O arrependimento e o Direito Penal
O ato espontâneo é aquele que emerge da vontade do próprio agente, isto é, não há terceira pessoa que, de qualquer modo, faça nascer a vontade.
domingo, 6 de novembro de 2016
Atualizado em 4 de novembro de 2016 12:32
Recentemente, noticiou-se que um furtador, após quebrar a janela de um veículo, que estava estacionado na via pública, de propriedade de um advogado, subtraiu diversos bens que estavam em seu interior, incluindo um notebook e um HD externo, onde o profissional guardava todos os dados de seu trabalho.
Sem informações a respeito da autoria, o advogado, repetindo mentalmente o acerto da frase de Machado de Assis, no sentido de que "a ocasião faz o furto; o ladrão nasce feito", resolveu publicar um texto no Facebook, noticiando o crime e pedindo para que o furtador devolvesse, ao menos, seu HD, para que pudesse retomar seu ofício, no que foi, de maneira surpreendente, atendido, tendo sido lhe restituído, de maneira anônima, o notebook1.
Tal conduta, além de plausível e se caracterizar como exceção, pois dificilmente o autor do furto irá atender o reclamo do proprietário e é bem provável que, se assim agir, irá exigir uma soma em dinheiro superior até mesmo ao valor do bem, provoca repercussão imediata no campo penal e merece algumas considerações a respeito.
Com efeito, como é sabido, "nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato voluntário do agente, a pena será reduzida de um a dois terços" (artigo 16 do Código Penal).
Prima facie, este artigo dispõe sobre a causa de diminuição de pena conhecida como arrependimento posterior, segundo a qual o agente que restituir a coisa ou reparar o dano, até o recebimento da denúncia, terá sua pena diminuída até 2/3.
Por outro lado, se a restituição (ou reparação) se der após o recebimento da exordial, não há como reconhecer esta causa de diminuição, muito embora ainda seja possível, em tese, aplicar a atenuante genérica prevista no artigo 65, inciso III, alínea "b", do Código Penal.
Sendo assim, para que se possa aferir a incidência desta causa de diminuição de pena, é preciso que sejam satisfeitos, ainda, dois requisitos legais:
a) O crime ser praticado sem violência ou grave ameaça à pessoa;
b) O ato de restituição da coisa ou de reparação do dano deve ser voluntário.
Nesse raciocínio, tem-se que, in casu, ocorreu a prática, em tese, do crime de furto qualificado pelo rompimento de obstáculo, pelo que se reputa preenchido o primeiro requisito, já que a violência foi empregada contra um objeto, e não contra a pessoa.
Quanto ao segundo requisito legal, reputa-se imperiosa a distinção entre dois termos que, embora parecidos, são totalmente distintos, capazes, inclusive, de determinar o reconhecimento, ou não, do arrependimento posterior.
Com efeito, a lei exige que o ato de restituição ou de reparação seja voluntário.
Pois bem.
Mas é necessário, ainda, que seja espontâneo?
A doutrina é clara ao não exigir esta hipótese. Isso porque o ato espontâneo é aquele que emerge da vontade do próprio agente, isto é, não há terceira pessoa que, de qualquer modo, faça nascer a vontade. Como exemplo, imagina-se que, neste caso concreto, o furtador tenha se arrependido de sua conduta, seja por convicções religiosas, filosóficas, ou mesmo sem razão aparente, desejando, por vontade própria, restituir o bem furtado. Nesse caso, o ato do agente é voluntário, e também é apto a configurar o arrependimento posterior.
Todavia, a lei não exige tanto do agente. Basta que ele, de modo voluntário, devolva o bem, que pratique a restitutio in integrum, de preferência. Ou seja, suponha-se que um amigo, ou familiares do furtador, convença-o a restituir o bem. Nesse caso, o ato não foi espontâneo, pois não emergiu da vontade própria do agente; terceira pessoa fez nascer, no autor do ilícito, a vontade de restituir o bem furtado, o que basta, para a lei, para configurar a referida causa de diminuição de pena.
É evidente que o ato voluntário se configura mediante lícita vontade, isto é, caso um policial flagre o agente ao final da empreitada criminosa, o que faz com que o furtador "desista" da ação, alegando estar arrependido, não há que se falar em arrependimento, pois é evidente que o agente apenas desejaria restituir a coisa para não ser licitamente preso em flagrante. Então, sua conduta se amoldaria, de acordo com o caso concreto, em crime tentado ou consumado.
Também é forçoso destacar que o agente precisa restituir a coisa, ou reparar o dano, de maneira integral. Logo, neste caso concreto, não há como reconhecer o arrependimento posterior, tendo em vista que apenas parte das rei furtivae foi devolvida.
Em apertada síntese, é o que se pode extrair com base do crime noticiado, denotando o relevante alcance das redes sociais, que permitem, inclusive, a comunicação entre vítimas e furtadores, bem como a improvável recuperação, de modo voluntário, da res. Parodiando novamente o Bruxo do Cosme Velho, o advogado, que conseguiu recuperar pelo menos o que mais lhe interessava, irá se lembrar de outro pensamento dele: "Não levante a espada sobre a cabeça de quem te pediu perdão".
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1 Casal apela em rede social para vândalos devolverem material de trabalho.
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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp.
*Antonelli Antonio Moreira Secanho é assistente jurídico no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, bacharel em Direito pela PUC/Campinas e pós-graduação "lato sensu" em Direito Penal e Processual Penal pela PUC/SP.