A descriminalização do aborto
A vida é um bem indisponível e, na realidade, não pertence a uma ou outra pessoa e sim à própria humanidade, que a administra de acordo com os preceitos da dignidade humana.
domingo, 4 de dezembro de 2016
Atualizado em 2 de dezembro de 2016 13:16
Os ministros Luis Roberto Barroso, Rosa Weber e Edson Fachin, que constituem a maioria da primeira turma do Supremo Tribunal Federal, no julgamento de um pedido de habeas corpus concedido a cinco pessoas que trabalhavam em uma clínica clandestina de aborto, decidiram, de forma inédita, sem que fizesse parte do pleito penal, que o aborto praticado nos três primeiros meses de gestação não é crime. Vale aqui lembrar que na Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, o mesmo Tribunal autorizou a realização de aborto quando se tratar de feto anencéfalo, aquele com malformação fetal, desprovido da caixa craniana e dos hemisférios cerebrais, responsáveis pela morte do feto antes ou logo após o parto e, na sequência, irá julgar processo em que se pleiteia a autorização de aborto quando se tratar de gestante infectada pelo vírus da Zika.
Trata-se de uma decisão que, ao primeiro contato, causa certa estranheza porque nada indicava que o tema do aborto seria levado a julgamento pela Corte Maior. É certo que a eficácia da decisão produzirá efeitos somente no âmbito do processo julgado, sem carregar a característica cogente do erga omnes. Mas, mesmo assim, abre-se uma fenda por onde outras decisões poderão se abrigar e, num crescendo, a descriminalização do crime de aborto ganhará corpo com outros referendos do Judiciário.
Indisfarçável que tal decisão causou não só perplexidade, em razão de um tema polêmico na sociedade brasileira ser apreciado de forma tão rápida, como também muitas dúvidas começaram a ser levantadas com relação à competência legislativa da Corte Maior. Várias cunhas foram metidas no assunto, que frequenta com assiduidade as discussões mais acaloradas e, de uma forma caleidoscópica, em que cada cor quer manter seu espaço com visibilidade maior, os vários seguimentos interessados, sejam religiosos, jurídicos, áreas da saúde e outros mais, mantêm posições irredutíveis, dificultando uma solução que atenda a todos os interesses. Esta fermentação coletiva, que provoca o amadurecimento necessário para uma decisão ajustada, contando também com a opinião popular, é salutar para se livrar do terreno movediço em que se encontra a nação para buscar a terra firme do consenso.
Não se pode descartar a corrente majoritária contra a prática abortiva que vê o embrião humano, como uma spes hominis, depositário do
A fundamentação legal teve como base de sustentação a autonomia da vontade da gestante, a proteção da sua integridade física e psíquica, seus direitos sexuais e reprodutivos, além da igualdade de gênero. São direitos de última geração na avaliação de Bobbio e que, inegavelmente, tutelam a mulher na sua função procriativa, observando que, no caso presente, trata-se de gravidez proveniente de prática sexual consentida. Por outro lado, evita-se a criminalização exclusivamente contra as mulheres pobres que não podem se socorrer a um procedimento que seja seguro e fornecido pelo Estado.
Tem-se observado, apesar de timidamente, que o Estado tem nítido interesse na proteção à mulher, não só com a intenção de orientá-la, como também de preveni-la com relação às despreparadas clínicas clandestinas que realizam cerca de um milhão de abortos induzidos por ano. O Ministério da Saúde vem realizando sistemáticas campanhas que colocam a mulher como destinatária de novos serviços e benefícios, principalmente as fundidas
Ocorre que, mesmo com a nova decisão da Suprema Corte, em não havendo a descriminalização expressa no Código Penal, as mulheres desprovidas de recursos continuarão a procurar meios clandestinos para realizar a prática abortiva, pois não contarão com a assistência do Estado, que não disponibilizará os recursos médicos específicos pela sua rede de atendimento. E aí nasce o imbróglio. De um lado, a decisão judicial desconfigurando o caráter criminoso do aborto realizado nos três primeiros meses de gestação, sem qualquer incidência da lei penal e, de outro, a omissão do Estado em não dar guarida às mulheres que querem exercer seu direito, justamente por não existir lei específica regularizando e disciplinando a matéria.
A Comissão encarregada da elaboração do anteprojeto de Código Penal, além de preservar os casos legais já descritos, acrescentou outras hipóteses de liberação do aborto: a) se a gravidez resulta de violação da dignidade sexual, ou do emprego não consentido de técnica de reprodução assistida; b) quando o feto padecer de graves e incuráveis anomalias que inviabilizem a vida extrauterina, devidamente atestado por dois médicos; c) por vontade da gestante até a 12ª semana da gestação, quando o médico ou psicólogo constatar que a mulher não apresenta condições psicológicas de arcar com a maternidade, como, por exemplo, o uso de entorpecentes.
Porém, não conferiu à gestante o direito de optar, de acordo com a sua conveniência e interesse, a respeito da prática até o terceiro mês de gestação.
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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de justiça aposentado/SP, mestre em Direito Público, pós-doutorado em ciências da saúde, advogado, reitor da Unorp e membro ad hoc da CONEP/CNS/MS.