A bofetada
Um fim de semana que deveria ser marcado pelas conquistas olímpicas, ficou conhecido entre as operadoras do Direito da DeFEMde e do Mais Mulheres como a data em que uma de nós virou estatística.
terça-feira, 23 de agosto de 2016
Atualizado em 22 de agosto de 2016 09:01
"De repente sabe que este cavalheiro, de aparência tão insignificante, bate em mulheres". Nelson Rodrigues, jornalista, escritor e dramaturgo pernambucano (1912-1980)
A descrição de Sinval, namorado de Ismênia, personagens de Nelson Rodrigues no conto "A Esbofetada", bate com a do agressor de Marina Ganzarolli, advogada, mestre em Sociologia Jurídica pela Universidade de São Paulo e co-fundadora da Rede Feminista de Juristas. Na sexta-feira (19), a causídica palestrou em um simpósio sobre gênero e diversidade na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) em Guarabira, a 98 quilômetros da capital. Ao sair com as organizadoras do evento - a maioria negra e lésbicas - levou um tapa na cara por ter dito: "É meus senhores, a democracia é assim: temos que respeitar a diversidade!"
O agressor, um sujeito de 43 anos, foi contido por um garçom. As mulheres estavam em um bar, o Sampa, conversando e foram alvo de olhares do sujeito, branco, cerca de 1,80m. Casada com uma mulher há cinco anos, Marina nunca sofreu nenhum tipo de agressão por ser lésbica em toda sua vida. Ao contrário da Ismênia de "A vida como ela é", ela não gostou do tapa e chamou a polícia, cujas viaturas circulavam pelas proximidades.
A cidade de 58 mil habitantes não teve "um pega ladrão" e sim um "pega agressor". Os clientes do bar correram atrás do valentão que se acovardou ao se dar conta que em mulher não se bate. Ponto. E que Ismênia e Silene, personagens do dramaturgo, escritor e jornalista pernambucano, estão apenas em letras frias de seus contos. Mulher não gosta de apanhar. E a advogada provou isso ao lavrar o Boletim de Ocorrência por ameaças (sim, ele disse: "vou lhe matar! Vou lhe matar!") e por vias de fato na delegacia competente. Não havia delegado de plantão e ela insistiu duas vezes com o escrivão já que o mesmo queria que resolvessem tudo na "maior civilidade". Também membra do movimento Mais Mulheres no Direito, postou no grupo do WhatsApp, e logo recebeu o contato da advogada Thiciane Carneiro, que saiu de João Pessoa para acompanhá-la. Além dela, os advogados Luiz Guedes e Ana Flavia Nobrega Torres, dão procedimento ao caso na Paraíba com a volta de Marina para São Paulo. Haverá agora a audiência de conciliação e depois a de instrução.
Um fim de semana que deveria ser marcado pelas conquistas olímpicas, ficou conhecido entre as operadoras do Direito da DeFEMde e do Mais Mulheres como a data em que uma de nós virou estatística nas palavras da própria Marina: "mais uma vítima do machismo. Mais uma vítima da violência contra a mulher. Mais uma vítima da lesbiofobia. Mais uma vítima do despreparo dos policiais para lidar com a misoginia e a LGBTfobia".
"(...) Sinval não disse uma palavra: derruba a noiva com uma tremenda bofetada. Ela cai longe, com os lábios sangrando."
Nelson Rodrigues fez da violência contra a mulher um fetiche. Assim termina seu conto:
"Mas nos momentos de carinho, e quando estavam a sós, ela pedia, transfigurada: 'Me bate, anda! Me bate!'. Foram felicíssimos."
A felicidade é como cada uma a define. Mas é impossível de aceitá-la como resultado de violência. A vida já não é mais como era nos contos rodrigueanos. Agora a felicidade só pode ser assim chamada quando Marina e tantas outras mulheres deixarem de fazer parte de números grotescos como: uma mulher morre a cada oito minutos no Brasil. A felicidade só existirá de fato quando a sociedade brasileira pôr em prática o que dispõe o artigo 8º sobre políticas públicas da Lei Maria da Penha, que já tem uma década, para "coibir a violência doméstica e familiar e far-se-á por meio de um conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios não-governamentais", principalmente os incisos IV e VII, que propõe a "implementação de atendimento policial para as mulheres, em particular, nas Delegacias de Atendimento à Mulher" e "a capacitação permanente das Polícias Civil e Militar, da Guarda Municipal, do Corpo de Bombeiros e dos profissionais pertencentes aos órgãos enunciados no inciso I quanto às questões de gênero e de raça ou etnia".
Marina levou um tapa. Mas doeu em todas nós. E quem bate, esquece. Quem apanha, lembra. Recordaremos ao lutarmos por nossos direitos. Hoje e sempre.
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*Ivy Farias é jornalista e estudante de Direito. Também é militante dos Direitos Humanos e dos Animais e co-fundadora do movimento Mais Mulheres no Direito e da Rede Feminista de Juristas (DeFEMde).
*Foto: Gustavo Scatena/Imagem Paulista/Divulgação.