O novíssimo código de processo civil - Criação do "Habeas Renan"
Para que alguém tenha direito ao novo tipo de habeas corpus (livrar o corpo ou sair de banda), é preciso que o interessado seja uma pessoa que ocupe um importante cargo em qualquer dos Três Poderes.
terça-feira, 3 de janeiro de 2017
Atualizado em 2 de janeiro de 2017 08:08
(Em algumas sociedades as pessoas são consideradas iguais, mas certas quantidades delas são "mais iguais do que as outras")
Muitos não se aperceberam, mas nos últimos dias foi promulgada uma lei muito especial, que passará a ser conhecida como Novíssimo Código de Processo Civil, a qual, estranhamente, contém um único instituto, que modificou profundamente o CPC recentemente promulgado, pela criação do "habeas renan".
Para o leitor não acostumado ao jargão jurídico, vamos chamar os demais elementos essenciais desse instituto de ingredientes, tal como se faz em relação à receita de um prato a ser elaborado por um cozinheiro.
Portanto, como ingrediente de partida, absolutamente essencial para que alguém tenha direito ao novo tipo de habeas corpus (livrar o corpo ou sair de banda), é preciso que o interessado seja uma pessoa que ocupe um importante cargo em qualquer dos Três Poderes. Pode ser, por exemplo, a presidência do Senado Federal (qualquer relação com a realidade recente é mera coincidência, em relação à qual o autor não se responsabiliza). Esse instituto não valerá para "gentalha", como dizia D. Florinda, personagem do famoso programa do igualmente famoso comediante Chaves.
Os demais ingredientes são:
- uma acusação produzida por qualquer pessoa contra alguém, feita por meio de ação judicial;
- uma decisão judicial a ser cumprida, tendo em vista que o juiz entendeu que a acusação tinha fundamento (não precisa ser uma liminar monocrática, mas essas são as preferidas);
- um oficial de justiça designado para cumprir a decisão judicial;
- uma cadeira, e um grande bule de chá com a sua chávena (gastei o vernáculo), uma colher e açúcar ou adoçante, para que o dito oficial de justiça possa tomar o famoso chá de cadeira (o chá pode ser acompanhado ou não de biscoitos ou de sanduiches de pepino e mortandela, não devendo ser aceita essa prenda - viva o vernáculo! - ou pixuleco para não ficar configurado o crime de prevaricação por parte do nosso oficial de justiça);
- a negativa do réu em receber o oficial de justiça;
- segue-se o recebimento do oficial de justiça (não da liminar) por algum assessor do réu, que será encaminhado para a cadeira do chá;
- seguem-se infinitas consultas feitas pelo réu aos seus pares (e ímpares) para ver o que se faz, sendo que assinar a contrafé não consta do rol das alternativas;
- para a finalidade acima são necessários telefones celulares seguros, por meio dos quais são feitas ligações frenéticas entre diversas partes interessadas nos seus interesses (que, por acaso, coincidem com votações importantes no Congresso Nacional, cujo andamento depende quase exclusivamente do réu);
- a negativa não formal do réu em assinar a contrafé da decisão judicial trazida pelo oficial de justiça (que já está enjoado de tanto tomar chá) sob a alegação de que o segundo deverá voltar no dia seguinte para saber a decisão que será tomada pelo primeiro;
- frases públicas sobre o caso, caracterizadas pela falta de elegância, não raro sendo usadas palavras muito compridas, mais conhecidas como palavrões;
- frases privadas idem, que algumas vezes se tornam públicas e por isto ficamos sabendo delas;
- Uma reunião do plenário da mais Alta Corte do País, na qual se livra o réu de uma das penalidades que haviam sido estabelecidas, utilizando-se o processo salomônico de serrar a criança ao meio;
- Uma licença-saúde concedida ao oficial de justiça, que teve uma indigestão não somente causada por ter bebido muito chá; e
- A frustração da sociedade em geral, pois ela esperava que o réu tivesse sido condenado a tomar o caminho de casa.
Quanto à sociedade e sua frustração, bem feito. Quem manda ser besta e acreditar que existem duendes no Brasil, alguns deles chamados de instituições?
Assim sendo, nova legem habemus. Expressão de um excesso nacional de democracia, nos igualando assim a um progressista país latino-americano, que navega em um mar de calmaria e bonança. Pois naquela democracia tem alguém que não está mais maduro, mas podre. E a nossa nação verdadeiramente se revelou como a oligarquia que sempre foi. Talvez uma teocracia multiparte, tal como era o Olimpo, não estou bem certo.
Sobrou uma dúvida sobre uma atitude que o oficial de justiça encadeirado deveria ter tomado, não se sabendo se o fez. Isto porque, nos termos do art. 251, II do CPC, deveria ter lavrado termo no sentido de que o senador que deveria ter sido citado havia recusado a contrafé.
Há, sim, ia me esquecendo. O aludido injustamente acusado a partir de agora passa a assinar-se Réunão Calheiros, conforme a sempre correta interpretação da lei e da Justiça.
Cáspite!
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*Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa é sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Professor Sênior do Departamento de Direito Comercial da USP.