Para que a Justiça Desportiva chegue, enfim, ao século XXI
O Direito Desportivo propriamente dito é aquele realizado nos tribunais de justiça desportiva, onde as infrações disciplinares relativas à competição são julgadas, conforme dispositivos do art. 217 da CF.
sexta-feira, 18 de novembro de 2016
Atualizado em 17 de novembro de 2016 08:02
A cena se passa na primeira metade da década de 80.
É uma tarde quente de um sábado do mês de novembro. A piscina do clube está cheia e o advogado está ali divertindo-se com a sua família.
Além de associado, o advogado também é fervoroso torcedor do time de futebol profissional do clube, que, aliás, está se preparando para jogar as finais do campeonato estadual, o mais importante da temporada naqueles tempos.
Da piscina, o advogado repara na chegada daquele homem de terno e gravata, naquele calor escaldante, que pede ao porteiro da piscina para que abra uma porta lateral para que ele possa entrar no deck sem ter que molhar os seus sapatos.
O presidente do clube vai à piscina para conversar com o advogado que, segundo uma dica de um conselheiro, poderá - e jamais se negará - ajudar o clube em uma situação urgente e gravíssima.
O presidente se aproxima do advogado e lhe pede um favor. Na segunda-feira próxima, o centroavante do time será julgado no Tribunal de Justiça Desportiva do Estado. Foi expulso na semifinal e, ao sair do campo, xingou o árbitro da partida. Se condenado, irá desfalcar o time nas partidas da decisão e essa tragédia não pode acontecer. O advogado é convidado a fazer a defesa no julgamento que acontecerá em pouco mais de 48 horas.
O advogado aceita a incumbência que recebe com enorme honra. Está, na verdade, absolutamente orgulhoso por poder ajudar seu time do coração e o clube que é sócio desde antes de nascer (seu pai comprara um título familiar logo depois de se casar com sua mãe, ainda antes de ter filhos).
Então, conversa com a esposa e avisa que deixará o convívio da família por alguns minutos para ir à sala da presidência do clube examinar os documentos do caso, já que a secretaria não estará aberta no domingo e segunda-feira é o grande dia. Veste-se e acompanha o Presidente à sua sala, onde examina a súmula do árbitro (no caso, "O" documento do caso) na mesa do Presidente e toma ciência do relato do árbitro, que menciona: "aos 38 minutos do segundo tempo, expulsei o camisa 9 por jogada violenta e, enquanto saia do campo, ele proferiu palavras de baixo calão em minha direção, ofendendo especialmente a figura da minha progenitora."
Segunda-feira o advogado sai um pouco mais cedo do seu escritório e vai à sede do Tribunal - que funciona no mesmo edifício onde fica também a sede da federação estadual. Vai com a convicção de que será protagonista de um julgamento que poderá decidir os destinos do seu clube no campeonato. Apesar de sua vasta experiência, inclusive em tribunais do júri, está ansioso. Sente como quem irá também jogar uma final de campeonato. Todo torcedor é, na verdade, um jogador frustrado.
Ao chegar no Tribunal de Justiça Desportiva, depara-se com velhos conhecidos, colegas advogados, há também auditores que são delegados e investigadores de polícia. Todos os auditores são voluntários e estão ali porque foram indicados pelo Presidente da Federação.
O advogado faz a melhor defesa que lhe seria possível fazer. Aponta os erros praticados pelo árbitro na condução do jogo como elemento que teria levado o atleta-denunciado a "perder a cabeça" e proferir aquelas palavras, sob o efeito da emoção causada pelo calor da partida. Mostra os bons antecedentes do denunciado, seus serviços prestados ao futebol brasileiro - inclusive com partidas pela Seleção Nacional - e ressalta o grave dano - ao jogador, ao clube, ao espetáculo e ao próprio campeonato tão brilhante mesmo organizado pela Federação - da exclusão do atleta das partidas finais.
Os auditores parabenizam o advogado pela brilhante defesa. E condenam o atleta à pena de 2 partidas.
O advogado recebe a decisão com serenidade e, até, com alguma satisfação. Está tudo correndo como planejado.
Na sua pasta está pronto e assinado o recurso com efeito suspensivo dirigido ao Presidente do STJD da Federação. O advogado dirige-se à sala do Presidente - no mesmo edifício da mesma Federação - e despacha o recurso. O presidente do STJD recebe e confere efeito suspensivo.
E assim, o craque irá jogar as duas partidas da final. Não tivesse sido marcado o julgamento para aquela segunda-feira - a partida foi no domingo, não o da véspera, mas o anterior - e o centroavante teria de cumprir a suspensão automática. Ficaria fora do primeiro jogo da decisão. Depois de julgado - e condenado em primeira instância - porém, será beneficiado com o efeito suspensivo conferido ao recurso e jogará normalmente as duas partidas. Cumprirá a pena - se o recurso não for provido - nos primeiros meses do próximo ano, quando as competições estarão em suas fases iniciais.
No domingo seguinte, na tribuna do Presidente no estádio da primeira partida decisiva, o advogado recebe, orgulhoso, do primeiro mandatário do clube, de sua diretoria e dos conselheiros os parabéns pelo feito. Vai começar o jogo, o centroavante está em campo aquecendo-se com os seus companheiros e adversários. Esses são os honorários do advogado, os cumprimentos de sua coletividade e a satisfação do seu coração de torcedor. Ele os recebe com enorme satisfação.
Pano rápido.
Estamos, agora, em 2016.
Em um escritório de advocacia importante da cidade, uma equipe com sócio e dois associados do escritório estão reunidos na sala de reunião discutindo a defesa do cliente-clube que os contratou para representar a instituição denunciada por terem, seus torcedores, proferido ofensas discriminatórias contra atleta adversário em partida realizada no seu campo.
A elaboração da defesa para esse caso complexo e de enorme gravidade é um trabalho meticuloso, profissional. O clube paga os serviços advocatícios pelo critério hora trabalhada. E tem a exata noção da relevância do serviço prestado vis a vis a relevância do caso para o clube, que poderá ser excluído da competição de que participa e ter seu estádio interditado por um longo período, o que se quantifica em prejuízo financeiro direto e indireto, seja com a consequente perda de valores de bilheteria, diminuição dos valores de patrocínio, piora nas receitas da venda dos direitos de transmissão para TV - leia-se, TV, internet, transmissões internacionais, transmissões pelos celulares, tablets - redução na venda de camisas, queda no valor da remuneração pela cessão de espaços - camarotes - no estádio, além de um gravíssimo dano à imagem e marca do clube, perda de novos torcedores....os danos são potencial e inqualificavelmente relevantes.
A defesa do clube é feita por escrito e protocolada alguns dias antes do julgamento na Secretaria do STJD, numa longa peça de 25 laudas instruída com pareceres nacionais e em língua estrangeira com tradução juramentada. A doutrina penal mais atualizada sobre o caso é juntada na defesa escrita e mencionada na defesa oral realizada pelo sócio do escritório durante a sessão de julgamento. Em seguida, os auditores irão proferir seus votos, iniciando pelo relator.
Muita coisa mudou entre a primeira metade da década de 80 e este nosso ano de 2016. No mundo, no país, na forma de se administrar o esporte, em especial o futebol, na criação e entrada em vigor de novos códigos de justiça desportiva com novos tipos previstos - como o caso de ofensas discriminatórias por torcedores -, na previsão e regulamentação da Justiça Desportiva pela CF/88, com regulamentação infraconstitucional pela lei 9.615/98 ("lei Pelé") passou a definir critérios para indicação dos membros dos STJDs.
Porém, o julgamento do caso de 2016, como no dos anos 80, ainda é realizado na sede da Federação, que é responsável pelo custeio das despesas do tribunal de justiça desportiva. E os auditores ainda são operadores do direito que atuam na condição de voluntários, indicados por critérios definidos no art. da lei 9.615/981, ainda sob critérios absolutamente subjetivos. Nesse ponto, nada mudou.
Pois, deveria.
O esporte profissional é hoje, indiscutivelmente, atividade com absoluta relevância econômica, movimenta alguns bilhões de dólares por ano. A atuação do advogado que milita no chamado Direito Desportivo profissionalizou-se tanto quanto. Grandes escritórios criaram áreas específicas para atuação no esporte. Abriram-se outros escritórios especializados na matéria.
O Direito Desportivo propriamente dito é aquele realizado nos tribunais de justiça desportiva, onde as infrações disciplinares relativas à competição são julgadas, conforme dispositivos do art. 217 da CF. O que se convencionou chamar de outros ramos do Direito Desportivo constitui-se, na verdade, da aplicação de áreas do direito - direito civil, direito societário, tributário, consumidor e etc. às situações decorrentes da atividade esportiva.
É fundamental seja consolidada a regra de absoluta independência dos órgãos da Justiça Desportiva em relação às federações e confederações que organizam as competições. Isso significa que os tribunais de justiça desportiva devem ter autonomia financeira para custear suas atividades sem que tais despesas sejam assumidas pelas entidades de administração.
Da mesma forma, a independência da Justiça Desportiva também passa pela mudança de critério de indicação dos procuradores e auditores. Mesmo os critérios adotados pelo art. 55 da lei 9.615/98 ainda não estão em sintonia com as necessidades de uma Justiça Desportiva formado por quadros ainda mais qualificados - não que os auditores de hoje não o sejam, mas tal qualificação deve ser aferida por critérios objetivos - independentes e autônomos.
Essa condição somente será atingida com a realização de concursos para designação dos integrantes da justiça desportiva. E com a implementação de remuneração aos procuradores e auditores.
O advogado profissional que milita na Justiça Desportiva em causas que, muitas vezes, tem repercussão financeira relevantíssima para seus clientes, deve lidar com procuradores e auditores profissionais, indicados pela aferição de capacidade objetivamente apurada em concurso, integrantes de uma Justiça Desportiva autônoma e independente de qualquer outro ente partícipe da atividade esportiva.
A Justiça Desportiva não deve ser colocada em condição de inferioridade em relação a outros ramos da Justiça no que diz respeito à sua organização e funcionamento. Não há justificativa para que a Justiça Desportiva - prevista na Constituição Federal - receba tratamento diferenciado em relação aos outros ramos da Justiça, que são, todos eles, subvencionados pelo Estado a partir da administração das taxas e emolumentos. As federações e confederações que, inclusive, estão sujeitas - e seus dirigentes - a serem julgadas nos termos do Código Brasileiro de Justiça Desportiva, não devem custear e manter nas suas dependências o seu funcionamento.
Assim, a Justiça Desportiva, enfim, chegará aos tempos atuais e, certamente, suas decisões serão recebidas com muito maior credibilidade pela sociedade como um todo.
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1 Art. 55. O STJ Desportiva e os Tribunais de Justiça Desportiva serão compostos por nove membros, sendo: (Redação dada pela lei 9.981/00)
I - dois indicados pela entidade de administração do desporto; (Redação dada pela lei 9.981/00)
II - dois indicados pelas entidades de prática desportiva que participem de competições oficiais da divisão principal; (Redação dada pela lei 9.981/00)
III - dois advogados com notório saber jurídico desportivo, indicados pela Ordem dos Advogados do Brasil; (Redação dada pela lei 9.981/00)
IV - 1 representante dos árbitros, indicado pela respectiva entidade de classe; (Redação dada pela lei 12.395/11).
V - 2 representantes dos atletas, indicados pelas respectivas entidades sindicais. (Redação dada pela lei 12.395/11).
§ 1º (Revogado). (Redação dada pela lei 9.98/00)
§ 2º O mandato dos membros dos Tribunais de Justiça Desportiva terá duração máxima de quatro anos, permitida apenas uma recondução. (Redação dada pela lei 9.981/00)
§ 3º É vedado aos dirigentes desportivos das entidades de administração e das entidades de prática o exercício de cargo ou função na Justiça Desportiva, exceção feita aos membros dos conselhos deliberativos das entidades de prática desportiva. (Redação dada pela lei 9.981/00)
§ 4º Os membros dos Tribunais de Justiça Desportiva poderão ser bacharéis em Direito ou pessoas de notório saber jurídico, e de conduta ilibada.
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*José Francisco C. Manssur é presidente da Comissão de Direito Desportivo e Mercado do MDA - Movimento de Defesa da Advocacia. Auditor Voluntário (não-concursado) do Tribunal de Justiça Desportiva do Basquete.