O transexual e o crime de feminicídio
O mandamento constitucional apresenta-se como norma protetiva e inclusiva em favor daqueles que quando a lei se refere a determinadas pessoas cria normas de conduta que se tornam incompreensíveis para aqueles que foram excluídos.
domingo, 13 de novembro de 2016
Atualizado em 11 de novembro de 2016 09:21
O promotor de Justiça Flávio Farinazzo Lorza, que oficia perante o 3º Tribunal do Júri de São Paulo, ofereceu denúncia, já recebida pelo Judiciário, por crime de feminicídio, contra o ex-companheiro de uma transexual por ele assassinada em fevereiro de 2016, colocando fim a uma convivência de 10 anos1.
É, sem dúvida, a primeira investida a ser dada na interpretação extensiva à Lei Maria da Penha, na conjugação com o novo tipo penal acrescentado pela lei 13.104/2015, ampliando-a para que abrigue a conceituação definida como qualificadora do crime de homicídio, na modalidade de feminicídio, criada justamente para disciplinar o regramento constitucional que estabelece mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações familiares (art. 226, § 8º da Constituição Federal), focando a mulher como destinatária da tutela específica. No caso relatado, cabe perfeita analogia que, em síntese, pode ser definida como uma autointegração do Direito, levando-se em consideração que, segundo a conceituação legal, "configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial".
A evolução dos costumes sociais, acompanhada da lenta morosidade legislativa, que praticamente muito pouco ofereceu aos conviventes de uniões homoafetivas, ganhou novo rumo com consideráveis ganhos com a Constituição Federal de 1988, que introduziu, dentre muitos outros, os princípios da isonomia, dignidade da pessoa humana, a convivência harmônica em uma sociedade plural justa e solidária, com a consequente abertura para o direito à diversidade. Em consequência, abriu-se uma conotação diferenciada com relação à convivência estável e duradoura entre pessoas do mesmo sexo, homologando tal união como entidade familiar. Relevantes, também as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 132 e na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277, em que houve reconhecimento dos direitos homoafetivos e a posterior resolução 175, do Conselho Nacional de Justiça, que instituiu o casamento homoafetivo e a conversão da união homoafetiva em casamento.
O mandamento constitucional apresenta-se como norma protetiva e inclusiva em favor daqueles que quando a lei se refere a determinadas pessoas cria normas de conduta que se tornam incompreensíveis para aqueles que foram excluídos. Por isso que, conforme esclarece Hart, "o direito deve referir-se preferencialmente, embora não exclusivamente, a classes de pessoas e a classes de condutas, coisas e circunstâncias; e o êxito de sua atuação sobre vastas áreas da vida social depende de uma capacidade amplamente difusa de reconhecer certos atos, coisas e circunstâncias como manifestações das classificações gerais feitas pelas leis"2.
Assim, nesta linha de pensamento, o transexual, embora seja portador de órgãos definidos, se apresentar inequívoca intenção pelo sexo oposto, ligado ao gênero feminino e a ele plenamente ajustado, pode ser vítima, com a consequente aplicação do dispositivo penal do feminicídio, cabendo, portanto, denúncia por tal delito. Interessante observar que o Conselho Nacional de Procuradores Gerais, em recente orientação ao Ministério Público, recomenda a aplicação da Lei Maria da Penha em agressões a mulheres transexuais, mesmo que não tenham se submetido à cirurgia de transgenitalização e também não tenham alterado o nome ou o sexo no registro civil.
Mais recente ainda e, reprisando a mesma tecla no sentido de reconhecer a desnecessidade do procedimento cirúrgico, é o parecer ofertado pelo Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, no Recurso Extraordinário 670.422, que teve repercussão geral reconhecida. Acentuou o chefe do Parquet que "é possível a alteração de gênero no registro civil de transexual, mesmo sem a realização de procedimento cirúrgico de adequação de sexo, sendo vedada a inclusão, ainda que sigilosa, do termo "transexual" ou do sexo biológico nos respectivos assentos".
Assim, o direito à autodeterminação sexual integra os direitos fundamentais e faz pensar como Paul Ricoeur quando trata da hermenêutica de si mesmo ao indagar se as pessoas são corpos ou possuem corpos, mesmo se concentrando na mesma identidade. Tal questionamento faz ver que, na realidade, a pessoa nada mais é do que revela a sua manifestação psíquica, social e moral, deixando transparecer a adequação sexual assumida, enquanto que o corpo, instrumento deambulatório que é, apresenta-se como a revelação física. Muito próximo também do pensamento de Foucault em que o homem procura dentro de si mesmo um espaço para se conhecer, construir e definir e, posteriormente, em contato com o mundo externo, apresenta-se realmente como é, sem esconder sua verdadeira identidade, justamente para que possa desenvolver seu projeto de vida de acordo com suas preferências.
Pertinente, no âmbito da diversidade sexual enfocado, o pensamento da filósofa existencialista Simone de Beauvoir, quando afirma: "Ninguém nasce mulher: torna-se mulher", fazendo ver que o sexo não é o fator determinante do gênero, que se apresenta como a escolha construída de forma consciente pela pessoa. Assim, nada impede que um corpo masculino possa abrigar o gênero feminino.
Parece obre de ficção. Mas é a realidade.
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1 MP oferece primeira denúncia por feminicídio de transexual em SP.
2 Hart. H.L.A. O conceito de direito. Tradução de Antonio de Oliveira Sette-Câmara. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 161.
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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp.