O protesto da dívida ativa como alternativa à execução fiscal: determinações da portaria PGFN nº 321/2006
Em 7.4.2006, foi publicada a Portaria nº 321, da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (Portaria nº 321/2006), que estabelece a possibilidade de as Certidões da Dívida Ativa da União serem levadas a protesto, antes do ajuizamento da Execução Fiscal. Segundo determina o artigo 1º da referida Portaria, trata-se de faculdade da União, especialmente no que concerne às dívidas cujos valores não ultrapassem R$ 10.000,00 (dez mil Reais).
sexta-feira, 5 de maio de 2006
Atualizado em 4 de maio de 2006 14:44
O protesto da dívida ativa como alternativa à execução fiscal: determinações da portaria PGFN nº 321/2006
Arthur Salibe*
Tathiane dos Santos Piscitelli*
I. - INTRODUÇÃO
Em 7.4.2006, foi publicada a Portaria nº 321, da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (Portaria nº 321/2006), que estabelece a possibilidade de as Certidões da Dívida Ativa da União serem levadas a protesto, antes do ajuizamento da Execução Fiscal. Segundo determina o artigo 1º da referida Portaria, trata-se de faculdade da União, especialmente no que concerne às dívidas cujos valores não ultrapassem R$ 10.000,00 (dez mil Reais).
A Portaria foi editada com suposto apoio nos artigos 1º da
Pelo cotejo desses dois dispositivos, pretendeu a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, sem qualquer respaldo legal, fazer interessante silogismo: (i) protesto dirige-se a provar a inadimplência e descumprimento de obrigação fundada em títulos; (ii) a Certidão da Dívida Ativa é título executivo extrajudicial; (iii) logo, o débito inscrito na Dívida Ativa poderá ser objeto de protesto.
O equívoco desse raciocínio está em considerar que a expressão "obrigação fundada em títulos" alberga a Certidão da Dívida Ativa. Conforme será tratado a seguir, a finalidade do protesto no direito privado não pode ser transplantada para o Direito Tributário. Para tratar do tema mais detidamente, cumpre fazer algumas considerações preliminares acerca da cobrança do crédito tributário e a disciplina do protesto.
II. - A COBRANÇA DA DÍVIDA TRIBUTÁRIA E O PROTESTO EXTRAJUDICIAL
Segundo dispõe o artigo 201 do Código Tributário Nacional (CTN), "constitui dívida ativa tributária a proveniente de crédito dessa natureza, regularmente inscrita na repartição administrativa competente, depois de esgotado o prazo fixado, para pagamento, pela lei ou por decisão proferida em processo regular". Ou seja: a inscrição na Dívida Ativa é procedimento administrativo cuja condição é a inadimplência do sujeito passivo. Transcorrido o prazo para o pagamento da dívida tributária, deverá a autoridade administrativa proceder à inscrição do débito na Dívida Ativa. Não se trata, aqui, de mera faculdade do agente, mas poder-dever, apenas excetuado por expressa disposição legal1.
Uma vez inscrito o débito na Dívida Ativa, este passa a gozar de presunção de liquidez e certeza, além de ter o efeito de prova pré-constituída (artigo 204 do CTN). Será com base nesse procedimento de inscrição que será emitida a Certidão da Dívida Ativa, título executivo extrajudicial que figurará como suporte do processo de Execução Fiscal.
A Execução Fiscal está disciplinada na Lei nº 6.830/1980 e representa a única forma de cobrança judicial do crédito tributário, fato que foi objeto de críticas doutrinárias, tendo em vista a previsão geral do processo de execução forçada comum no CPC2. A despeito dessas ressalvas, não se pode negar que a Lei nº 6.830/1980 introduziu procedimento especial para a execução de débitos em que a Fazenda Pública figure como credora. Portanto, a utilização desse procedimento, precedida da inscrição na Dívida Ativa e posterior emissão da certidão respectiva, nos termos da legislação atual, é único meio existente para a exigência do crédito tributário.
De outro lado, o protesto extrajudicial é instituto disciplinado na Lei nº 9.492/1997 que, nos termos do já mencionado artigo 1º, "é ato formal solene pelo qual se prova a inadimplência e o descumprimento de obrigação originada em títulos e outros documentos de dívida". Objetiva, assim, caracterizar a insolvência do devedor, conferindo ao débito presunção de liquidez e certeza: "é o ato solene e público que se destina a comprovar a recusa do devedor quanto ao aceite ou pagamento de letra de câmbio"3.
Portanto, o protesto constitui o devedor em mora e, além disso, confere publicidade a este estado moratório. Como efeito prático, o devedor que possua título protestado encontrará dificuldades em realizar atos negociais, como, por exemplo, obter crédito em instituições financeiras, avalistas ou endossantes para operações no âmbito de suas atividades.
Diante dessa breve diferenciação, cumpre indagar: o instituto protesto poderia ser utilizado em face de créditos tributários devidamente inscritos
III. - O PROTESTO EXTRAJUDICIAL DA DÍVIDA TRIBUTÁRIA
Conforme visto, no direito privado o protesto é condição para que o credor seja constituído em mora e, ainda, para conferir publicidade à insolvência do devedor. Todavia, no Direito Tributário tal providência não é necessária por três motivos bastante claros: (i) o prazo para pagamento da obrigação tributária está previsto nos diversos atos normativos expedidos pelas Autoridades Fiscais e, portanto, a mora estará automaticamente configurada ao se verificar que o sujeito passivo não cumpriu seu dever dentro do prazo pré-estabelecido; (ii) a dívida tributária não necessita do protesto para que seja conhecida por terceiros; já que qualquer cidadão poderá solicitar a apresentação de certidão negativa de débitos para tomar conhecimento da regularidade fiscal ou não de pessoas físicas ou jurídicas; e (iii) o CTN, que estabelece normas gerais sobre Direito Tributário, somente admite o protesto, ainda assim sob a forma judicial, como meio para interromper a prescrição da ação de Execução Fiscal (artigo 174, parágrafo único, inciso II).
Não é demasiado afirmar que as Autoridades Fiscais possuem instrumentos hábeis para fazer valer suas pretensões: após a constituição do crédito tributário e a verificação do inadimplemento do sujeito passivo, o débito deverá ser inscrito na dívida ativa, para posterior exigência judicial, o que será feito no bojo da Execução Fiscal.
Portanto, é evidente o absoluto descompasso entre o protesto e a exigência de débitos tributários. A situação se agrava ainda mais se considerarmos que a certidão de dívida ativa, diferentemente da cártula, não pode ser endossada, nem comporta avalistas, esvaindo-se, por completo, a finalidade do protesto de dívidas tributárias. Por essa razão, concluímos que o único objetivo da "importação" desse instituto para o Direito Tributário seria o constrangimento do sujeito passivo.
Ora, sendo a Certidão da Dívida Ativa objeto de protesto, como conseqüência prática, o sujeito passivo terá negado acesso a todo e qualquer tipo de crédito financeiro e, dessa forma, dificilmente terá êxito em dar continuidade aos seus negócios. Diante da escolha que irá se colocar ao contribuinte (encerrar as atividades, ou pagar o débito), é bastante provável que eleja a segunda opção, fato que demonstra nítido constrangimento para o pagamento do tributo.
Ademais, considerando ainda o fato de que o protesto irá gerar a restrição das atividades econômicas do sujeito passivo e, portanto, redução das possibilidades de recuperação financeira da empresa, constata-se que tal objetivo é absolutamente contraditório com a disciplina moderna do direito das empresas. O que se pretende atualmente é viabilizar a recuperação da pessoa jurídica e não dificultá-la. Inclusive, o CTN foi recentemente modificado pela Lei Complementar nº 118/2005, que institui normas de flexibilização da responsabilidade tributária, visando à preservação da empresa e, assim, conferindo relevo à sua função social. A Portaria da Fazenda Nacional atua em sentido oposto: ao levar a protesto as dívidas tributárias restringe as atividades econômicas da empresa e ignora qualquer função social inerente àquelas atividades.
Importante também lembrar que o Supremo Tribunal Federal já afastou o uso de meios coercitivos e vexatórios tendentes à cobrança de tributos, consoante se verifica das Súmulas 323 e 547:
"É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos." (Súmula nº 323).
"Ao contribuinte em débito, não é lícito à autoridade proibir que adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais." (Súmula nº 547)
Portanto, é evidente que o protesto da Certidão de Dívida Ativa não é instrumento hábil à cobrança do crédito tributário. O Direito Tributário é regido pelo princípio da legalidade estrita e toda e qualquer forma de exigência do crédito tributário deve estar expressa na lei. Não se admite a atuação discricionária da autoridade administrativa; os atos tendentes à cobrança das dívidas tributárias invariavelmente deverão estar previstos em lei: "não basta que uma lei preveja a exigência de um tributo, mas, pelo contrário, deve determinar seus elementos fundamentais, vinculando a atuação da Fazenda Pública e circunscrevendo, ao máximo, o âmbito de discricionariedade do agente administrativo"4.
No caso em análise, além de o protesto não ser o instrumento adequado para a cobrança de tributos - já que se direciona exclusivamente às relações de direito privado, o que, por si só, já bastaria para afastar sua utilização -, inexiste qualquer previsão legal nesse sentido e o único objetivo do Poder Público é constranger o sujeito passivo a pagar o débito. Dessa forma, é evidente que a Portaria nº 321/2006 extrapola sua competência e, assim, deve ser revista em todos os seus termos.
Todavia, por força argumentativa, ainda que se considere aplicável o disposto na Portaria em análise, deve-se mencionar que seu texto apresenta graves contradições.
Nos termos do artigo 1º da referida Portaria, poderão ser protestadas as Certidões da Dívida Ativa da União, "especialmente aquelas cujos valores não ultrapassem o limite estabelecido pela Portaria MF nº 49, de 1º de abril de
Importante notar que essa Portaria nº 49/2004 determina a não inscrição na Dívida Ativa dos débitos inferiores a R$ 1.000,00 e, ainda, o não ajuizamento de execuções fiscais relativas a débitos inferiores a R$ R$ 10.000,00. Ora, se tais débitos sequer serão inscritos na Dívida Ativa ou, em alguns casos, não serão objetos de Execução Fiscal, como será possível e qual seria a finalidade do "protesto, [da certidão da dívida ativa] antes do ajuizamento da execução fiscal"?
Essa providência, especialmente para os débitos de pequeno valor, mostra-se totalmente desnecessária, além de abusiva. Tal fato somente reitera, ao lado dos demais argumentos desenvolvidos acima, a incongruência da Portaria nº 321/200 com todo o resto do ordenamento jurídico.
IV. - CONCLUSÕES
Diante do exposto, pode-se afirmar que: (i) o protesto da certidão da Dívida Ativa tributária não pode ser admitido, vez que não atende às finalidades dos protestos da dívida privada, já que a publicidade e a mora são inerentes ao débito inscrito na Dívida Ativa; e (ii) tendo isso em vista, a medida ora tratada há de ser interpretada como meio que visa unicamente ao constrangimento do devedor, postura já rechaçada pelo Supremo Tribunal Federal e nitidamente avessa à função social da empresa, a qual tem merecido grande relevo na legislação atual.
1Nesse sentido, vide Portaria do Ministério da Fazenda nº 49/1999, que autoriza a não inscrição de débitos inferiores a R$ 1.000,00, publicado com fundamento no Decreto-lei nº 1.569/1977 e na Lei nº 7.799/1999.
2THEODORO JR., Humberto. "Lei de Execução Fiscal". São Paulo: Saraiva, 2004. Pp. 3-5.
3FERREIRA PIRES, José Paulo Leal. "Títulos de créditos". São Paulo: Malheiros, 1997. P. 75.
4CARRAZA, Roque Antonio. "Curso de Direito Constitucional Tributário". São Paulo: Malheiros, 2004. P. 244.
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*Advogados do escritório Pinheiro Neto Advogados
* Este artigo foi redigido meramente para fins de informação e debate, não devendo ser considerado uma opinião legal para qualquer operação ou negócio específico.
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