Erro científico ou desonestidade científica?
É necessário que a sociedade se conscientize de que as políticas públicas sobre assuntos penitenciários no Brasil se mostram inteiramente equivocadas e contribuem grandemente para a exacerbação da violência.
sexta-feira, 6 de janeiro de 2017
Atualizado em 9 de julho de 2020 08:06
A sociedade se encontra anestesiada por assistir, no dia a dia, a tanta violência de variadas naturezas, que não mais fica indignada, a ponto de não se perturbar, mesmo diante do motim recente ocorrido no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, do que resultou a morte de cerca de 60 (sessenta) detentos. Nesse sentido, o presidente Temer referiu-se a esse episódio qualificando-o como mero "acidente".
Contudo, é necessário que a sociedade se conscientize de que as políticas públicas sobre assuntos penitenciários no Brasil se mostram inteiramente equivocadas e contribuem grandemente para a exacerbação da violência.
A sociedade clama por punições severas. Acredita que somente mediante uma rigorosa postura punitivista seja possível arredar a prática de crimes. Apenas o rigor da lei penal e processual penal poderia dissuadir alguém de praticar ação criminosa.
Contudo, escrevi, há muitos anos, que tentar erradicar o crime, valendo-se das normas penais, seria reincidir na quimera do Rei Canuto que pretendeu dar ordem ao mar para que este recuasse...
Sim, porque o Direito Penal trabalha com os fatos já praticados e não com os antecedentes, as causas e razões sociais ou psicológicas do crime.
A filosofia que inspira o legislador a criar novas e desnecessárias figuras típicas, a elevar as penas, ou, ainda a coarctar benefícios antes previstos para os sentenciados, ou, pior, a baixar a responsabilidade penal de 18 (dezoito) para 16 (dezesseis) anos, tudo em desfavor daqueles segmentos excluídos, abandonados pelo Estado, ao qual se ligam única e exclusivamente pelo Direito Penal, constitui gravíssimo equívoco científico, senão verdadeira desonestidade científica!
O combate ao crime não se perfaz pelo punitivismo do Estado, mas tão só pela resolução dos problemas sociais, um dos quais a imensa desigualdade social, com a consequente desigualdade de tratamento, incluindo a desigualdade de consideração. Todos os homens são iguais... somente perante a lei ou perante Deus. Não, porém, aos olhos humanos... Nesses termos, a sociedade e o Estado não querem reconhecer o criminoso como pessoa, sujeito de direito, relegando-o ao completo abandono, quando a Lei de Execução Penal quer que seja ele reeducado para sua reinserção na sociedade, com a possibilidade de convívio pacífico. Nessa mesma linha, temos assistido, cada vez mais, a reações homofóbicas, racistas, contra refugiados e contra outros grupos vulneráveis.
Quando um juiz criminal condena o réu a cumprir pena privativa de liberdade, colocando-o na prisão, precisa ter a consciência de que o estará condenando ao cumprimento de uma pena muito mais grave do que a lei prescreveu. Se a culpa não é do juiz, mas do Poder Executivo, competente, por lei, para administrar a execução penal e os presídios, não deverá o juiz, contudo, deixar de considerar tal situação, especialmente quando negue benefício previsto em lei. Aliás, a prisão em regime fechado deve ser destinada aos criminosos que praticam crimes violentos, destinando aos demais as penas alternativas.
Nossa população carcerária só é inferior à de três outros países: China, Rússia e Estados Unidos. Pior é que 40% dessa população estão presos em caráter provisório, sem sentença trânsita em julgado.
Dizem, ainda assim, que nosso Judiciário é leniente...
E, do modo como as coisas andam, o poder público precisará construir inúmeras cadeias, em detrimento de escolas e hospitais públicos.
O Juiz Titular da Vara das Execuções Penais de Manaus, Luís Carlos Honório de Valois, é conhecido justamente por sua postura garantista, sensível e experiente, destinando aos sentenciados tratamento humano, mas dentro dos rigores do devido processo legal.
Cumpridor de seus deveres, foi convidado pelas autoridades do Executivo estadual para comparecer ao Complexo Penitenciário, na tentativa de impedir o pior. Mesmo em gozo de férias, aceitou o incômodo convite, a mostrar seu desprendimento.
Conhecia-o apenas por sua fama de juiz garantista. Mas no início do ano de 2016, conheci-o pessoalmente, quando, em Natal, ministrou excelente curso de execução penal.
Nessa ocasião, voltei alentado a São Paulo, por ver que, no Brasil, ainda há - e muitos - juízes talentosos e vocacionados.
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*Celso Limongi é advogado do escritório Limongi Sociedade de Advogados, ex-presidente do TJ/SP.