A falta de liberdade do administrador público é a garantia da liberdade do cidadão
O tema da competência das Unidades de Julgamento de Pequenos Débitos vem sendo trazido a este diário, e também veiculado pela imprensa, por meio de artigos que defendem ora um, ora outro posicionamento, cada lado buscando conceitos que fundamentem o seu pensar.
sexta-feira, 12 de maio de 2006
Atualizado em 10 de maio de 2006 13:56
A falta de liberdade do administrador público é a garantia da liberdade do cidadão
Adermir Ramos da Silva Filho*
O tema da competência das Unidades de Julgamento de Pequenos Débitos vem sendo trazido a este diário, e também veiculado pela imprensa, por meio de artigos que defendem ora um, ora outro posicionamento, cada lado buscando conceitos que fundamentem o seu pensar.
Assim, aqui neste Migalhas, três artigos já foram escritos a respeito ("Atos de auto gestão e organização do tribunal"; "Atos de auto gestão podem contrariar a lei?" e "Julgamento das UJPDs é feito pela obediência ao comando legal"), o último inclusive mencionando-me pessoalmente.
O processo de construção do conhecimento se faz justamente por meio dessa dialética, pela qual o leitor tem acesso a diferentes abordagens sobre o mesmo tema e pode, desse modo, tirar suas próprias conclusões.
Com efeito, a Ciência do Direito não é uma ciência de "imposição de idéias"; ao contrário, é uma ciência que impõe estudo, reflexão, tolerância, humildade. Ela também não é um corpo de conhecimento isolado, mas sim um saber que interage ativamente, correlacionando-se com a Sociologia, a Ciência Política, a Biologia, Medicina e até mesmo a Psicologia.
Tantos textos teóricos representam a busca da verdade de cada um, e a expressão dessa verdade ajuda-nos a encontrar a nossa própria.
No entanto, a expressão das idéias individuais não pode ser arbitrariamente posta, cada um atribuindo da maneira que lhe apraz o significado aos conceitos que são enunciados. É preciso que haja um mínimo de rigor e precisão conceitual, sem os quais não estaremos a realizar um verdadeiro processo de comunicação, mas tão somente balbucios narcisistas. Estaremos, para utilizar o jargão freudiano, não nos comunicando realmente, mas tão somente projetando nos outros nossos próprios conflitos e contradições.
Portanto, no curso de um debate científico, há de haver precisão nos termos utilizados, o que nada tem a ver com didática, mas sim com clareza de exposição e apoio em fundamentos e conceitos bem definidos.
Aliás, é tarefa de um juiz fundamentar sua decisão, o que significa que deve ele buscar apoio no texto legal a partir do qual vai aplicar a lei ao caso concreto, o que em linguagem jurídica vem a ser a conhecida subsunção do fato à norma.
O que parece estar ocorrendo com aqueles que propugnam a validade dos julgamentos de grandes débitos pelas Unidades de Julgamento de Pequenos Débitos é o inverso disso: tentam eles subsumir a norma ao fato, ou seja, distorcê-la para fazê-la validar ato inválido porque incoerente com a letra da lei.
Talvez seja esse esforço, essa dissonância cognitiva, que esteja levando esses intérpretes a declararem sentir a alma dilacerada, encarando o processo de interpretação como um esforço extraordinário, uma vez que as regras básicas de hermenêutica, a lógica e a própria gramática negam validade ao seu entendimento. Assim passam a, no feliz dizer de Carlos Maximiliano, "torturar a norma para que esta lhes confesse o sentido desejado".
Como intérpretes do direito, como juristas, como cientistas e como cidadãos, temos a necessidade de rigor quanto aos termos técnicos contidos nas normas postas, pois é esse rigor que nos levará à interpretação mais racional e condizente com a vontade da lei. Distorcer o que está expresso na lei em nome de uma pretensa "Justiça" é atribuir ao intérprete prerrogativa incompatível com o Direito. Todos nós temos nossos conceitos individuais do que seja o bom e o justo, mas nunca podemos abandonar a base material de nossos conceitos, que é o texto, sob pena de sermos simplesmente arbitrários.
Não é que a leitura do texto legal per si seja uma verdade absoluta. A própria leitura é ato interpretativo, subjetivo, discutível.
A possibilidade de duas mentes divergirem quanto à interpretação da norma posta, no entanto, não pode servir a uma relativização total que ignore o fato de que há interpretações e interpretações, umas mais coerentes que as outras, umas tecnicamente mais corretas que as outras, mais criteriosas, fundamentadas, articuladas, etc. Portanto, embora o mesmo fato, ou a mesma norma, possam ser interpretados diferentemente, é possível estabelecer critérios de validade que permitam preferir uma interpretação a outra.
É por esse motivo, e não por qualquer fetichismo normativo, que prefiro a interpretação segundo a qual as Unidades de Julgamento de Pequenos Débitos são incompetentes para julgar débitos maiores do que 2.000 UFESPs. Essa interpretação leva em conta tecnicamente o significado dos termos competência, alçada, circunscrição e preferência, além de considerar que a distribuição de processos é ato vinculado, regido por um ato administrativo, como tal sujeito aos princípios e fundamentos regentes do Direito Administrativo, que é ramo do Direito Público, cujo princípio fundamental é aquele segundo o qual ao administrador "é proibido tudo que não esteja expressamente prescrito na Lei". Esse princípio diferencia desde a raiz o Direito Público do Direito Privado, segundo o qual "tudo é permitido desde que a lei não proíba". Os mandamentos administrativos não podem ser postos em desuso, só perdendo vigência e eficácia se formalmente revogados, o que não ocorre com institutos do Direito Civil, como a união estável, ou até mesmo Penal, como o adultério ou o conceito de "mulher honesta".
Essa interpretação também integra mais coerentemente o sistema normativo porque não o contradiz, não nega vigência a Decretos e Portarias expedidos para regulamentar a Lei; ao contrário, leva-os em consideração. Leva em consideração, também, a totalidade do texto da lei, não tecendo cortes convenientes para fazê-la ajustar-se à interpretação requerida. E, por fim, leva em conta outros dispositivos legais que incidem sobre o mesmo tema, ou correlato.
A posição adversa, por outro lado, depende de que sejam desconsiderados atos administrativos de ordenamento da distribuição dos processos, como a Portaria CAT-39; de que o termo "preferencialmente" seja tomado em sentido coloquial e injurídico de "opcional", quando, do ponto de vista jurídico, quer indicar "prerrogativa"; necessita ignorar que a Lei expressamente faz referência à alçada em razão do valor dos créditos fiscais, ou então desnaturar o sentido dessa palavra para confundi-la com circunscrição, como ocorreu; precisa tomar o termo competência em sentido coloquial, como se significasse "capacitação"; e tem que se fundar em preceitos vagos e imprecisos como "auto-gestão" e na pretensa celeridade processual.
Sobre a celeridade processual, é possível ainda verificar que, longe de ter ocorrido, o que houve foi atraso na condução dos processos, o qual poderá se tornar ainda maior, já que uma das possibilidades de ocorrência no Judiciário é a anulação dos atos administrativos inválidos, obrigando a Fazenda a julgar novamente os processos. E essa é apenas uma, e a menos danosa ao interesse público, das possíveis conseqüências advindas desse interpretar. Há ainda o risco de perda do crédito tributário e o pagamento de sucumbência na esfera judicial, por tentar a Fazenda Pública executar título de crédito com vício em sua constituição, sem contar a responsabilização dos agentes públicos que, avisados, não tomaram providências para sanear os procedimentos administrativos.
A simples possibilidade dessa ocorrência já seria razão suficiente para impor correção. Deixar o assunto para ser decidido no Judiciário configura, além de tudo, atitude temerária que não se coaduna com os princípios da administração pública. Nem, aliás, com a boa gestão, já que o contingenciamento dos riscos e a prevenção de perigos são preceitos fundamentais da Ciência da Administração.
Se a Fazenda quer assegurar a celeridade processual, basta a ela alocar as pessoas tecnicamente capacitadas nos órgãos competentes, e a distribuição legal de processos estará assegurada.
A correção do vício de competência pode ser feita por simples ato de convalidação por parte da autoridade competente, o qual pode abranger a totalidade dos julgamentos realizados até agora, com exceção daqueles em que o contribuinte tenha impugnado alegando vício de competência, corrigindo com uma única ação todo o problema.
Essa autoridade não é o plenário do Tribunal de Impostos e Taxas (TIT). Este órgão não é competente para julgar matéria administrativa. Seu escopo é o de solucionar conflitos oriundos de autos de infração, ou seja, constituir o crédito tributário. O TIT não tem poderes legais para determinar ou reconhecer competência de órgão da estrutura da Administração - embora possa e deva colaborar para o saneamento de atos administrativos viciados.
Entretanto o TIT votou em plenário o tema e "decidiu" que as UJPDs são competentes. Houve mesmo quem dissesse que tal "decisão" trouxera alívio aos contribuintes. Nada mais equivocado. Se há contribuintes aliviados com a decisão, são aqueles que não tinham a menor esperança de vencer quanto ao mérito o bom trabalho realizado pela fiscalização, mas agora podem desconstituir os títulos executivos fiscais calcados em processos de constituição viciados, além de escaparem das conseqüências penais de seus atos...
Há quem diga que esse suposto apego à norma escrita que professo seja resquício de adesão às idéias positivistas professadas por Hans Kelsen. Não é o caso. Na verdade, trata-se de posição que se funda nos grandes mestres administrativistas brasileiros, e, principalmente, na percepção de que o Estado Democrático de Direito não pode compactuar com um poder irrestrito conferido às autoridades públicas para que interpretem a lei como lhes convenha.
O ponto fundamental de minha argumentação consiste na consideração de que o Direito será sempre o instrumento da liberdade do cidadão. As leis são feitas, quanto à relação do indivíduo com o Estado, para restringirem a liberdade do agente público, impedindo que abuse do poder que confere sua posição para violar os direitos individuais. A gestão do Estado não há de ser arbitrária. Deve, ao invés, ser rigidamente controlada, por meio dos mecanismos legais que assegurem que na relação do indivíduo com o Estado será obedecida a maior de todas as premissas da Constituição brasileira: a liberdade individual.
Celso Antonio Bandeira de Melo chega mesmo a dizer que não existem atos administrativos discricionários, propriamente, já que todos eles são vinculados, dependem de base legal, só havendo discricionariedade quanto ao juízo de conveniência e oportunidade. Traduzindo: a autoridade pública não pode definir o conteúdo do ato, mas somente o momento de sua execução, e isso para os atos discricionários.
Meu posicionamento não teve por escopo criticar as autoridades fazendárias envolvidas, as quais tenho em alta conta e acredito na probidade e eficiência que regem seus atos. Mas minha simpatia e admiração por essas autoridades não me impede, ao contrário, incentiva-me a advertir para as graves conseqüências que podem ocorrer do tratamento equivocado da questão da competência das UJPDs, e que vêm sendo agravadas pela maneira tortuosa com que está se tentando resolver a questão. É por admirá-los, e aos valorosos funcionários da Fazenda Pública, que trago essas considerações, na verdade um alerta. A um advogado militante seria muito mais fácil deixar ocorrer a invalidade e usar essa arma contra o interesse público nos Tribunais. Se é verdade que o Fisco lavrou autos de infração reclamando créditos que alcançam a cifra de dez bilhões de reais, não faz o menor sentido arriscar uma parte significativa desse valor por falhas formais na sua constituição, e falhas que poderiam - e deveriam - ser resolvidas com extrema simplicidade e usando das faculdades previstas na Lei, vide o artigo 10 da Lei Estadual 10.177/98.
Espero que este debate tenha trazido ao leitor, assim como trouxe a mim, a oportunidade de ampliar o repertório jurídico. Isso, se aumenta o nosso campo de conhecimento, por outro lado amplia a área de contato com o imenso campo da nossa ignorância.
É dessa ignorância que falava Nietsche, cuja frase mencionada no texto anterior na verdade faz referência a um filósofo ainda maior, Sócrates, que foi reconhecido como o maior sábio da humanidade porque demonstrou diante do oráculo ser o único a saber algo absolutamente verdadeiro, ao declarar: "só sei que nada sei".
*Psicólogo, graduando em direito
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