumidor, senão de impedir que o fornecedor possa evitar ou dificultar o exercício do direito, mediante a contradição ou impugnação dos motivos alegados por quem desista do contrato. Por esta razão, o exercício do direito fica limitado exclusivamente ao prazo fixado em lei."5 (grifamos).

De igual modo, Paulo Roque Khouri, apoiado em doutrina portuguesa, afirma ser o direito de arrependimento o instituto mais original do direito do consumidor, por outorgar ao consumidor um direito potestativo de resolver o contrato no prazo legal de reflexão sem ter de arcar com ônus contratuais de qualquer resolução por inadimplemento (multas, perdas, danos etc.)6.

Para além do que reza a doutrina pátria, a própria lei 11.795/08, que dispõe sobre o sistema de consórcio brasileiro, foi - após inúmeras campanhas de PROCONs e entidades de defesa do consumidor7 - vetada em seu § 2º do art. 10, o qual previa:

Art. 10, § 2o Caso seja o contrato de participação em grupo de consórcio, por adesão, ou a proposta de adesão assinados, em conjunto ou separadamente, fora do estabelecimento da administradora, o contratante ou proponente poderá dele desistir, no prazo de 7 dias, contado de sua assinatura, desde que não tenha participado de assembléia de contemplação, devendo-se: I - eliminar qualquer vínculo do contratante ou proponente com o grupo de consórcio; II - restituir-lhe as importâncias pagas a qualquer título, acrescida dos rendimentos da aplicação financeira a que estão sujeitos os recursos dos consorciados enquanto não utilizados, no prazo de até 3 dias úteis, contados da data da formalização da desistência.8 (negritamos).

Patente, portanto, e de clareza solar, que o parágrafo trazido acima está em perfeita consonância com o que ora se defende, isto é, favoravelmente ao consorciado/consumidor, em evidente respeito ao direito de arrependimento, com devolução de valores eventualmente pagos pelo consorciado, em consonância com o art. 49 do CDC.

Ademais, com o devido respeito a quem pensa de maneira diversa, afirmar que "o interesse do grupo prevalece sobre o do consorciado individualmente considerado, exatamente pelo fato de que essa quantidade de pessoas deve ser protegida ante o interesse de um (ou poucos) que podem prejudicá-los"9 é verdadeiramente ir na contramão de todo o sistema de direito pátrio, bem como da evolução que visa dar eficiência a defensa de los débiles, quais sejam, os vulneráveis consumidores brasileiros.10

Ainda de forma didática para que não restem dúvidas, a análise de constitucionalidade prévia da Presidência da República identificou na lei de consórcios uma flagrante inconstitucionalidade, no sentido de que o direito de arrependimento é uma norma de caráter público e, portanto, não pode ser derrogada por uma ação privada.

Além disso, não é outra a inteligência da razão de veto emitida pelo Presidente da República à época da retirada do parágrafo 2º do art. 10, antes da promulgação da lei 11.795/08, conforme se lê:

"O § 2o do art. 10 estipula o prazo de 7 dias para a desistência do contrato que foi firmado fora do estabelecimento comercial. Entretanto, caso o consorciado tenha participado de assembleia de contemplação, não poderá exercer seu direito de arrependimento. O art. 49 do CDC assegura um prazo legal de 7 dias para que o consumidor manifeste sua intenção de desistir do contrato. Referido dispositivo inovou o ordenamento jurídico pátrio e instituiu um prazo obrigatório para a reflexão a respeito do negócio realizado. O direito de arrependimento constitui uma importante faculdade do consumidor, sendo inadmissível a imposição de condição para o seu pleno exercício. Daí porque também se recomenda o veto do dispositivo."11

Por fim, também da jurisprudência brasileira colhe-se, por exemplo, o seguinte julgado, que deve ser tomado como norte, pois observa que nos contratos de seguro, especificamente na contratação de consórcio realizada fora do estabelecimento comercial, o prazo de 7 dias para seu cancelamento é imodificável. Veja-se:

De acordo com o art. 49 do CDC "o consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio". In casu, a reclamante fez o primeiro contato com a vendedora por telefone e finalizou as tratativas no feirão, além disso, assinou o contrato definitivo em sua residência. Portanto, aplicável o disposto no parágrafo único do referido dispositivo consumerista, o qual prevê que se o consumidor exercitar o direito de arrependimento, os valores eventualmente pagos, a qualquer título, serão devolvidos, de imediato, monetariamente atualizados. Assim, embora trate-se de contrato de consórcio, a restituição do valor pago pela reclamante deve ser procedida de forma imediata e integral, tendo em vista a condição sui generis em que foi celebrado. Pelo que consta nos autos a reclamante foi compelida de forma agressiva a firmar contrato de adesão, veja-se que há indícios contundentes de que a vendedora da empresa reclamada levou a reclamante até a agência bancária para efetuar o pagamento e, com isso, formalizar a contratação. Restou evidenciado que a consumidora, pessoa idosa e com pouca instrução, foi levada a contratar o consórcio sem ter o devido conhecimento das obrigações futuras que este acarretava. De acordo com o art. 39, inciso IV, do CDC configura prática abusiva prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços. Falha na prestação dos serviços, dever de indenizar configurado. Responsabilidade objetiva, nos termos dos arts. 14 do CDC.12

Conclui-se, portanto, por entender que não há razões para se obstar o ressarcimento ao consumidor devidamente atualizado nos termos do parágrafo único do art. 49 do CDC, e igualmente seu exercício de direito de arrependimento disposto em norma cogente de nosso ordenamento pátrio, ao simples argumento de que o consorciado participou de assembleia durante o prazo legal de 7 dias após ter firmado contrato de consórcio.

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1 Disponível em: < Clique aqui >. Acesso em 2/1/17.

2 Afirmação feita com apoio na doutrina portuguesa de Carlos Ferreira de Almeida, vide KHOURI, Paulo Roberto Roque Antonio. Direito do consumidor: contratos, responsabilidade civil e defesa do consumidor. 6ª ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 87.

3 Lei 8.078/90 - CDC - Art. 49 - O consumidor pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a contar de sua assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento comercial, especialmente por telefone ou a domicílio.

4 Nesse sentido deve-se ter em consideração a afirmação de Claudia Lima Marques referente aos contratos de consumo de consórcio, in verbis "(...) pelos abusos que já ocorreram neste setor, muito salutar que se estabeleça uma equidade, um equilíbrio obrigatório nestes contratos de adesão através das normas do CDC. O Código impõe maior boa-fé e lealdade também quando da formação desses contratos e da informação do consumidor." In MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 7ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 606.

5 MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor. 6ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016, p. 417.

6 KHOURI, Paulo Roberto Roque Antonio. Direito do consumidor: contratos, responsabilidade civil e defesa do consumidor. 6ª ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 87.

7 Como exemplo do que ora se afirma: Lei dos Consórcios, na qual se lê, in verbis: "Outro preocupante dispositivo contrário às disposições do CDC, também foi vetado: o parágrafo 2º do artigo 10 do PL previa prazo de sete dias, a partir da assinatura do contrato, para a desistência de negócio realizado fora do estabelecimento da administradora. Entretanto, em caso de participação do consorciado em Assembléia de Contemplação, tal direito não poderia ser exercido. O artigo 49 do CDC garante ao consumidor o prazo legal de sete dias para a desistência do negócio realizado fora do estabelecimento comercial, não exigindo qualquer outra condição ao consumidor para seu pleno exercício. Com o veto, o consumidor manterá seu direito de desistência nos termos da lei.". Clique aqui. Acesso em 26/12/16.

8 Razões de veto. lei 11.795/08. Disponível em: Clique aqui. Acesso em 26/12/16.

9 Nesse sentido JUNIOR, José Tito de Aguiar. Direito ao arrependimento do CDC no sistema de consórcio.

10 CDC - Art. 4º A Política Nacional das Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios: I - reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo;

11 Razão do veto. Disponível em: Clique aqui . Acesso em 26/12/16.

12 Recurso Inominado 0016369-65.2015.8.16.0182. Origem: 11º JUIZADO ESPECIAL CÍVEL DE CURITIBA. Recorrentes: MARIA DE LOURDES DA SILVA e UNILANCE ADMINISTRADORA DE CONSÓRCIOS LTDA. Recorridos: OS MESMOS. Juiz Relator: Fernando Swain Ganem. Curitiba, 2/6/16
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*Jonas Sales é advogado graduando em Direito pela UCB. Membro do grupo de pesquisa Núcleo de Estudos e Pesquisas Avançadas do Terceiro Setor (NEPATS) da UCB/DF. Associado do BRASILCON.

*Júlio Edstron é advogado doutorando em Direito pelo UniCEUB. Mestre em Direito Internacional Econômico pela UCB/DF. Professor dos cursos de graduação em Direito e Relações Internacionais e especialização da UCB/DF. Membro dos grupos de pesquisa NEPATS da UCB; Direito e Religião, Políticas Públicas do UniCEUB. Associado do BRASILCON.


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