Acorda Brasil - Um discurso para a história
Não basta a Constituição afirmar que a cidadania constitui um dos fundamentos da República, ao lado da soberania, da dignidade da pessoa humana, dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e do pluralismo político. Não é suficiente que o discurso político em tempo de eleição apregoe essa virtude da democracia. Como também é ilusória a crença de que os problemas nacionais e os assuntos que afetam a população sejam resolvidos pelos poderes públicos sem a pressão legítima da sociedade.
quinta-feira, 18 de maio de 2006
Atualizado em 17 de maio de 2006 12:51
Acorda Brasil
Um discurso para a história
René Ariel Dotti*
Não basta a Constituição afirmar que a cidadania constitui um dos fundamentos da República, ao lado da soberania, da dignidade da pessoa humana, dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e do pluralismo político. Não é suficiente que o discurso político em tempo de eleição apregoe essa virtude da democracia. Como também é ilusória a crença de que os problemas nacionais e os assuntos que afetam a população sejam resolvidos pelos poderes públicos sem a pressão legítima da sociedade.
A bombástica entrevista concedida ao jornal O Globo, pelo ex-Secretário Geral do PT, Silvio Pereira, revela que o plano do empresário Marcos Valério era arrecadar 1 bilhão de reais em fontes públicas e privadas para alimentar a corrupção e manter a "sofisticada organização criminosa" - como a designou o Procurador-Geral da República em denúncia ao Supremo Tribunal Federal.
O que a nação e o povo estão necessitando, com urgência, são proclamações vigorosas e as ações efetivas dos homens públicos para restaurar o sentimento de dignidade nacional e da auto-estima dos cidadãos. Um dos exemplos marcantes foi o discurso do ministro Marco Aurélio ao assumir a presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Ele condenou autoridades e parlamentares envolvidos em escândalos e as suas "deslavadas mentiras e grosseiras justificativas". Em texto que sai da liturgia funcional para ingressar na histórica luta da educação para a cidadania, o intimorato, sensível e lúcido magistrado verberou a banalização da corrupção no país e denunciou a existência de um "fosso moral e ético". Para Marco Aurélio, existe um forte "segmento da corrupção, seduzido pelo projeto de alcançar o poder de uma forma ilimitada e duradoura".
A firme leitura do documento perante o senador Renan Calheiros, presidente da República em exercício, a ministra Ellen Gracie Northfleet, presidente do Supremo Tribunal Federal e outras autoridades, demonstrou o gesto de repúdio e, ao mesmo tempo, de esperança no enfrentamento da crise de valores morais e da erosão da autoridade mediante a aplicação correta da lei e da ética.
Merece transcrição um dos trechos da manifestação que prega, inclusive, a necessidade de eleições limpas: "A rotina de desfaçatez e indignidade parece não ter limites, levando os já conformados cidadãos brasileiros a uma apatia cada vez mais surpreendente, como se tudo fosse muito natural e devesse ser assim mesmo; como se todos os homens públicos, nas mais diferentes épocas, fossem e tivessem sido igualmente desonestos, numa mistura indistinta de escárnio e afronta, e o erro passado justificasse os erros presentes". (O Globo, "Presidente do TSE: corrupção divide o Brasil", 5.05, p. 11).
Atitudes dessa envergadura moral lembram passagens inesquecíveis da vida política das nações e dos povos. Um dos exemplos é a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), aprovada em momento culminante da Revolução Francesa. Em sua introdução aquele documento contra a corrupção e o arbítrio proclama: "Os representantes do povo francês, constituídos em Assembléia Nacional, considerando que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas das desgraças públicas e da corrupção dos governos, resolveram expor em declaração solene os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do Homem, a fim de que esta declaração, constantemente presente em todos os membros do corpo social, lhes lembre sem cessar os seus direitos e os seus deveres; a fim de que os atos do Poder Legislativo e do Poder Executivo, podendo ser em cada momento comparados com a finalidade de toda a instituição política, sejam por isso mais respeitados; a fim de que as reclamações dos cidadãos, doravante fundadas em princípios simples e incontestáveis, se dirijam sempre à conservação da Constituição e à felicidade geral."
Palavras que o tempo não esmaeceu. E que devem ser repetidas como prece ao civismo para resistir ao vendaval da anomia, ao dilúvio da esperança e ao terremoto da ética.
*Advogado do Escritório Professor René Dotti
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