Condenação por improbidade administrativa exige individualização das condutas e dosimetria das penas
As sanções por improbidade administrativa não podem ultrapassar em espécie ou quantidade o limite da culpabilidade do autor do fato.
quarta-feira, 24 de agosto de 2016
Atualizado em 23 de agosto de 2016 10:31
Nos dois primeiros artigos desta série - "Agentes públicos: ímprobos até que se prove o contrário?" e "Improbidade Administrativa: o abismo entre o 'mal administrar' e a 'desonestidade'" -, discutimos a inconstitucionalidade do atual entendimento jurisprudencial de presunção de dilapidação patrimonial em ações de Improbidade Administrativa e a recorrente ausência de demonstração do elemento subjetivo (dolo ou culpa grave) para o exercício das pretensões condenatórias. Nesse mesmo cenário de lesividade às garantias legais e constitucionais dos acusados, outro ponto merece grande destaque: a exacerbação das pretensões exercidas, destituídas dos indícios necessários e eivadas de vícios processuais, bem como a ausência de individualização das condutas e de devida dosimetria das sanções.
Com efeito, as pretensões de muitas das diversas ações de Improbidade Administrativa recentemente ajuizadas têm sido formuladas sem o nexo causal necessário, isto é, formulam-se pedidos exorbitantes, que extrapolam em muito os fatos narrados e carecem da individualização dos atos, notadamente no que decorre das grandes Operações, em que são vários os acusados por ação.
A partir disso, passa-se a cometer, também, equívocos processuais, como a inépcia da petição inicial, por desconexão lógica entre as premissas fáticas e as conclusões (art. 330, I e § 1º, I, do CPC/15), a litispendência, consubstanciada na repetição de causas de pedir e pedidos em diferentes ações, contra os mesmos acusados (art. 337, VI e §§ 1º e 3º, do CPC/15), e postulações processualmente ilegítimas (art. 17 do CPC/15).
Pois bem. O que ocorre é que são narrados fatos de forma genérica e superficial, incluídos vários agentes públicos no polo passivo e, ao fim, pleiteadas sanções desproporcionalmente cumulativas a todos eles, sem qualquer distinção - o que inclui pretensões de natureza cautelar que atingem a indisponibilidade automática de todo o patrimônio dos acusados, como relatado no primeiro artigo desta série.
Nesse cenário, é preciso relembrar do necessário iter de individualização dos atos de improbidade administrativa, rotineiramente esquecidos e que são bem delimitados por EMERSON GARCIA e ROGÉRIO PACHECO ALVES1:
(i) primeiro, há que se demonstrar, de forma geral, a incompatibilidade de cada conduta com os princípios regentes da atividade estatal, ou seja, a inobservância do princípio da juridicidade;
(ii) em seguida, deve-se comprovar o elemento subjetivo (dolo ou culpa grave) da conduta do agente, imprescindível para a caracterização da improbidade, como bem detalhado no segundo artigo desta série;
(iii) terceiro, deve-se verificar os efeitos dos atos perpetrados, para incursão nas hipóteses dos arts. 9º (enriquecimento ilícito), 10 (prejuízo ao erário) ou 11 (ofensa a princípios da Administração Pública) da Lei de Improbidade Administrativa (8.429/92);
(iv) em quarto lugar, é necessário observar as disposições gerais dos arts. 1º, 2º e 3º da lei 8.429/92, que preveem quem são as pessoas e os atos sujeitos ao regime da Improbidade Administrativa2, requisito este indispensável à adequação da via eleita para apenação dos acusados; e
(v) por fim, impõe-se a verificação dos fatos apurados à luz do princípio da proporcionalidade, notadamente para constatação da tipicidade das condutas. A esse respeito, os autores supracitados afirmam que "[e]m um primeiro plano, a sua utilização [Lei 8.429/92] haverá de assumir ares de excepcionalidade, evitando-se que seu emprego seja vulgarizado, terminando por legitimar uma 'atipicidade generalizada'. Como parâmetros a serem seguidos, deve-se observar se é insignificante a lesão aos deveres do cargo ou à consecução dos fins visados e se a conduta apresentava compatibilidade com a realidade social do local em que foi praticada".
Somente a partir desses critérios é que poderá haver procedência na pretensão a condenações pela Lei de Improbidade Administrativa, o que, infelizmente, não tem sido observado. E pior: também para a aplicação das sanções, esses requisitos são esquecidos, de modo que sua dosimetria ocorre, muitas vezes, de forma descriteriosa, nos patamares máximos3.
Ofende-se, assim, o parágrafo único do art. 12 da Lei de Improbidade Administrativa, segundo o qual "[n]a fixação das penas previstas nesta lei o juiz levará em conta a extensão do dano causado, assim como o proveito patrimonial obtido pelo agente".
Exatamente por essa comum desatenção ao iter de individualização da Improbidade Administrativa e à devida dosimetria das sanções, o colendo Superior Tribunal de Justiça firmou sua jurisprudência no sentido de que é necessária a análise da razoabilidade e da proporcionalidade em relação à gravidade do ato de improbidade e à cominação das penalidades, as quais não devem ser aplicadas indistintamente: faz-se imprescindível, portanto, a individualização das condutas, não se podendo ultrapassar em espécie ou quantidade o limite da culpabilidade do autor do fato. Do contrário, a inicial acusatória inverte de modo ilegítimo e inaceitável o ônus da prova.
Confira-se, a título ilustrativo, ementa de acórdão proferido em caso no qual se apurava a ocorrência de improbidade em atos de ex-Presidente e de ex-Diretor de Administração da Casa da Moeda, por hipotéticas irregularidades em contratos firmados sem licitação - inicialmente condenados a multa civil de cinco vezes o valor da remuneração que recebiam à época, perda da função pública, suspensão de direitos políticos e proibição de contratar com o Poder Público por três anos, afastou-se, na Corte Superior, a suspensão de direitos políticos e reduziu-se a multa para três vezes o valor das respectivas remunerações:
ADMINISTRATIVO. RECURSOS ESPECIAIS. AÇÃO CIVIL POR ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. CONTRATOS IRREGULARES. LICITAÇÃO. INEXIGIBILIDADE NÃO RECONHECIDA. REEXAME DE MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. SÚMULAS 5 E 7/STJ. ATO DE IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. VIOLAÇÃO DE PRINCÍPIOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. ART. 11 DA LEI 8.429/92. ELEMENTO SUBJETIVO. NECESSIDADE. COMPROVAÇÃO. APLICAÇÃO DAS PENALIDADES PREVISTAS NO ART. 12 DA LEI 8.429/92. PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E RAZOABILIDADE INOBSERVADOS. READEQUAÇÃO DAS SANÇÕES IMPOSTAS. PRECEDENTES DO STJ. RECURSOS ESPECIAIS PARCIALMENTE PROVIDOS.
1. No caso dos autos, o Ministério Público Federal ajuizou ação de improbidade administrativa contra o ex-Presidente e o ex-Diretor de Administração da Casa da Moeda, com fundamento no art. 11, I, da Lei 8.429/92, em face de supostas irregularidades em contratos firmados sem a realização de processo licitatório. Por ocasião da sentença, o magistrado em primeiro grau de jurisdição julgou procedente o pedido da referida ação para reconhecer a prática de ato de improbidade administrativa e condenar os requeridos, com base no art. 12, III, da Lei 8.429/92.
(...)
5. A aplicação das penalidades previstas no art. 12 da Lei 8.429/92 exige que o magistrado considere, no caso concreto, "a extensão do dano causado, assim como o proveito patrimonial obtido pelo agente" (conforme previsão expressa contida no parágrafo único do referido artigo). Assim, é necessária a análise da razoabilidade e proporcionalidade em relação à gravidade do ato de improbidade e à cominação das penalidades, as quais não devem ser aplicadas, indistintamente, de maneira cumulativa.
6. Na hipótese examinada, os recorrentes foram condenados na sentença ao pagamento de multa civil "correspondente a cinco vezes o valor da remuneração recebida pelos Réus à época em que atuavam na Casa da Moeda do Brasil (CMB) no período da contratação irregular, devidamente atualizado até o efetivo pagamento, bem como decretar a perda da função pública que eventualmente exerçam na atualidade, a suspensão dos direitos políticos por três anos e a proibição dos Reús de contratarem com o Poder Público pelo prazo de três anos" (fls. 371/378), o que foi mantido integralmente pela Corte a quo. Assim, não obstante a prática de ato de improbidade administrativa pelos recorrentes, a imposição cumulativa de todas as sanções previstas na referida legislação não observou os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Tal consideração impõe a redução do valor da multa civil de cinco para três vezes o valor da remuneração, bem como autoriza o afastamento da sanção de suspensão dos direitos políticos dos recorrentes.
7. Provimento parcial dos recursos especiais, tão-somente para readequar as sanções impostas aos recorrentes.4 (Grifos daqui)
Como se percebe, o julgado parte da individualização e delimitação de condutas para uma proporcional dosimetria das sanções, ao encontro do que aqui se expõe. Trata-se de uma posição jurisprudencial que deve ser difundida e, sobretudo, estendida à atuação dos órgãos persecutórios.
É que, na cega tentativa de ver condenados os mais diversos agentes públicos em privações e valores enormes, ajuizam-se ações que, não cumprindo o iter de individualização, vão até mesmo além do excesso de pedidos, configurando-se atecnia processual, pelo que vale apresentar dois breves exemplos:
(i) é comum ver a formulação de pedidos idênticos de indenização por danos morais, contra os mesmos réus, em ações diversas, situação corriqueira em grandes Operações - o Ministério Público opta por ajuizar diversas ações que decorram de uma mesma investigação, desmembrando-as a partir de contratações específicas apuradas, mas, em todas elas, pleiteia indenização por danos morais de forma absolutamente idêntica, justificando-se tão somente na "existência" do suposto esquema ímprobo.
(ii) também quanto às indenizações por danos morais, estas são comumente pleiteadas de forma processualmente ilegítima, uma vez que o Ministério Público formula suas pretensões indenizatórias por danos supostamente causados a pessoas jurídicas de direito público que podem ajuizar ações próprias e, a propósito, têm suas procuradorias especializadas, violando-se o art. 17 do CPC/155.
O excesso de pedidos e os consequentes equívocos técnicos decorrem, talvez, da limitação da condenação a custas, despesas processuais e honorários de sucumbência aos casos em que resta demonstrada má-fé do autor da Ação de Improbidade Administrativa (aplicação extensiva do art. 17 da Lei da Ação Civil Pública), situação extremamente rara, razão por que se torna precipitada a atuação persecutória.
Com este artigo, portanto, chama-se atenção à necessária utilização da Lei de Improbidade Administrativa à luz da ordem constitucional e da sistemática processual sob ela constituída, para que se evite a sujeição dos agentes públicos a postulações desmedidas e tecnicamente equivocadas e à apenação descriteriosa.
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1 GARCIA, Emerson. PACHECO ALVES, Rogério. Improbidade administrativa. 8 ed., São Paulo: Saraiva, 2014. pp. 447-451.
2 Art. 1° Os atos de improbidade praticados por qualquer agente público, servidor ou não, contra a administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios, de Território, de empresa incorporada ao patrimônio público ou de entidade para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com mais de cinquenta por cento do patrimônio ou da receita anual, serão punidos na forma desta lei.
Parágrafo único. Estão também sujeitos às penalidades desta lei os atos de improbidade praticados contra o patrimônio de entidade que receba subvenção, benefício ou incentivo, fiscal ou creditício, de órgão público bem como daquelas para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com menos de cinquenta por cento do patrimônio ou da receita anual, limitando-se, nestes casos, a sanção patrimonial à repercussão do ilícito sobre a contribuição dos cofres públicos.
Art. 2° Reputa-se agente público, para os efeitos desta lei, todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação,
contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades mencionadas no artigo anterior.
Art. 3° As disposições desta lei são aplicáveis, no que couber, àquele que, mesmo não sendo agente público, induza ou concorra para a prática do ato de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer forma direta ou indireta.
3 Os incisos do art. 12 da Lei 8.429/1992 preveem as sanções:
Art. 12. Independentemente das sanções penais, civis e administrativas previstas na legislação específica, está o responsável pelo ato de improbidade sujeito às seguintes cominações, que podem ser aplicadas isolada ou cumulativamente, de acordo com a gravidade do fato:
I - na hipótese do art. 9°, perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, ressarcimento integral do dano, quando houver, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de oito a dez anos, pagamento de multa civil de até três vezes o valor do acréscimo patrimonial e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de dez anos;
II - na hipótese do art. 10, ressarcimento integral do dano, perda dos bens ou valores acrescidos ilicitamente ao patrimônio, se concorrer esta circunstância, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de cinco a oito anos, pagamento de multa civil de até duas vezes o valor do dano e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de cinco anos;
III - na hipótese do art. 11, ressarcimento integral do dano, se houver, perda da função pública, suspensão dos direitos políticos de três a cinco anos, pagamento de multa civil de até cem vezes o valor da remuneração percebida pelo agente e proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios, direta ou indiretamente, ainda que por intermédio de pessoa jurídica da qual seja sócio majoritário, pelo prazo de três anos.
4 REsp 875.425/RJ, Rel. Ministra DENISE ARRUDA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 09/12/2008, DJe 11/02/2009.
5 Art. 17. Para postular em juízo é necessário ter interesse e legitimidade.
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*Ticiano Figueiredo é sócio do escritório Figueiredo & Velloso Advogados Associados.
*Alberto Malta é sócio do escritório Malta Valle Advogados.