Polêmico afastamento do Presidente do Senado
Não faz sentido um Poder destituir Presidente de outro Poder de forma preventiva e à luz da hipotética situação prevista no § 1º, do art. 86 da CF.
quarta-feira, 14 de dezembro de 2016
Atualizado em 13 de dezembro de 2016 14:45
A questão do afastamento das autoridades que estão na linha de sucessão ou de substituição do Presidente da República não pode ser solucionada à luz de uma situação conjuntural tomada pela revolta popular contra a classe política em geral, ainda que justa. Deve ser decidia unicamente à luz dos preceitos constitucionais pertinentes.
Para clareza e compreensão da tese adiante esposada transcrevemos o art. 86 e § 1º da CF in verbis:
"Art. 86. Admitida a acusação contra o Presidente da República, por dois terços da Câmara dos Deputados, será ele submetido a julgamento perante o Supremo Tribunal Federal, nas infrações penais comuns, ou perante o Senado Federal, nos crimes de responsabilidade.
§ 1º O Presidente ficará suspenso de suas funções:
I - nas infrações penais comuns, se recebida a denúncia ou queixa-crime pelo Supremo Tribunal Federal;
II - nos crimes de responsabilidade, após a instauração do processo pelo Senado Federal.
À toda evidência, o "Presidente" a que alude o § 1º refere-se ao Presidente da República, porque vinculado ao caput que cuida dos crimes comuns e de infrações políticas (crimes de responsabilidade) do Presidente da República a serem julgados, respectivamente, pelo STF e pelo Senado Federal.
Os crimes comuns estão tipificados em 351 artigos do Código Penal que vão desde simples acidente de trânsito resultando em lesões corporais até crimes hediondos insuscetíveis de fiança, de graça ou anistia. Estão tipificadas, ainda, inúmeras condutas previstas nos estatutos específicos, como crimes contra a ordem tributária, crimes contra economia popular, crimes contra a segurança nacional, etc. Os crimes de responsabilidade, na verdade, infrações políticas, por sua vez, estão definidos na Lei 1.079/50 nas quatro modalidades: crimes contra a probidade da administração (art. 9º), crimes contra a lei orçamentária (art. 10), crimes contra a guarda legal e emprego de dinheiros públicos (art. 11) e crimes contra o cumprimento das decisões judiciárias (art. 12). Essa última modalidade ocorre concretamente com frequência quase que contínua, mas, até hoje, nenhuma autoridade foi punida, disso resultando, por exemplo, em precatórios judiciais ditos "impagáveis".
Como se verifica, com tantas condutas tipificadas há sempre uma possibilidade de um Chefe de Poder vir a incidir em um dos crimes de natureza comum a que se refere o texto constitucional sob exame, que configura uma norma do tipo bastante aberto.
Por se tratar de grave medida restritiva não cabe a interpretação ampla ou analógica para estender a aplicação do § 1º aos Presidentes do Legislativo e do Judiciário. Mesmo em relação ao Presidente da República, quando for o caso, a questão deve ser examinada à luz do princípio da razoabilidade e da proporcionalidade. Imagine-se a hipótese de o Presidente ter atropelado um pedestre durante uma pedalada, como fazia costumeiramente a ex-inquilina do Palácio da Alvorada. Recebida a denúncia pelo STF pelo crime de lesão corporal culposa deve o Presidente da República ser afastado do cargo? Parece-me desproporcional, na hipótese, tamanha penalidade.
Não há que se suspender em bloco, preventivamente, o exercício do cargo de Presidente da Câmara, do Senado ou do STF na hipótese de todos eles estarem respondendo processo criminal perante o C. Supremo Tribunal Federal.
O certo é que a Constituição no seu art. 86 e § 1º, não cuidou da hipótese de afastamento dos cargos de Presidente do Legislativo e do STF. Pode até se argumentar que a Carta Magna deixou de exigir a mesma probidade que se impõe para o exercício do cargo de Presidente de República. Mas, isso é uma outra questão. Fora de dúvida que não cabe ao intérprete substituir-se no critério de justiça adotado pelo legislador, sob pena de provocar desmoronamento total do edifício jurídico.
No caso concreto do afastamento liminar do Presidente do Senado aplicou-se o § 1º, do art. 86 da CF de forma preventiva, sem que houvesse periculum in mora. Vejamos.
O Presidente do Senado situa-se na 2ª linha de substituição, figurando na 1ª linha o Presidente da Câmara, isso porque atualmente não há ocupante do cargo de Vice-Presidente, primeiro na linha sucessória. Consigne-se que apenas o Vice-Presidente é o sucessor do Presidente; os demais são meros substitutos temporários do Presidente da República.
Outrossim, a sessão legislativa estava quase por findar-se. Com a sua reabertura em fevereiro de 2017 o Senado funcionará sob a presidência do Senador acusado somente até abril de 2017. Não é provável nesse cenário que o Presidente do Senado Federal venha situar-se na condição de autoridade que deva substituir o Presidente da República, por impedimento eventual da Presidente da Câmara dos Deputados.
Contudo, na eventualidade de vir a ocorrer essa hipótese improvável, a aplicação do § 1º, do art. 86 dar-se-á nesse momento, impedindo a assunção do cargo presidencial pelo Presidente do Senado. Em outras palavras, a aplicação do § 1º é para ser deliberada se e quando ocorrer concretamente a hipótese prevista.
Não faz sentido um Poder destituir Presidente de outro Poder de forma preventiva e à luz da hipotética situação prevista no § 1º, do art. 86 da CF.
O art. 10, da Lei 9.882/99, invocado pela Rede de Sustentabilidade para requerer o afastamento do Presidente do Senado, por sua vez, não tem sustentação no preceito constitucional citado, por ser uma lei de natureza processual, não tendo o condão de criar o direito material, principalmente, direito de natureza constitucional.
A decisão plenária da Corte Suprema deu a única solução correta e compatível com o princípio da independência e harmonia dos Poderes ao assentar a tese, por maioria de votos, que o Presidente do Senado sob processo criminal preserva o seu cargo de Presidente, mas fica afastado da linha de substituição do Presidente da República. Perdurasse o impasse com o STF determinando o afastamento e o Presidente do Senado e do Congresso Nacional opondo resistência a essa determinação judicial com o respaldo da maioria dos membros da Mesa do Senado, o impasse poderia evoluir para um confronto entre os Poderes. De fato, nessa situação, qualquer um dos dois Poderes poderia provocar a ação das Forças Armadas para assegurar o seu regular funcionamento, nos termos do art. 144 da CF. A decisão da Mesa não era a de posicionar-se a favor do Presidente acusado, mas, a favor a instituição Senado Federal, uma das Casas que compõe o Poder Legislativo independente e harmônico. Não fora essa circunstância, por óbvio, o Senador do PT, Vice-Presidente do Senado teria ocupado o cargo rapidinho.
Na verdade, essa decisão respeitável do Plenário da Corte Suprema não cuidou de um caso concreto, mas de uma situação hipotética trazida inoportunamente pela Rede de Sustentabilidade, tanto é que aquela decisão tem o valor de uma mera consulta. É improvável que ela seja aplicada concretamente porque não é provável que o Presidente do Senado, até abril de 2017 venha, de fato, posicionar-se como autoridade que deva substituir o Presidente da República, hipótese em que incidiria o § 1º, do art. 86 da CF, não antes.
Exigir que as autoridades que estejam respondendo ao processo criminal se afastem da Presidência do Poder Legislativo é um direito legítimo do cidadão. Aliás, é desejável que a sociedade se mobilize e pressione as autoridades que ocupam a Presidência do Senado ou da Câmara, indiferentes a inúmeras denúncias de atos de corrupção, para que eles renunciem a seus cargos. Essa pressão é válida, também, para induzir a ação dos próprios órgãos do Poder denegrido em sua imagem no sentido de adotar providências objetivando remover do comando quem está constrangendo seus pares perante a opinião pública. Poderão dizer que isso já está sendo feito, sem resultado positivo, razão pela qual toda a classe política está desacreditada perante a opinião pública. Mas, qualquer solução sensata deve ser pela Constituição.
Seja como for, a via adequada para a remoção de autoridades que continuam no cargo contra tudo e contra todos não é aquela utilizada pela Rede de Sustentabilidade que se apegou a um preceito normativo de lei ordinária sem sustentação no pretenso texto constitucional invocado. No episódio, a Rede prestou um desserviço à nação ao agir exatamente na linha do pensamento radical de Jean Jacques Rousseau: ser sensato em um mundo de loucos já é uma espécie de loucura.
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*Kiyoshi Harada é sócio-fundador do escritório Harada Advogados Associados. Jurista, com 31 obras publicadas, é ex-procurador chefe da Consultoria Jurídica.