O inadimplemento antecipado do contrato
O inadimplemento antecipado do contrato não se confunde com vencimento antecipado do débito.
quarta-feira, 29 de junho de 2016
Atualizado em 28 de junho de 2016 10:23
O modo ideal para extinção da relação obrigacional consiste no cumprimento adequado e espontâneo das obrigações pactuadas. Nesse ponto, destaca-se que o adimplemento não se limita apenas ao cumprimento da obrigação principal pactuada, mas inclui, também, o cumprimento dos deveres anexos, derivados do princípio da boa-fé objetiva e impostos pelo ordenamento jurídico, independendo da existência de cláusula contratual nesse sentido.
Todavia, algumas vezes não é possível o adequado cumprimento da obrigação, ficando caracterizado, portanto, o inadimplemento que, tradicionalmente, pode ser inadimplemento-mora ou inadimplemento absoluto.
O inadimplemento-mora caracteriza-se pelo não cumprimento da obrigação a tempo, modo e/ou lugar pactuado, mas no qual ainda é mantida a possibilidade do cumprimento da obrigação e a utilidade para o credor quanto ao seu cumprimento. Já o inadimplemento absoluto caracteriza-se quando a obrigação, em razão do seu não cumprimento no tempo, modo e lugar pactuado, se torna impossível ou, ainda que possível, se torna imprestável para o credor.
Lado outro o inadimplemento antecipado do contrato se apresenta como outra modalidade de inadimplemento, não positivada em nosso ordenamento jurídico, mas que decorre de uma construção doutrinária e jurisprudencial baseada em uma interpretação extensiva da lei e sistemática do contrato. Por isso, consiste em uma violação positiva do contrato na qual, apesar das partes terem pactuado o momento correto para cumprimento da obrigação (termo), uma delas, em momento anterior ao termo, manifesta expressamente a intenção de não adimplir a obrigação ou pratica atos que tornam impossível o adimplemento da obrigação.
Portanto, o inadimplemento antecipado do contrato se distancia da visão tradicional do inadimplemento voltada apenas para o cumprimento da obrigação quando do advento do termo "e se insere em uma visão mais dinâmica das obrigações, onde a relação obrigacional é vista como um 'sistema de processos', composto por um conjunto de atividades necessárias à satisfação do interesse do credor1".
Destaca-se que o instituto em questão teve como base a teoria inglesa da "mitigation of losses" e do "antecipatory breach of contract". Segundo a primeira teoria, em decorrência do princípio da boa-fé, o credor que se sentir lesado por algum comportamento do devedor tem não só a possibilidade, mas o dever legal de agir para evitar o agravamento do dano. Assim, segundo essa teoria, na hipótese do credor deixar de adotar as medidas necessárias para a mitigação dos seus prejuízos, poderá o devedor requerer redução das perdas e danos devidas em razão do inadimplemento na mesma proporção em que os danos poderiam ter sido evitados pelo credor.
Essa doutrina foi inclusive positivada pela Convenção de Viena sobre Venda Internacional de Mercadoria2, que em seu artigo 77 dispõe que a parte que invoca a violação do contrato deve tomar as medidas razoáveis, face às circunstâncias, para limitar a perda, aí compreendido o lucro cessante, resultante da violação contratual. Se não o fizer, a parte faltosa pode pedir uma redução da indenização por perdas e danos, no montante da perda que deveria ter sido evitada.
Quanto à doutrina do inadimplemento antecipado, Fortunato Azulay3, citado por Cristiano Chaves de Farias e Nelson Ronsenvald4, explicita que surgiu na Inglaterra a chamada doutrina do anticipatory breach do contrato, pela qual veio a ficar consagrada em outros sucessivos julgados, tambe'm nos EUA, que, se um dos contraentes revela, por atos ou palavras perempto'rias e inequi'vocas, a intenc¸a~o de na~o cumprir a sua prestac¸a~o, diferida a tempo certo, pode a outra parte considerar esse comportamento como inadimple^ncia contratual.
Apesar das referidas doutrinas não terem sido positivadas em nosso ordenamento jurídico, a doutrina e a jurisprudência têm entendido a teoria do inadimplemento antecipado do contrato como decorrente do princípio da boa-fé, que impõe às partes o dever de lealdade, confiança, mútua proteção e colaboração. Nesse sentido Cristiano Chaves de Farias e Nelson Ronsenvald apontam que a recusa antecipada ao cumprimento da obrigação é também uma forma de violação ao princípio da boa-fé, pois a conduta que denota a falta de interesse de uma das partes em cumprir o dever de prestar é certamente uma lesão ao direito de confiança que inspira qualquer relação negocial.
Tal entendimento foi ratificado no enunciado nº 169 da III Jornada de Direito Civil segundo o qual o princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do próprio prejuízo.
Dessa forma, caso (i) haja a manifestação expressa e categórica do réu quanto à sua intenção de não cumprimento da obrigação ou (ii) o devedor adote condutas que tornem impossível o cumprimento da obrigação do modo e no tempo pactuado, é desnecessário que o credor aguarde o advento do termo para caracterização do inadimplemento, podendo, desde o momento em que uma das situações acima se concretizar, requerer judicialmente a resolução do contrato, com o desfazimento do vínculo contratual e as perdas e danos daí decorrentes.
Importante destacar que o inadimplemento antecipado do contrato não se confunde com vencimento antecipado do débito, posto que esse decorre exclusivamente de situações que resultem em insolvência do devedor, conforme disciplina o artigo 3335 do Código Civil, enquanto aquele caracteriza-se quando o devedor revela, expressamente ou por meio dos seus atos, que a obrigação pactuada não será cumprida.
Cristiano Chaves de Farias e Nelson Ronsenvald trazem como exemplo de inadimplemento antecipado do contrato a situação na qual "um jogador de futebol subscreve contrato com determinada empresa para apresentar-se em um evento, mas divulga na imprensa sua intenção de faltar. Certamente, a empresa poderá obter tutela específica da obrigação de fazer, mediante a imposição persuasiva de astreintes (art. 461 do CPC), ou, então, para aquilo que nos interessa, resolver antecipadamente o contrato, com cumulação sucessiva de perdas e danos, evitando prejuízos maiores no futuro".6
Assim, apesar não ter sido positivada no ordenamento jurídico brasileiro, nossos tribunais têm aplicado a teoria do inadimplemento antecipado do contrato para solução de alguns casos, como julgamento do Resp. 309626/RJ, relatado pelo Ministro Ruy Rosado de Aguiar7.
Aplica-se, portanto, a teoria do inadimplemento antecipado do contrato para possibilitar a resolução do vínculo contratual antes do advento do termo, de forma a evitar a possível ampliação dos danos que poderia resultar da espera pelo tempo, modo ou local no qual a obrigação deveria ser adimplida. Referida teoria deve ser aplicada de maneira excepcional, quando necessária à proteção da confiança, lealdade e colaboração mútua entre os contratantes, bem como à mitigação dos prejuízos do credor.
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1 ANDRADE, Luís Tomás Alves de. O Inadimplemento Antecipado do Contrato no Direito Brasileiro. Disponível em: < https://www.emerj.rj.gov.br/revistaemerj_online/edicoes/revista56/revista56_145.pdf> Acesso em: 20/05/2016.
2 Convenção de Viena sobre Venda Internacional de Mercadoria. Disponível em: <https://www.globalsaleslaw.org/__temp/CISG_portugues.pdf > Acesso em: 20/05.2016.
3 AZULAY, Fortunato apud VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. 14. ed. rev. ampl. e atual. São Paulo. Ed. Atlas. 2014.
4 FARIAS, Cristiano Chaves de; RONSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. Teoria Geral e Contratos em espécie. 5. ed. rev. Ampl. e atual. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2015
5 Art. 333. Ao credor assistirá o direito de cobrar a dívida antes de vencido o prazo estipulado no contrato ou marcado neste Código:
I - no caso de falência do devedor, ou de concurso de credores;
II - se os bens, hipotecados ou empenhados, forem penhorados em execução por outro credor;
III - se cessarem, ou se se tornarem insuficientes, as garantias do débito, fidejussórias, ou reais, e o devedor, intimado, se negar a reforçá-las.
Parágrafo único. Nos casos deste artigo, se houver, no débito, solidariedade passiva, não se reputará vencido quanto aos outros devedores solventes.
6 FARIAS, Cristiano Chaves de; RONSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. Teoria Geral e Contratos em espécie. 5. ed. rev. Ampl. e atual. São Paulo: Editora Atlas S.A., 2015
7 PROMESSA DE COMPRA E VENDA. Resolução. Quebra antecipada do contrato. - Evidenciado que a construtora não cumprirá o contrato, o promissário comprador pode pedir a extinção da avença e a devolução das importâncias que pagou. - Recurso não conhecido (...) As partes contrataram a compra e venda de um apartamento a ser construído pela empresa ré, com entrega prevista para novembro de 1999. Como em julho de 1998 as obras ainda não estavam iniciadas, a que se aliaram outras circunstâncias que confirmavam a idéia de que o prédio não seria construído, o promissório comprador promoveu ação de resolução do contrato, com pedido de devolução do que despendeu durante dois anos. O caso é de descumprimento antecipado de contrato de promessa de imóvel a ser construído, porquanto as circunstâncias reconhecidas pelas instâncias ordinárias evidenciaram que a construtora, até a data do ajuizamento da demanda, não iniciara as obras, embora já decorridos dois anos, e faltando apenas um para o término do prazo contratual. Quando a devedora da prestação futura toma atitude claramente contrária à avença, demonstrando firmemente que não cumprirá o contrato, pode a outra parte pleitear a sua extinção.
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Referências
ANDRADE, Luís Tomás Alves de. O Inadimplemento Antecipado do Contrato no Direito Brasileiro. Disponível em: <https://www.emerj.rj.gov.br/revistaemerj_online/edicoes/revista56/revista56_145.pdf> Acesso em: 20 maio 2016.
BRASIL. Código Civil (1916). Lei nº 3071, de 01 de janeiro de 1916. Diário de Justiça, 05 jan. 1916. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L3071.htm>. Acesso em: 20 maio. 2015.
Convenção de Viena sobre Venda Internacional de Mercadoria. Disponível em: <https://www.globalsaleslaw.org/__temp/CISG_portugues.pdf > Acesso em: 20 maio 2016.
FARIAS, Cristiano Chaves de; RONSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. 6. ed. rev. atual e ampl. Salvador: Editora JusPodivm, 2014.
JORNADA DE DIREITO CIVIL. Disponível em: <https://daleth.cjf.jus.br/revista/enunciados/IIIJornada.pdf> Acesso em: 20 maio 2016.
VENOSA, Silvio de Salvo Venosa. Direito Civil. Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos.. 14. ed. São Paulo: Editora Atlas S.A, 2014.
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*Luana de Oliveira Carvalho é advogada no escritório Chenut Oliveira Santiago Sociedade de Advogados.