Ponto dentro da curva - Discurso Celso de Mello
O discurso do ministro Celso de Mello deve ser objeto de reflexão. Não podemos deixar que o combate à criminalidade sirva de desculpa para que o Poder Público trate os suspeitos como condenados.
quarta-feira, 14 de setembro de 2016
Atualizado às 09:00
Como era esperado, repercutiu intensamente na imprensa o discurso proferido pelo ministro Celso de Mello em 12/9/16 ao saudar a ministra Cármen Lúcia, nova presidente do STF.
A mídia deu muita atenção aos trechos do discurso em que o ministro se referiu aos "marginais da República". Contudo, outra passagem do discurso - igualmente ou mais importante - não teve a mesma atenção. O trecho em que o decano do STF afirma que aquele Tribunal garantirá, "de modo pleno, às partes de tais processos, na linha de sua longa e histórica tradição republicana, o direito a um julgamento justo, imparcial e independente, com rigorosa observância de um dogma essencial ao sistema acusatório: o da paridade de armas, que impõe a necessária igualdade de tratamento entre o órgão da acusação estatal e aquele contra quem se promovem atos de persecução penal, em contexto que, legitimado pelos princípios estruturantes do Estado Democrático de Direito, repele a tentação autoritária de presumir-se provada qualquer acusação criminal e de tratar como se culpado fosse aquele em favor de quem milita a presunção constitucional de inocência", merece destaque.
Nesses dias que antecedem o julgamento pelo STF das ações que discutem a constitucionalidade - ou não - da prisão antes do trânsito em julgado da decisão condenatória, é bom que se ressalte a repulsa àquela - nas palavras do ministro Celso de Mello - "tentação autoritária de presumir-se provada qualquer acusação criminal e de tratar como se culpado fosse aquele em favor de quem milita a presunção constitucional de inocência".
Vigora ainda (??) o princípio de que não compete ao réu demonstrar a sua inocência. Porém, lamentavelmente, perante vários juízos e tribunais - principalmente naqueles casos com repercussão midiática - basta a acusação para que se presuma a culpa do cidadão.
Infelizmente alguns juízes - e tribunais - estão utilizando em processos penais a mesma lógica que permeia os julgamentos realizados pela imprensa (trial by media). As acusações - até mesmo quando ineptas ou carentes de justa causa - estão sendo presumidas como verdadeiras e ao réu está sendo imposto o ônus de provar a inocência. Esquecem a advertência de que "na Justiça, há pelo menos um Código para dizer o que é crime; na imprensa não há norma nem para estabelecer o que é notícia, quanto mais ética. Mas a diferença é que no julgamento da imprensa as pessoas são "culpadas até a prova em contrário" (VENTURA, Zuenir, apud BARANDIER, Antonio Carlos, In As Garantias Fundamentais e a Prova (e outros temas). Rio de Janeiro: Lumen Juris Ltda., 1997, p. 3) e com base na "gravidade das acusações" dão início ao processo penal sem sequer se importar com os direitos do acusado.
Em vários casos os elementos coletados pela acusação são insuficientes para caracterizar a justa causa necessária à propositura da ação. Ainda assim denúncias são oferecidas, prisões preventivas são decretadas e bens são tornados indisponíveis unicamente com base em suspeitas. Muitas vezes tais atos, que externam a brutalidade estatal, são realizados através de decisões genéricas, que nem de longe atendem a exigência de fundamentação contida no artigo 93, IX da CF.
Lembro aqui das palavras do ministro Luís Roberto Barroso ("O País das Provas Ilícitas", in Jornal do Brasil) - quando ainda era advogado - e afirmava que "a repressão à criminalidade é uma necessidade imperativa de qualquer sociedade. Deve ser efetivada com presteza, seriedade e rigor. Mas há limites muito nítidos", advertindo que "qualquer transigência, aqui, é o sacrifício do Direito no altar das circunstâncias".
O discurso do ministro Celso de Mello deve ser objeto de reflexão. Não podemos deixar que o combate à criminalidade sirva de desculpa para que o Poder Público trate os suspeitos - ou acusados - como se estes já houvessem sido condenados, definitivamente, por sentença do Poder Judiciário. Não podemos esquecer que o postulado constitucional da presunção de inocência impede que seja tratado, como se culpado fosse, aquele que ainda não sofreu condenação penal irrecorrível.
Parabéns ao decano do STF.
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*Ulisses César Martins de Sousa é sócio da banca Ulisses Sousa Advogados Associados.