Leitura constitucional da tutela penal: dignidade e body stalk
Defender o direito de realizar voluntariamente a interrupção da gravidez é defender o direito da gestante de ser sujeita de sua própria autonomia diante de uma decisão grave, de última instância, a que chegou pela inviabilidade do feto fora do útero.
sexta-feira, 28 de outubro de 2016
Atualizado em 27 de outubro de 2016 07:14
A anomalia conhecida como body stalk é uma malformação fetal grave decorrente da falha da formação das dobras cefálica, caudal e laterais do corpo embrionário, ocorrendo em média em um a cada quinze mil gestações1. O feto, por não possuir cordão umbilical, tem seu abdómem aberto - sem parede - colado na placenta da mãe.
Infelizmente, não há conduta médica terapêutica capaz de reverter esta condição durante ou após o parto. O conjunto das más formações que o feto possui é incompatível com a sobrevida extrauterina.
Foi justamente diante de um diagnóstico deste que, ajuizou-se medida para autorização judicial de interrupção da gravidez em atuação pro bono do escritório Fachin Advogados Associados.
O que lastreou o referido pedido, acolhido integralmente com a manifestação favorável do parquet, foi justamente a leitura penal sob as lentes do princípio da dignidade humana que leva a duas consequências em relação ao ato de interrupção da gravidez diante do referido diagnóstico: (i) a primeira delas é que não há violação à lei penal e ao bem jurídico vida por tutelado; (ii) a segunda é que, independente do conceito de vida em questão, a tutela da dignidade da gestante retira toda e qualquer antijuridicidade do ato de interrupção que se espera ver praticado.
Neste caso, a ponderação a fim de garantir a salvaguarda da pessoa humana contra toda forma de degradação se densifica na ausência expectativa de vida do nascituro de um lado e, de outro, na vida, dignidade, liberdade e autonomia da mulher.
Defender o direito de realizar voluntariamente a interrupção da gravidez é defender o direito da gestante de ser sujeita de sua própria autonomia diante de uma decisão grave, de última instância, a que chegou pela inviabilidade do feto fora do útero, sopesada com sofrimento e angústia que não pode suportar de levar a cabo gestação que necessariamente terá como desfecho um natimorto.
As razões religiosas e morais que impedem alguns a não aceitarem a realização da interrupção em qualquer hipótese são razões que devem ser respeitadas, mas que não justificam uma proibição genérica para aqueles que, diante de um caso concreto e específico, tenham entendimento diverso. "Cabe à mulher, e não ao Estado, sopesar valores e sentimentos de ordem estritamente privada, para deliberar pela interrupção, ou não, da gravidez", consoante assentou-se na ADPF 54 julgada pelo STF.
Interferências externas indevidas e desmedidas devem ser sancionadas, conforme recente e grave caso apreciado pelo STJ no qual um padre que manejou habeas corpus para impedir a interrupção da gravidez análoga e foi condenado a ter que indenizar o casal por abuso do direito de ação. Nas palavras da relatora: "A sôfrega e imprudente busca por um direito, em tese, legi'timo, que, no entanto, faz perecer no caminho, direito de outrem, ou mesmo uma toldada percepc¸a~o do pro'prio direito, que impele algue'm a avanc¸ar sobre direito alheio, sa~o considerados abuso de direito, porque o exerci'cio regular do direito, na~o pode se subverter, ele mesmo, em uma transgressa~o a` lei, na modalidade abuso do direito, desvirtuando um interesse aparentemente legi'timo, pelo excesso"2.
Fere de morte o princípio da dignidade humana impingir o constrangimento e a dor de uma gestação que não possui qualquer viabilidade de seguimento, fazendo com que o ato de espera se converta no luto materno. Corroboram neste sentido as palavras de Debora Diniz citadas no contexto da ADPF 54:
"O dever de gestação se converte no dever de dar à luz a um filho para enterra'-lo. Penaliza'-lá com a mantença da gravidez, para a finalidade exclusiva do transplante de órgãos do anence'falo significa uma lesão a` autonomia da mulher, em relação a seu corpo e a` sua dignidade como pessoa".
Não é outro o norte contido no voto do ministro Ayres Britto na referida ADPF: "Levar às últimas consequências esse martírio contra a vontade da mulher corresponde a tortura, a tratamento cruel. Ninguém pode impor a outrem que se assuma enquanto mártir". Isto porque, para além da desumanidade que é submeter a gestante, diante da confirmação do diagnóstico, a contra seu desejo prosseguir com a gestação chegue ao seu fatídico termo, tal não se dá sem risco à mãe. Está-se diante de um cenário de gravidez de altíssimo risco, o que inclusive poderia autorizar a interrupção independente de autorização judicial.
Neste caso, a tutela constitucional e penal da vida não prescinde, portanto, da proteção da dignidade.
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1 Bianchi, DW, Crombleholme, TM, D'Alton, ME. Body-Stalk Anomaly: In Fetology. New York, McGraw Hill 2000. p 453.
2 REsp 1.467.888
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*Melina Girardi Fachin é sócia fundadora e chief operational officer do bureau Fachin Advogados Associados.