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Reflexões sobre a possibilidade de conservação dos efeitos das decisões proferidas pelo juízo absolutamente incompetente nos Juizados Especiais Cíveis

Júlia Maria Silva Ferraz

Os efeitos da decisão proferida pelo juízo absolutamente incompetente submeteram-se a significativas modificações com o NCPC.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Atualizado em 6 de janeiro de 2017 12:04

No CPC/73 a incompetência era segmentada em duas acepções, a absoluta e a relativa, permanecendo as respectivas ramificações no CPC/15.

As definições da divisão também não mudaram com a vigência do CPC/15, conservada a concepção de que na incompetência relativa "as regras são dispositivas, o que acarreta alto grau de flexibilização pelas partes", já na incompetência absoluta, "trata-se de normas cogentes, devendo ser rigorosamente observadas e controladas pelas partes e pelo Estado".1

No entanto, os efeitos da decisão proferida pelo juízo absolutamente incompetente submeteram-se a significativas modificações com o NCPC, em especial quanto ao art. 113, § 2.º2 do CPC/73, cuja previsão normativa atribuía nulidade aos atos decisórios proferidos por Juízo absolutamente incompetente.

A nulidade dos atos também era ratificada pelo STJ, a exemplo do AgRg no REsp 1267629/MG cuja relatoria foi do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva:

(...) A teor do que dispõe o art. 113, § 2º, do Código de Processo Civil, e do entendimento jurisprudencial sedimentado nesta Corte Superior sobre o tema, o reconhecimento da incompetência absoluta da Justiça Estadual para o processamento e julgamento da demanda tem como efeito inafastável e imediato a nulidade de todos os atos decisórios até então praticados. Precedentes. (AgRg no REsp 1267629/MG, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 15/09/2015, DJe 23/09/2015).

Na audaciosa conjuntura do NCPC, a nulidade dos atos processuais proferidos pelo juízo incompetente foi remodelada, sobretudo pela previsão inserta no seu art. 64, § 4.º3. Para tanto, hodiernamente há hipótese de conservação da decisão judicial (ato discricionário) ainda que proferida por juízo absolutamente incompetente. Nesse contexto, o aproveitamento de atos de definição e satisfação de direitos que provenham de órgãos judiciais incompetentes foi consagrado pela jurisprudência como princípio da translatio iudicii. (BRASIL. STJ. EDcl no REsp. 355.099/PR, Rel. Ministra Denise Arruda, 2008).

O ponto crucial deste trabalho é submeter à reflexão os limites de aplicação da translatio iudicii, em especial quanto ao seu cabimento no procedimento sumaríssimo cível regulamentado pela lei 9.099/95. Não há posicionamento firmado pelos Tribunais Superiores sobre o tema, no entanto já se identifica uma incipiente tendência em primeiro grau de jurisdição em prestigiar a aplicação da translatio iudicii nos juizados especiais cíveis, a exemplo das decisões proferidas nos Estados do Rio Grande do Norte4 e Alagoas5, àquela posteriormente sendo reformada com a aplicação dos efeitos infringenciais à decisão pretérita.

Os adeptos à preservação das decisões proferidas pelo juízo incompetente nos Juizados Especiais, trazem como principal fundamento a hipótese de aplicação supletiva do NCPC no procedimento sumaríssimo cível, entendendo, portanto, que o art. 64, § 4.º do referenciado diploma normativo seria uma das contingências cuja aplicação é extensível ao procedimento da lei 9.099/95.

De acordo com o posicionamento perfilhado, poderia o magistrado, declaradamente incompetente, utilizando-se do instituto da translatio iudicii, juntamente com a previsão inserta no art. 51, II da lei 9.099/95, julgar extinto o feito pela incompetência, mas, discricionariamente conservar os efeitos das decisões proferidas.

A possibilidade de aplicação complementar é uma inovação trazida no NCPC, especificamente em seu art. 1.046, § 2.º6, em que o teor contempla de fato a supletividade desta norma nas disposições especiais dos procedimentos regulados em outras leis, dentre elas, a lei do Juizado Especial.

Em outras palavras, abstratamente, o caminho do intérprete seria, quanto à possibilidade de aplicação do princípio da translatio iudicii, pelo permissivo normativo que autoriza a aplicação supletiva do NCPC no Juizado Especial.

No entanto, ao realizar uma análise pormenorizada quanto à extensão da aplicação da translatio iudicii, nota-se que a sua incidência no procedimento sumaríssimo é temerária, azo porquanto, diversa da efetiva pretensão do legislador e incompatível com o regramento contido na lei 9.099/95. De fato, o NCPC contempla a hipótese de sua aplicação em outras leis, no entanto, para que haja esta supletividade, é imprescindível que na legislação específica exista uma lacuna normativa que propicie a incidência da respectiva complementação.

A declaração de incompetência absoluta da lei 9.099/95 tem efeito diverso do consubstanciado pelo NCPC. Este, segundo o art. 64, integralmente observado, traz como consectário o reconhecimento da incompetência e respectiva remessa dos autos ao juízo competente, por outro lado, no Juizado Especial Cível, a consequência é a extinção do feito sem resolução do mérito nos termos do art. do art. 51, II7 da referida lei especial.

Em primeira análise a aplicação supletiva do CPC esbarra na ausência de lacuna normativa: Se a lei 9.099/95 discorre especificamente sobre as consequências da incompetência absoluta, não há que se falar em complementação da norma, portanto, aprioristicamente, o art. 51, II não carece de acessão.

Cabe observar que subsistindo lacuna normativa no que tange à conservação ou não dos efeitos da decisão proferida, essa regulamentação encontra esteio em um dos parágrafos que contemplam parte de um todo que é o art. 648, ou seja, o respectivo parágrafo é o fragmento de um todo que regulamenta outras providências atinentes à incompetência absoluta.

No inteiro teor do art. 64, o legislador se ateve à necessidade de aproveitamento das decisões proferidas pelo juízo incompetente, sem, contudo, atribuir a tais decisões caráter de perpetuidade, visto que com a remessa dos autos ao juízo competente, nos termos do § 3.º do referenciado diploma normativo, haveria garantia do regular processamento do feito harmonizado com o princípio da primazia do julgamento do mérito.

Decerto, a aplicabilidade integral do art. 64 do CPC traria segurança jurídica ao processo, no entanto, por expressa previsão normativa contida no art. 51, II da lei 9.099/95, a aplicação completa e irrestrita do art. 64 não seria possível, visto que o efeito da incompetência absoluta na legislação específica é a extinção do feito sem resolução do mérito e não a remessa dos autos ao juízo competente, portanto pela expressa incompatibilidade normativa, a hipótese de aplicação completa do art. 64 ao desprezo do art. 51, II da lei 9.099/95 é inviável.

A impossibilidade de utilização supletiva do inteiro teor do art. 64 encontra óbice em dois fatores, o primeiro é a subsistência de uma antinomia aparente entre os artigos 51, II da lei 9.099/95 e 64 do NCPC.

Em caso de incompetência absoluta, as normas especial e geral trazem efeitos antagônicos: de extinção sem resolução do mérito e de remessa ao juízo competente, respectivamente. A solução para o desfecho dessa oposição é dada por um dos metacritérios clássicos construídos por Norberto Bobbio9 à luz do art. 2.º10, § 2.º da lei de Introdução das Normas do Direito Brasileiro, notadamente o critério da especialidade, em que a norma especial, no caso, a lei 9.099/95 prevalece sobre a norma geral, sendo, portanto, retirada qualquer hipótese de incidência suplementar do NCPC.

O segundo fator é que não há liberalidade ao julgador na aplicação da norma. Tramitando os autos pelo procedimento sumaríssimo, há que se observar a integralidade do dispositivo normativo específico, sendo possível a incidência das demais formas de integração da norma jurídica apenas excepcionalmente, pela vedação do non liquet. Segundo José de Oliveira Ascensão, "No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais de direito".11 Portanto, subsistindo regramento específico, o Magistrado está condicionado a aplicá-lo, sendo impossível optar por outra forma de integração.

Outra hipótese, inclusive adotada pelos julgadores do Rio Grande do Norte e Alagoas, seria a aplicação supletiva de apenas um trecho do artigo 64, especificamente seu parágrafo 4.º.

Para uma percepção mais tangível, colacionam-se como paradigma as disposições insertas nos dois julgados assinalados, destacando que em ambos, os magistrados julgaram extinto o processo pela incompetência absoluta do juízo e, com arrimo específico no art. 64, § 4.º do NCPC, optaram pela conservação dos efeitos da tutela antecipada que determinava ao demandado - Instituição Financeira - que suspendesse os descontos consignados em folha de pagamento dos demandantes.

Basicamente, a utilização de apenas parte do art. 64 do NCPC solucionaria o impasse da antinomia entre as normas, visto que o magistrado, na hipótese de incompetência absoluta, poderia utilizar-se do art. 51, II da lei 9.099/95 para extinguir o feito sem resolução do mérito (e não remeter os autos ao juízo competente como preconiza o § 3.º do art. 64 do CPC) e, com arrimo no § 4.º do art. 64 do CPC, sufragaria o princípio da translatio iudicii. No entanto, a utilização apenas do trecho ínsito no § 4.º do art. 64 do NCPC, muito embora solucione o impasse da antinomia, acarreta em outras consequências que também inviabilizam a sua incidência.

Adentrando no raciocínio dos julgadores ao utilizarem o art. 51, II da lei 9.099/95 e um trecho do art. 64 do CPC, especificamente seu parágrafo 4.º, vislumbra-se que estes estarão realizando uma combinação de leis (lex tertia). Neste sentido, a reflexão pertinente seria quanto à possibilidade de o magistrado, por liberalidade, combinar dois artigos, daí resultando uma norma híbrida.

Sobre a hipótese de o judiciário realizar a combinação de leis, é apropriado sobrelevar a lição de Nelson Hungria que "revelava a sua incredulidade nessa possibilidade de o membro do Poder Judiciário se arvorar em legislador, sob pena de violação da regra constitucional da separação dos poderes"12.

De igual forma, posiciona-se a Corte Suprema no sentido de repelir a realização de uma norma híbrida, abarcando a teoria da ponderação unitária ou global, "em homenagem aos princípios da reserva legal e da separação dos Poderes do Estado"13.

O processualista Nelson Nery Júnior também sustenta a ideia de inadmissibilidade do juiz legislador ao preconizar: "O juiz deve aplicar o direito ao caso concreto, sendo-lhe vedado substituir o legislador, pois a figura do judge made law é incompatível com o sistema brasileiro da tripartição de poderes (RT 604/43). "O juiz deve aplicar a lei e não revogá-la a pretexto de atingir um ideal subjetivo de justiça (RTJ 103/1262)."(Cf. CPC, 6ª ed. RT, pág. 476).14

Muito embora seja ainda fragmentária a análise quanto à combinação das leis na esfera cível, especificamente quanto à utilização do § 4.º do art. 64 do NCPC de forma supletiva no juizado especial, têm-se como inconcebível, seja como ponderado pelo STF, em detrimento da reserva legal e separação dos poderes, como também por não traduzir a intenção real do legislador.

Relativamente à intenção do legislador quando implantou no CPC a hipótese de conservar os efeitos das decisões proferidas por juízo incompetente, é de fácil percepção que a finalidade de modo algum seria de perpetuação das decisões, visto que haveria remessa dos autos ao juízo competente, cabendo-lhe a reanálise das decisões e faculdade de revogação, o que, por expressa previsão normativa, não seria possível no juizado especial cuja determinação é a extinção do feito.

Impende salientar que uma decisão extintiva do feito sem resolução do mérito tem por corolário lógico a eliminação das decisões proferidas em todo transcurso do processo, haja vista a limitação do juízo para dirimir sobre qualquer indício de direito material invocado, tanto que nestes casos, não é possível o aproveitamento dos atos processuais, em especial pela imprescindibilidade de distribuição de uma nova ação no juízo competente, portanto, é juridicamente impossível coexistir num mesmo processo a permanência de decisões quando o processo é extinto sem o julgamento do mérito.

Por fim, merece destaque a tendência jurisdicional em desconsiderar a ideia do magistrado como aplicador da lei, sendo-lhe oportunizada a atuação na busca da justiça social. No entanto, quando se exemplificam os casos de aplicação da translatio iudicii, tem-se clareza quanto à ausência de justiça social quando da sua aplicação nos juizados especiais.

Nos dois casos paradigmáticos, muito embora o juízo tenha sido reconhecido como absolutamente incompetente, a decisão proferida convalidou a tutela antecipada de suspensão dos descontos consignados em folha de pagamento da parte demandante, restringindo assim, eventual exercício regular do direito do credor em receber seu crédito.

Em outras palavras, a parte demandante que se utilizou de juízo incompetente será exonerada da obrigação de pagar com arrimo em decisão de juízo incompetente e a parte demandada não poderá cobrar o seu crédito, cabendo-lhe para tal pretensão, a tentativa de reforma com a interposição de recurso ou com a distribuição de ação específica às suas expensas, a fim de que seja julgado o mérito da lide, caso contrário, a existência, validade e eficácia da decisão serão perpetuadas.

Nesse viés, nota-se que mesmo subsistindo a hipótese de o juiz adotar solução mais apta a alcançar os fins colimados, decerto a decisão de implantar a translatio iudicii afrontaria os princípios basilares do direito, acarretando em prejuízos que excederiam a reserva legal, portanto, incompatível com o Estado Democrático de Direito.

Assim, ainda que a hipótese de conservação das decisões proferidas pelo juízo absolutamente incompetente seja louvável, em especial por valorar os princípios do sincretismo processual e efetividade da tutela jurisdicional, como visto, esta hipótese não se amolda à essência procedimental do juizado especial cível, além de acarretar em iminente prejuízo a um dos demandantes, sendo assim, tal incidência no procedimento sumaríssimo cível é incompatível.

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1. Sá. Renato Montans de. Manual de Direito Processual Civil - 2. Ed. - São Paulo: Saraiva, 2016, p. 148.

2. Art. 113. A incompetência absoluta deve ser declarada de ofício e pode ser alegada, em qualquer tempo e grau de jurisdição, independentemente de exceção.

§ 1º Não sendo, porém, deduzida no prazo da contestação, ou na primeira oportunidade em que Ihe couber falar nos autos, a parte responderá integralmente pelas custas.

§ 2º Declarada a incompetência absoluta, somente os atos decisórios serão nulos, remetendo-se os autos ao juiz competente."

3. Art. 64. § 4.º. Salvo decisão judicial em sentido contrário, conservar-se-ão os efeitos de decisão proferida pelo juízo incompetente até que outra seja proferida, se for o caso, pelo juízo competente.

4. TJRN, Processo 0809971-45.2015.8.20.5004, Juíza de Direito Dr.ª Sulamita Bezerra Pacheco, j. 23/09/2016, DJE 27/09/2016;

5. TJAL, Processo 0001279-25.2014.8.02.0349, Juiz de Direito Dr. Leonilzo de Melo Freitas, j. 19/05/2016, DJE 30/05/2016;

6. Art. 1.046. § 2.º Permanecem em vigor as disposições especiais dos procedimentos regulados em outras leis, aos quais se aplicará supletivamente este Código.

7. Art. 51. Extingue-se o processo, além dos casos previstos em lei:

II - quando inadmissível o procedimento instituído por esta Lei ou seu prosseguimento, após a conciliação;

8. Art. 64. A incompetência, absoluta ou relativa, será alegada como questão preliminar de contestação.

§ 1º A incompetência absoluta pode ser alegada em qualquer tempo e grau de jurisdição e deve ser declarada de ofício.

§ 2º Após manifestação da parte contrária, o juiz decidirá imediatamente a alegação de incompetência.

§ 3º Caso a alegação de incompetência seja acolhida, os autos serão remetidos ao juízo competente.

§ 4º Salvo decisão judicial em sentido contrário, conservar-se-ão os efeitos de decisão proferida pelo juízo incompetente até que outra seja proferida, se for o caso, pelo juízo competente.

9. TARTUCE, Flávio, Manual de Direito Civil: volume único. 5. ed. rev. atual. e ampl. - Rio de Janeiro: Forense, São Paulo: MÉTODO, 2015, p. 37.

10. Art. 2º Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.

(omissis)

§ 2º A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior.

11. Cf. ASCENSÃO. José de Oliveira. Introdução à ciência do Direito. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 415-416.

12. MASSON, Cleber. Direito Penal Esquematizado - Parte geral - vol. 1 - 9ª ed. rev., atual. e ampl. - Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2015, p. 134.

13. MASSON, Cleber. Direito Penal Esquematizado - Parte geral - vol. 1 - 9ª ed. rev., atual. e ampl. - Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2015, p. 135.

14. NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado e Legislação Extravagante. 9. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 336.

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*Júlia Maria Silva Ferraz é advogada do escritório Ivan Mercêdo Moreira Sociedade de Advogados.

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