Fraude impossível
O "peso" financeiro das contratações sob o regime da CLT tem, de fato, apavorado boa parte da sociedade. Uma fobia que vem tomando proporções que há muito escaparam da menor possibilidade de controle estatal. Proliferam todas as demais modalidades de contratos de prestação de serviços, como alternativas para o registro em carteira.
segunda-feira, 4 de agosto de 2003
Atualizado em 1 de agosto de 2003 13:15
Fraude impossível
Mário Gonçalves Júnior*
O Direito do Trabalho é, em boa parte, tutelar, limitando a autonomia de vontade dos particulares. Mesmo que não se queira vincular através de um contrato de emprego, uma vez presentes os requisitos previstos na CLT, ignora-se a preferência dos contratantes, que sucumbe diante da vontade do Estado: há emprego, sim, goste-se ou não.
Quem milita na área já deve ter se deparado com situações no mínimo curiosas, em decorrência dessa limitação legal à autonomia de vontade dos contratantes.
A quantidade de tributos que incidem sobre a folha de pagamento e sobre o capital produtivo, que só faz aumentar a despeito das sempre presentes "reformas" legislativas, a cada década empurra mais trabalhadores para a o chamado "mercado informal". Na América Latina, esse universo já ultrapassa 50% (cinqüenta por cento) da população economicamente ativa.
E quanto mais avança o protecionismo estatal, mais recuam as estatísticas. O efeito é inverso, a equação é perversa: para cada nova dose extra de proteção legal, novos desprotegidos. A esse fenômeno convencionou-se chamar de "tara da inanição da legislação" ou "crise de autenticidade" (já escrevemos sobre o tema em 1995: "O Fenômeno da Crise de Autenticidade", "in" revista Trabalho & Doutrina, vol. 7, Saraiva, São Paulo, págs. 66/70).
De Goeth se aprendia algo parecido: "a lei é poderosa; mais poderosa, porém, é a necessidade". Outra sugestiva orientação vem do psiquiatra Içami Tiba. Discursando sobre a melhor maneira de pais se relacionarem com filhos, aconselha: "O amor sem limites deixa que se desenvolva demais o lado animal e instintivo do jovem" (Amor demais estraga, revista Veja de 04/06/03, páginas amarelas). O longo tempo de vigência da legislação de Vargas (o "pai dos pobres") também já mostrou que o excessivo paternalismo estatal mais atrapalha do que ajuda.
No modelo atual de Direito do Trabalho, portanto, todos são obrigados a suportar os inúmeros encargos trabalhistas, mesmo que não tenham condição financeira ou não queiram, se estiverem presentes os elementos que a CLT utiliza para definir relação de emprego. Nem adianta tentar "rotular" artificialmente esses contratos, tentando escamotear o trabalho assalariado em através de pseudo-empresas prestadoras de serviços (tendo os empregados como "sócios"), representações comerciais, cooperativas de trabalho etc. Desmentidos os "rótulos", a legislação trabalhista incide implacavelmente (princípio da primazia da realidade).
Mas, apesar desse risco, continua-se preferindo corrê-lo, diante da colossal carga tributária e o "custo" da mão-de-obra "formal".
Nem é dessas situações que pretendemos nos ocupar aqui. Quando a fraude foi desejada e concretizada, a solução legal é essa mesma. Quem discordar ou não estiver satisfeito deve buscar um caminho que leve à revogação ou reforma da legislação trabalhista. Sob o pálio da lei brasileira atual é que não encontrarão descanso.
O "peso" financeiro das contratações sob o regime da CLT tem, de fato, apavorado boa parte da sociedade. Uma fobia que vem tomando proporções que há muito escaparam da menor possibilidade de controle estatal. Proliferam todas as demais modalidades de contratos de prestação de serviços, como alternativas para o registro em carteira.
A desesperada fuga da legislação trabalhista, em alguns casos que tivemos oportunidade de analisar, tem produzido situações paradoxais: o empresário até imagina ou deseja "disfarçar" potenciais relações de emprego, mas, quando dissecadas essas relações jurídicas, a rotina e o modo de trabalho de certos "prestadores de serviços", verificamos que estes realmente sempre foram autônomos, isto é, nunca atuaram na condição de verdadeiros empregados!
Em Direito Penal há um instituto bastante ilustrativo e que ajuda a entender essas situações. É o chamado "crime impossível" ("falho" ou "imaginário").
Pensemos na seguinte situação hipotética: se alguém disparar arma de fogo diversas vezes, atingindo regiões vitais da vítima, crendo que esta ainda está viva quando não passa de um cadáver, comete crime de homicídio? Não.
Há inúmeros outros exemplos. Ensina René Ariel Dotti (Curso de Direito Penal, Parte Geral, Forense, Rio, 2001, pág. 376) que "Estabelece o art. 17 do CP que não se pune a tentativa quando, "por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime". Exemplo da primeira hipótese é a "tentativa" de homicídio na qual o agente supõe estar envenenando com arsênico (meio) quando, por equívoco, coloca na bebida uma substância inócua; exemplo da segunda são manobras abortivas em mulher (objeto) que não está grávida".
Bastante interessante é a opinião de Zaffaroni e Pierangelli: "a diferença que medeia entre o erro relevante de tipo que recai sobre a causalidade e o erro que é próprio da tentativa, acha-se em que o primeiro elimina o dolo e o segundo é o que faz com que o dolo exista. O primeiro determina que o sujeito não preveja que causará daquele modo o resultado, no primeiro não prevê o resultado produzido, e no segundo, prevê um resultado não produzido. Do primeiro erro resulta que não tenha querido o que se passou, enquanto no segundo erro, que tenha querido o que não se passou" (Da Tentativa, 1a. ed., Jalovi, p. 106).
Altamiro J. dos Santos (Direito Penal do Trabalho, LTr, São Paulo, 1997, págs. 456/457) invoca as luzes incomparáveis de Nelson Hungria, para quem "Na tentativa com meio absolutamente inidôneo, falha uma das condições à existência de um crime (segundo a dita noção), isto é, a ocorrência, pelo menos, de real perigo de dano a um bem jurídico; na tentativa sobre o objeto absolutamente impróprio, a tipicidade penal é ainda mais evidente: inexiste o bem jurídico que o agente supõe atacar. Dá-se ineficácia absoluta do meio quando este, por sua própria essência ou natureza, é incapaz, por mais que se reitere o seu emprego, de produzir o evento a que está subordinada a consumação do crime. Exemplo: Tício, tendo resolvido eliminar Caio, ministra-lhe erroneamente bicarbonato de sódio, ao invés da dose de estricnina que adquirira para esse fim. Dá-se absoluta impropriedade do objeto quando este, por sua condição ou situação, torna-se impossível a superveniência do evento típico do crime. Exemplo: Tício, supondo seu inimigo dormir, quando na realidade está morto, desfecha-lhe punhaladas..." (op. cit. v. I, tomo II, p. 99)".
Várias decisões da Justiça Comum poderiam ser transportadas para a casuística trabalhista, guardadas as devidas proporções:
"Em nosso caso, a apelante quis um resultado que não se passou. Laborou em erro. Sua vontade foi orientada equivocadamente e o resultado, que ela supôs consumado, revelou-se de todo inidôneo, sem a menor correspondência com a carga intencional" (TJSP - Rel. Djalma Lofano - RJTJSP 110/451).
"Crime é conduta e resultado. Este configura dano ou perigo ao objeto jurídico. Além disso a execução deve ser idônea, ou seja, trazer a potencialidade do evento. Execução idônea conduz à consumação ou à tentativa. Execução inidônea, ao contrário, leva ao crime impossível" (STJ - RHC 1.902-9 - Rel. Vicente Cernicchiaro - DJU 05.04.1993, p. 5.859).
"Crime impossível é aquele que se caracteriza pela ineficácia absoluta do meio utilizado ou pela absoluta impropriedade do objeto, de modo a tornar impossível a concretização do resultado lesivo e, portanto, a consumação do crime" (TACRIM-SP - HC - Rel. Marrey Filho - RJD 7/175).
"O crime impossível apenas se caracteriza quando não tem qualquer possibilidade de ser alcançada, sendo que se a ineficácia do meio empregado ou a impropriedade do objeto forem meramente relativas, configura-se a tentativa" (TACRIM-SP - Ap. Ericson Maranho - RJD 27/70).
"Há crime impossível quando o meio empregado é absolutamente ineficaz, notadamente se desde o início da mise-en-scène a vítima percebeu que se tratava de uma malandragem do agente. A lei penal brasileira, seguindo o exemplo do Código e dos doutrinadores italianos, adotou o critério objetivo, de sorte que o fato é impunível mesmo quando o agente esteja convencido de que os meios por ele usados eram aptos para conseguir o desiderato" (TACRIM-SP - AC - Rel. Sílvia Pinto - JUTACRIM 87/245).
"Configura crime impossível o uso de arma descarregada, ocorrendo tal fato como causa de impunibilidade, segundo o art. 14 do CP (atual art. 17)" (TJSP - Rec. - Rela. Thereza Tang - ADV 7.342/760).
"Ocorre crime falho ou impossível se, não obstante realizados os atos de execução do roubo, este, porém, não se consuma, por não trazer a vítima qualquer valor consigo. Trata-se, pois, de inidoneidade absoluta do objeto" (TACRIM-SP - AC - Rel. Ercílio Sampaio - RT 517/363).
"Sendo o crédito do réu maior que o débito, existe até mesmo absoluta impropriedade do objeto material do crime de apropriação indébita, de sorte que impossibilitada a consumação. Em casos tais, o que se vislumbra é o crime imaginário ou impossível, não punido pela sistemática penal em vigor" (TACRIM-SP - AC - Rel. Silva Pinto - RT 631/315).
Não basta, assim, para que a fraude trabalhista reste configurada, que o potencial "patrão" queira produzi-la; é absolutamente necessário que, além de querer o resultado, este efetivamente se realize. Enfim, conduta e resultado.
A mera intenção não chega a ser, nesta hipótese, um fato jurídico. Um dito popular === ainda ilustrando === confirma a premissa: "De boas intenções o caminho até o inferno está repleto"!
Assim, mesmo que o agente pretenda, consciente e dolosamente, "simular" um contrato de prestação de serviços autônomos para fugir do contrato de emprego, se este último, em sua essência, não chegar a se implementar no decorrer da sua execução (por falta de pessoalidade, subordinação jurídica, habitualidade etc.), não poderá ser censurado a pretexto da legislação trabalhista. Parafraseando Hungria: "inexiste o bem jurídico (relação de emprego) que o agente supõe atacar".
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*Advogado do escritório Demarest & Almeida Advogados
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