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O julgamento do impeachment pelo Senado e o fatiamento do quesito em duas proposições

Da exposição feita, resta evidenciada a irregularidade da conduta do Presidente Ministro Ricardo Lewandowski de deferir o fatiamento do quesito.

terça-feira, 6 de setembro de 2016

Atualizado às 08:23

1. Depois de quase nove meses, chegou ao fim o julgamento do impeachment da senhora Presidente da República. De um quórum de 81 senadores, foram colhidos 61 votos a favor e 20 contra.

Essa decisão é soberana, irretratável, irrevogável e, por isso mesmo, isenta de qualquer revisão jurisdicional por parte do Supremo Tribunal Federal. Como anteriormente escrevi, o Senado Federal no julgamento do impeachment do Presidente da República age na qualidade constitucional de "alto Tribunal de Justiça", sendo uma "judicatura tão alta" quanto àquela exercida pelo Supremo Tribunal Federal. Em suma: quem processa e julga é o Senado Federal, presidido pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal, transformada aquela Casa do Congresso em Corte de Justiça. Logo, a decisão tomada pelo Tribunal Constitucional, em que transformado o Senado Federal, é sobranceira à revisão do Poder Judiciário.

Com efeito, em exemplar voto que proferiu no MS 3.557 impetrado pelo ex-Presidente João Café Filho, o eminente e saudoso Ministro Orosimbo Nonato pontificou que o Poder Legislativo, quanto ao impeachment, "previsto e regulado na Constituição, mediante processo", "decide aqui como poder supremo". O seu julgamento "é político e sobranceiro à revisão do poder judicial". O seu discricionarismo, no caso, "não depara limitações no Poder Judiciário" ("apud" EDGARD COSTA, "Os Grandes Julgamentos do Supremo Tribunal Federal", Ed. Civilização Brasileira, Rio, 1964, tomo III, pg. 415)..

Aliás, recentemente, o ilustre ministro Teori Zavascki, em MS impetrado com o objetivo de paralisar o prosseguimento do processo de impeachment perante o Senado Federal teve a oportunidade de deixar claro:

"Não há base constitucional para qualquer intervenção do Poder Judiciário que direta ou indiretamente importe juízo de mérito sobre a ocorrência ou não dos fatos ou sobre a procedência ou não da acusação. O juiz consitucional, dessa matéria, é o Senado Federal que, previamente, autorizado pela Câmara dos Deputados assume o papel de tribunal de instância definitiva, cuja decisão de mérito é insuscetível de exame, mesmo pelo STF. Admitir-se a possibilidade de controle judicial de mérito de deliberação do Legislativo pelo Poder Judiciário significaria transformar em letra morta o artigo 86 da Constituição Federal que atribui, não ao Supremo, mas ao Senado Federal, autorizado pela Câmara dos Deputados, a competência para julgar o Presidente da República nos crimes de responsabilidade".

Magistral lição, que se encontra em consonância com a Constituição Federal, bem como com a doutrina mais autorizada a respeito do assunto, além de seguir a tradição constitucional, desde a nossa primeira Constituição imperial de 1824 (art. 47), que previa o impeachment, vindo a lei de 15.10.1837, a dispor que o Senado "julgará como um tribunal de justiça" (art.20).

2. Pois bem, o Migalhas do dia 31 de agosto último traz a notícia de que a ex-Presidente da República ingressou com o MS 34.371 no Supremo Tribunal Federal, distribuído ao eminente Ministro Teori Zavascki, contra ato dito coator atribuído ao Ministro Presidente do Supremo Tribunal Federal, no exercício da Presidência do Senado Federal.

Da leitura da petição inicial do writ anexa à notícia do nosso querido Migalhas, possível verificar-se o seguinte:

a) dirige-se a ação contra ato do senhor Ministro Presidente do STF consistente "na Sentença cujos efeitos são concretizados por meio da Resolução n. 35/2016 do Senado Federal que, em 31 de agosto do corrente ano, condenou por crime de responsabilidade a Senhora Presidente da República nos termos da pronúncia originada de relatório elaborado pelo Exmo. Senador Antônio Anastasia, eivado de gravíssimas e insanáveis nulidades" (item 7);

b) todavia, no preâmbulo da petição, o ato coator se consubstanciaria, não mais no ato condenatório, ma sim, "na decisão de pronúncia proferida contra a Impetrante".

Difícil não é o reconhecimento de clara contradição, pois estamos diante de dois atos que se realizaram em momentos procedimentais autônomos e independentes e cada um deles gerando efeitos jurídicos próprios e diversos. Ademais, da leitura do pedido, está claro que requer-se a "suspensão imediata dos efeitos do ato coator consistente na decisão que condenou a Impetrante" por crime de responsabilidade, com o retorno ao estado de interinidade por parte do Vice-Presidente da República, até o julgamento final do mandamus.

Quanto ao mérito é requerida a cassação do ato coator, de modo que seja anulada a decisão do Senado Federal, bem como todos os atos posteriores dela decorrentes. Requer-se, também, incidenter tantum, pela não recepção dos arts. 10, item 4 e 11 da lei 1.079/50 pela vigente Constituição. Portanto, consta do pedido principal que haja novo julgamento da Impetrante pelo Senado Federal, excluídos os dispositivos da lei 1.079/50 atacados no writ, bom como os fatos novos acrescidos posteriormente ao recebimento da denúncia e à instauração do processo no Senado, com o necessário desconhecimento de tais fatos.

Entendo que o MS não merece ser conhecido. A uma, diante da ilegitimidade passiva do Ministro Presidente do STF, pois o ato coator não seria dele, mas sim do Senado Federal. A duas, mais se reforça a certeza da ilegitimidade, pois o Mandado de Segurança objetiva anular a decisão do Senado Federal e esta decisão não foi proferida pelo Ministro Presidente do STF. A três, a decisão do Senado Federal se expressa através de Resolução. Logo, imprório falar-se em sentença condenatória ou de pronúncia. A quatro, o Senado Federal ao julgar o impeachment age como Corte de Justiça, sendo soberano o seu julgamento, não podendo sofrer qualquer tipo de revisão jurisdicional, muito menos ter sua decisão substituída, até mesmo pelo Supremo Tribunal Federal, conforme se expôs anteriormente neste artigo. Logo, "ninguém poderá ser titular de direito líquido e certo, único que poderia ser protegido por mandado de segurança" (EDGARD COSTA, ob. cit. pg. 370).

Duas outras questões se colocam. Por primeiro, o MS se rebela contra a lei em tese. Por direito sumulado, é incabível mandado de segurança contra a lei em tese. Por segundo, o mandado de segurança é incabível, não só pela razão de ser soberana a resolução do Senado Federal, como também porque se busca a reapreciação de fatos que foram aceitos pelo Senado Federal.

3. Na sessão de julgamento do impeachment, antes de colocado o quesito em votação, elaborado na conformidade do parágrafo único do art. 52 da Constituição Federal, isto é, "a perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública", sobreveio requerimento de destaque para o fatiamento em dois quesitos, um para a condenação por crime de responsabilidade e outro para a inabilitação.

Para quem acompanhou a transmissão ao vivo, teve a oportunidade de verificar que o destaque não era surpresa para o Senhor Presidente Ministro Ricardo Lewandowski. Basta verificar-se o tempo gasto para fundamentar a sua decisão de acolher o destaque. Toda a fundamentação foi feita com base nos Regimentos Internos do Senado e da Câmara dos Deputados, com desprezo à letra do parágrafo único do art. 52 da Constituição Federal. Inusitado notar que depois de aceito o fatiamento do quesito, o Senador Renan Calheiros brandindo um exemplar da Constituição em uma de suas mãos, antecipou seu voto no sentido de isentar a condenada da pena de inabilitação. Sua atitude foi bem exposta por conhecido comentarista político: "Sua Excelência, em mesma atitude, mantinha um exemplar da Constituição em uma de suas mãos, enquanto no joelho reescrevia o texto constitucional".

Diante da surpreendente situação, resolvi verificar o que aconteceu quando do impeachment do ex-Presidente Collor. Naquela oportunidade, pouco antes de ser dado início ao julgamento, o ex-Presidente apresentou a sua renúncia ao cargo. Logo, o julgamento quanto à primeira parte do parágrafo único do art. 52 da Constituição Federal havia perdido o seu objeto. Remanescia a segunda parte daquele dispositivo - a inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública. Pois bem, o Senado Federal resolveu colocar em votação a aplicação daquela pena, que foi aprovada pela maioria de 2/3 dos Senadores presentes.

Contra essa decisão do Senado Federal o ex-Presidente Collor impetrou MS junto ao Supremo Tribunal Federal.

Para comparar as duas posições assumidas sobre o tema - uma pelo Presidente Lewandowski e outra pelo Presidente Sydney Sanches, resolvi pesquisar nas Informações prestadas no Mandado de Segurança impetrado pelo ex-Presidente Collor e consegui observar o seguinte. No item 13º das Informações prestadas pelo próprio Ministro Sydney Sanches está dito o seguinte: "quem processa e julga é o Senado" e o Presidente do STF apenas preside o processo e "resolve questões estritamente processuais". Isto é, a função do Presidente do Supremo seria "apenas velar pela regularidade formal do processo, não lhe cabendo intervir na decisão que fosse tomada" (item 14º). Não tendo participado da "deliberação, não assinou a Resolução nº 101 em que aquela se concretizou" (v. item 14º).

Posição, diametralmente, oposta àquela seguida pelo Presidente Lewandowski que determinou o fatiamento do quesito com base em normas regimentais do Parlamento, com ofensa direta ao parágrafo único do art. 52 da Constituição.

No Mandado de Segurança impetrado no Supremo Tribunal Federal, coube a defesa do Senado Federal ao meu querido, saudoso Amigo e fantástico Advogado Saulo Ramos que desenvolveu, entre outros, três argumentos fundamentais:

a) A decisão soberana e autônoma do Senado Federal, como Corte Constitucional, não está sujeita à jurisdição ou revisão por parte do Supremo Tribunal Federal.

b) Instaurado o processo do impeachment, a jurisdição do Senado Federal se perpetua, independentemente, da vontade das partes envolvidas. A jurisdição permanece até que, definitivamente, haja o pronunciamento final sobre a pretensão deduzida no processo.

c) Na época, em plena vigência se encontrava a Lei nº 7.106, de 28.7.1983, que disciplinava a responsabilidade dos Governadores do Distrito Federal e Territórios Federais e respectivos Secretários, ao dispor em seu art. 5º que tais pessoas, "nos crimes conexos com os daquele, responderão, até 2 (dois) anos após haverem deixado o cargo, pelos atos que, consumados ou tentados, a lei considere crime de responsabilidade praticados no exercício da função pública", enquanto o seu art. 4º rezava que, acaso se decidisse pela condenação, esta consistiria na "perda do cargo, com inabilitação até 5 (cinco) anos para o exercício de qualquer função política, sem prejuízo de ação da justiça comum".

Sabemos todos que o julgamento do Mandado de Segurança terminou empatado, depois de aceitos os impedimentos dos Ministros Francisco Rezek e Marco Aurélio. Diante desse resultado, ao contrário do que ocorre com o Habeas Corpus, o Mandado de Segurança restaria denegado. De forma inusitada e única, o Ministro Presidente Octavio Gallotti suspendeu o julgamento e convocou três Ministros do Superior Tribunal de Justiça. Finalmente, o Mandado de Segurança foi denegado e mantida a pena de inabilitação para o exercício de qualquer função pública pelo prazo de 8 anos.

Da exposição feita, resta evidenciada a irregularidade da conduta do Presidente Ministro Ricardo Lewandowski de deferir o fatiamento do quesito. A uma, porque não se enquadrava em sua competência de zelar, exclusivamente, pelo cumprimento das regras processuais e procedimentais. A duas, por se tratar de matéria afeta à competência exclusiva do Senado Federal. A três, por se encontrar em desarmonia completa com a dicção contida no parágrafo único do art. 52 da Constituição Federal. A quatro, porque a fundamentação atinente ao fatiamento do quesito centrou-se em normas regimentais que, diante do princípio da hierarquias das leis, não podem se contrapor a dispositivos constitucionais.

Ademais, conhecida a lição do eminente Ministro Celso de Mello: "o parágrafo único do art. 52 da Constituição da República compõe uma estrutura unitária inacindível, indecomponível. De tal modo que, imposta a sanção destitutória consistente da remoção do presidente da República, a inabilitação temporária por 8 anos para o exercício de qualquer outra função pública ou eletiva representa uma conseqüência natural, um efeito necessário da manifestação condenatória do Senado".

Portanto, se algum Mandado de Segurança vir a ser impetrado com o objetivo de reconhecer-se a anulabilidade do fatiamento realizado por deliberação tomada pelo Presidente Ministro Ricardo Lewandowski, dificilmente a Suprema Corte deixará de reconhecê-la. No entanto, permanecerá pendente a seguinte questão: o quesito fatiado foi submetido à votação soberana do Senado, constituído em Tribunal Constitucional. Logo, poderá o Supremo Tribunal Federal imiscuir-se em tal questão, para anulá-la? É a pergunta que fica. Todavia, se tal vir a ocorrer, uma única solução se apresenta viável, entender nulo o fatiamento do quesito por vício de origem e como a condenação principal foi pela condenação com perda do cargo, a inabilitação para o exercício de qualquer outra função pública ou eletiva, pelo prazo de oito anos, é conseqüência natural da condenação sacramentada.

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*Ovídio Rocha Barros Sandoval é advogado do escritório Rocha Barros Sandoval & Ronaldo Marzagão Sociedade de Advogados.

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