GIC dos Bancos - Preocupações concorrenciais e possíveis danos aos consumidores
Com a criação da GIC, a autossuficiência e concentração em toda a cadeia que envolve a concessão de crédito fará com que os bancos requerentes sejam os responsáveis por fornecer, coletar e apreciar os dados, e, com base neles, conceder o crédito.
sexta-feira, 14 de outubro de 2016
Atualizado às 16:01
Tramita atualmente perante o Conselho Administrativo de Defesa Econômica o Ato de Concentração 08700.002792/2016-471, em que os bancos Itaú, Santander, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e Bradesco buscam a aprovação pelo órgão antitruste da constituição de uma joint venture para atuar como bureau de crédito, no mercado de serviços de informações negativas e positivas de crédito, denominada "Gestora de Inteligência de Crédito - Gic".
Vale notar, desde já, que os bancos requerentes possuem aproximadamente 90% da participação do mercado nacional, o que, por si só, já demonstra o alto potencial de lesão à ordem concorrencial trazido pela operação. Há, no caso, preocupações concorrenciais latentes, tais como:
a) Por serem as principais fontes dos bureaus, o não fornecimento, por parte dos bancos requerentes, de informações negativas aos demais bureaus os tornariam menos competitivos em relação à GIC, podendo culminar na consolidação da GIC como o único player do mercado de serviços de informação de crédito;
b) Os bancos requerentes podem se abster da compra de informações produzidas pelos bureaus presentes no mercado, mantendo relações somente com a GIC, que disporá de informações supostamente mais completas e seguras que a de seus concorrentes, reduzindo de maneira definitiva a competitividade no setor;
c) Os bancos requerentes, detentores da GIC, teriam a capacidade de concentrar as informações negativas de crédito, passando, assim, a ter relevante vantagem econômica em relação aos seus concorrentes no mercado bancário, setor responsável pela concessão de crédito;
d) Por essa razão, os bancos requerentes passariam a deter diferencial competitivo no mercado de concessão de crédito, no qual já há uma concentração de aproximadamente 90% em suas mãos. Nesse sentido, não há somente capacidade de fechamento do mercado de bureaus, como também há incentivos para que as instituições financeiras envolvidas promovam tais condutas anticoncorrenciais, de modo a auferir maior vantagem frente aos outros players do mercado bancário;
e) Potenciais discriminações na atuação da GIC nos serviços de informações positivas de pessoas físicas e de pessoas jurídicas, com possibilidade de condutas discriminatórias.
Desta forma, a lesão aos demais players do mercado é evidente, sendo que um segundo viés bastante temerário da operação é a redução da atuação dos tabeliães de protesto.
Dispõe o art. 236 da Constituição Federal que "os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Púbico".
Os serviços de protesto de títulos, embora delegados a particulares, são funções da Administração Pública, essenciais para o funcionamento da máquina estatal.
A relevância da atividade notarial de protesto, aliás, é reconhecida pela própria lei 9.492/97.
O pleno funcionamento dos cartórios de protesto capacita e alimenta o mercado com informações privilegiadas pela fé pública de que os tabeliães são dotados, conferindo maior segurança às operações de crédito no mercado.
Com a criação da GIC, a autossuficiência e concentração em toda a cadeia que envolve a concessão de crédito fará com que os bancos requerentes sejam os responsáveis por fornecer, coletar e apreciar os dados, e, com base neles, conceder o crédito.
Assim, com o cruzamento das informações em cadeia, adquirindo conhecimentos quanto aos inadimplementos e eventuais protestos de títulos ocorridos nos bancos Requerentes, a GIC deixará em segundo plano as informações emitidas pelos cartórios de protesto para a composição do score.
Esse enfraquecimento, no entanto, acarretará graves prejuízos ao mercado, já que pular a etapa da utilização de informações munidas de segurança e autenticidade pode gerar maiores riscos nos serviços de concessão de crédito, fazendo com que os custos de tal serviço sejam aumentados ao consumidor.
Nesse sentido, o prof. dr. Marcelo Figueiredo, mestre, doutor e livre-docente em Direito do Estado pela PUC-SP, em parecer2 sobre o tema, leciona:
(...) Um serviço público é uma espécie de atividade administrativa de titularidade estatal. Nessa condição, nos termos da lei e da Constituição, podem vir a ser delegados a particulares. (...) Já notários e registradores, ao exercerem por delegação estatal uma particular espécie de atividade administrativa, são investidos no exercício da função pública, pela realização de concursos públicos de provas e títulos, nos termos do art. 236 da nossa lei maior. A atividade realizada pelos bancos de dados de consumidores, em face do direito positivo brasileiro, jamais poderá ser vista como uma atividade administrativa ou como um serviço público. Não é exercida por delegação estatal. É típica atividade econômica deferida ao âmbito da "livre iniciativa". Particulares poderão exercê-la, assim, independentemente de qualquer delegação do Poder Público. Desse modo, os arquivos de consumo não desfrutam de condição jurídica equivalente à dos notários e registradores. (...) (fls. 159-160 - grifamos).
Diminuir a relevância ou retirar a participação dos cartórios de protesto no mercado de crédito é negar a essencialidade da função de tais instituições atribuída pela Constituição Federal e demais disposições legais, configurando usurpação de função pública, além de que a atividade dos tabeliães de protesto é fiscalizada pelo Poder Judiciário, sendo dotada de imparcialidade e segurança.
Os potenciais danos aos consumidores advindos com a criação da GIC também merecem atenção.
O professor Marcelo Figueiredo, anteriormente citado, reforça que os bancos de dados, como a GIC, não possuem poderes para dar "publicidade jurídica", sendo esta uma competência privativa dos Tabeliães.
A concentração de informações na GIC colide diretamente com o "right to privacy" do cidadão, vejamos:
Os bancos de dados de consumidores não têm poderes para dar "publicidade jurídica" aos inadimplementos e descumprimentos de obrigações de qualquer natureza. Sua atuação, por não ter natureza pública e registral, deve ser limitada a mera cientificação privada de seus clientes quanto aos dados registrados. Nada mais do que isso. É uma prestação de serviço privado destinada unicamente ao fornecimento de meras informações acerca da ocorrência de inadimplementos. (...) No que concerne especificamente ao princípio estabelecido no art. 5º, X, da Constituição Federal, é forçoso reconhecer que ao reunirem os bancos de dados de consumidores informações nominativas sobre inadimplentes ou consumidores em geral, na maior parte das vezes, sem a sua própria autorização, parecem colidir, de frente, com o "right to privacy" constitucionalmente protegido. (...) Por isso, é necessário reconhecer que o direito à privacidade estabelece induvidosos limites ao exercício do direito à informação, em qualquer das suas perspectivas. Sempre que uma informação tiver por objeto dados definidos como "nominativos ou pessoais", a fronteira do "direito a informação" termina quando começa a do "direito a privacidade". É nesta perspectiva que se deve compreender o campo de abrangência destes dois direitos fundamentais assegurados pela nossa lei maior. (fls. 154-161 - grifamos).
A discriminação e/ou a recusa de fornecimento de informações aos bureaus de crédito criarão prejuízos de elevada monta àqueles que buscam a concessão de crédito frente às instituições financeiras (consumidor).
Isso porque, as informações prestadas pelos bancos requerentes constituem arcabouço quantitativo e qualitativo de extrema relevância para a composição do score, parâmetro este que será levado em consideração quando da concessão ou não de crédito a determinado consumidor.
No caso de discriminação no fornecimento de informações, os scores elaborados pelos bureaus de crédito oferecerão maiores intermitências que aqueles de elaboração da GIC, que estará munida de uma maior quantidade e suposta qualidade de dados relativos a crédito.
As intermitências apontadas serão, então, transformadas em risco pelas instituições de concessão de crédito que consultam tais bureaus (inclusive pelos bancos requerentes, caso realmente continuem consultando os outros bureaus de crédito). Assim, por conseguinte, o custo de tais riscos será automaticamente transferido aos consumidores finais da cadeia, que sofrerão com taxas e juros elevados para contrabalancear os riscos aferidos.
Além disso, o mercado contará com uma única centralizadora de negativações totalmente parcial e detentora de todas as etapas de uma operação de crédito, lesando os consumidores, pois 90% do mercado bancário utilizará de uma mesma centralizadora.
Interessante notar que o protesto pelo Tabelião de Protesto tem atuação protetiva em relação ao devedor, sendo exigência legal a sua prévia comunicação para apresentação de defesa antes do protesto, nos termos do art. 14 da lei 9.492/97, o que não se verifica nos bureaus de crédito.
Neste contexto de riscos evidentes, a Superintendência Geral do CADE entendeu que, apesar de todas as considerações negativas, as supostas eficiências advindas da criação do cadastro positivo seriam suficientes para recomendar a aprovação da operação.
Todavia, é evidente que a criação da GIC não é fundamental para o fomento e desenvolvimento do Cadastro Positivo.
Isso porque, já há uma movimentação dos atuais bureaus de crédito para fomentar o cadastro positivo no mercado brasileiro, reforçando que o novo player não é indispensável à sua criação.
O fomento do cadastro positivo é totalmente viável sem a criação da GIC, de modo que a eficiência supostamente trazida não é específica da operação, sendo que no âmbito do cadastro negativo não se nota qualquer eficiência.
A Superintendência Geral do CADE então concluiu seu parecer pela aprovação da operação mediante celebração de acordo, porém, é fato que o instrumento de acordo proposto não possui características que impeçam que as práticas anticoncorrenciais ocorram no decorrer das atividades da GIC.
Situação ainda mais agravante é a inviabilidade de atribuir força executiva aos compromissos nele estabelecidos, pois que as cláusulas do documento possuem natureza evidentemente subjetiva e genérica, de difícil monitoramento e supervisão, para não dizer, impossível.
O prof. Gilberto Bercovici, titular de Direito Econômico e Economia Política da Faculdade de Direito da USP, proferiu esclarecedor parecer3 sobre o tema, externando seu posicionamento contrário à aprovação da operação, pois, por sua natureza, os riscos concorrenciais e potenciais danos aos consumidores são insanáveis via remédios antitruste de natureza comportamental.
O processo agora será julgado pelo Tribunal do Cade, composto atualmente por 6 conselheiros, os quais, diga-se de passagem, são altamente qualificados, brilhantes e capacitados, pelo que se espera pela rejeição do ato de concentração, diante dos enormes riscos concorrenciais aos players do mercado, tabeliães de protesto e consumidores.
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1 Pesquisa Processual 08700.002792/2016-47
2 Cadastros de Consumidores positivos e negativos - Parecer prof. Marcelo Figueiredo
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*Marco Aurélio de Carvalho é advogado sócio e fundador de Celso Cordeiro & Marco Aurélio de Carvalho Advogados.
*Pedro Gomes Miranda e Moreira é advogado sócio de Celso Cordeiro & Marco Aurélio de Carvalho Advogados.
*Aline Cristina Braghini é advogada sócia de Celso Cordeiro & Marco Aurélio de Carvalho Advogados.