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Os dez passos da reforma previdenciária

Os detalhes do modelo futuro, em verdade, não comportam adequação a um único referencial, mas, a depender das opções e prioridades eleitas pelo Estado brasileiro, muitas formas de proteção social adequadas podem ser construídas.

quarta-feira, 25 de maio de 2016

Atualizado em 24 de maio de 2016 17:16

Não pretendo, com este brevíssimo texto, discorrer sobre as mudanças necessárias quanto aos critérios de elegibilidade de cada benefício previdenciário ou a mensuração exata das prestações, mas, unicamente, apontar os passos necessários para uma reforma adequada. Os detalhes do modelo futuro, em verdade, não comportam adequação a um único referencial, mas, a depender das opções e prioridades eleitas pelo Estado brasileiro, muitas formas de proteção social adequadas podem ser construídas.

Também como forma de melhor estimular a leitura, adoto o tradicional paradigma de dividir o texto em passos ou etapas, coligando o pragmatismo dos textos contemporâneos com o marketing de ideias sumarizadas em breves tópicos.

Enfim, exponho minhas impressões sobre um início adequado da reforma previdenciária que, além de sucesso na arena política, possa ser verdadeiramente capaz de produzir mudanças estruturais em nosso modelo, assegurando a cobertura efetiva da sociedade. A seguir, os passos que me parecem necessários.

1. Construir o Consenso sobre a Necessidade de uma Reforma Previdenciária

Tal aspecto, por mais elementar que possa parecer, é frequentemente esquecido. Reformas previdenciárias, ao restringir direitos, naturalmente não comportam uma recepção festiva da sociedade e seus representantes no parlamento. Somente a consciência de que algo precisa ser feito poderá, em tempo razoável, produzir as adequações que nosso modelo carece.

O Brasil possui cenário demográfico com rápido envelhecimento populacional e acelerada redução da natalidade, o que, por natural, tende a comprometer modelos previdenciários maduros como o nosso, especialmente quando financiado no regime de repartição simples. O fato de o modelo de seguridade social, na atualidade, poder ser considerado superavitário, desde que feitos os ajustes contábeis necessários, não implica a admissão de que o mesmo possui suporte atuarial, pois as projeções demonstram, com tranqüilidade, a inviabilidade do modelo nos decênios vindouros .

Enfim, se não houver o convencimento de que o desequilíbrio existe, nada de consistente poderá ser feito. Um debate franco e honesto sobre o déficit da previdência social é, necessariamente, uma etapa a ser enfrentada.

2. Dialogar com o Congresso Nacional

Apesar de este item configurar uma segunda obviedade, nunca foi devidamente observado na matéria previdenciária. Em todas as reformas realizadas, tanto em âmbito constitucional como legal, os objetivos e conteúdo das reformas sempre foram aprioristicamente construídos pela tecnocracia estatal, muitas vezes até sem a participação da própria equipe do extinto Ministério da Previdência Social. A recente fusão deste ao Ministério da Fazenda já não é bom presságio.

Uma vez iniciada a agenda de reformas sem qualquer debate na fixação de premissas necessárias, há a tendência de repulsa por parte do parlamento brasileiro, o qual não se colocará como coadjuvante de um pacote de maldades patrocinado pelo Poder Executivo. A resistência parlamentar, como não poderia deixar de ser, torna-se brutal, tendo em vista o conteúdo inevitável de redução de direitos, em avaliações e ponderações pré-estabelecidas sem qualquer respeito aos representantes da sociedade brasileira. O resultado é, em regra, a rejeição das mudanças ou aprovação parcial, com extrema dificuldade e com custo político enorme, de pequenas alterações.

3. Desconstitucionalizar a Matéria Previdenciária

Estabelecido o consenso sobre a necessidade de adequação do modelo protetivo, em abordagem dialógica junto ao Congresso Nacional, um passo imediatamente posterior será a desconstitucionalização da matéria previdenciária. A ideia, em suma, não é excluir todo o regramento previdenciário da Constituição de 1988, mas, principalmente, retirar os parâmetros de elegibilidade e renda mensal de aposentadorias e pensões do texto constitucional.

Em nenhum outro país do mundo há Constituição com tamanho detalhamento de normas previdenciárias como a brasileira. A razão é compreensível, derivada da razoável desconfiança do Poder Constituinte frente ao legislador ordinário, haja vista as pretéritas previsões normativas injustas e prejudiciais na quantificação e concessão de prestações previdenciárias.

Podemos lembrar, por exemplo, do regramento vigente antes da Constituição de 1988 quanto ao dimensionamento da renda mensal de aposentadorias, o qual, mediante média dos 36 últimos salários, somente permitia a correção dos 24 mais antigos, deixando pelo menos um ano de salários sem qualquer atualização monetária, em período de inflação historicamente elevada. O resultado inevitável era o achatamento das rendas iniciais, tudo isso de acordo com a legislação vigente e com o beneplácito do Supremo Tribunal Federal.

É certo que tal desconfiança não era infundada, tendo em vista as flagrantes injustiças do passado. Todavia, na atualidade, a normatização excessiva, impondo exagerado dirigismo na Constituição, dificulta enormemente qualquer adequação a novas premissas atuariais e demográficas. Com isso, retarda-se a mudança, de forma a inviabilizar transições longas e tranqüilas entre regimes jurídico-previdenciários.

4. Delimitar Conteúdos Mínimos aos Projetos de Lei

Reformas de modelos previdenciários desequilibrados, como o brasileiro, implicam ajustes que, inexoravelmente, tendem a reduzir direitos, tendo em vista os limites quanto ao incremento de contribuição. Com recursos escassos, torna-se necessária a eleição de prioridades na cobertura.

Qual a melhor opção? Prestigiar os trabalhadores que ingressaram cedo no mercado de trabalho ou, por outro lado, amparar pessoas que se afastam do mercado para cuidar de filhos ou parentes doentes? Devemos permitir compensações a trabalhadores em atividades penosas ou reforçar o sistema de proteção ao desemprego? Temos demandas legítimas em abundância, mas recursos sempre limitados.

Não existe solução ideal ou exclusiva para uma reforma estrutural de modelos previdenciários. A fixação das prioridades protetivas dependerá da vontade popular, manifestada em determinada época, sempre. Todavia, deve o Poder Executivo, em seus projetos, de forma clara, expor a estratégia de escolha das prioridades, sem detalhamentos excessivos, mas com linhas mestras de preferências, como forma de guiar os instrumentos normativos de proteção.

5. Reforçar a Proteção de Crianças e Adolescentes

Com base no item anterior, acredito que um objetivo central deva ser incluído em futura reforma previdenciária, que é o reforço dos serviços do sistema protetivo. Tanto no sentido dogmático como normativo, os serviços se diferenciam dos benefícios, tendo em vista estes possuírem conteúdo pecuniário direto, como as aposentadorias, enquanto aqueles são constituídos por obrigações de fazer do sistema protetivo.

No caso brasileiro, nota-se uma clara preferência pelos benefícios, com os serviços atuando de forma muito limitada. Obviamente, os serviços também dependem de financiamento, o que agrava a situação de uma parcela prioritária da clientela protegida, que são as crianças e adolescentes.

Este tópico naturalmente gera alguma perplexidade, pois, para o brasileiro comum, um debate previdenciário estaria mais voltado a idosos do que crianças. Todavia, nunca foi intenção da Constituição de 1988 restringir nosso modelo a pessoas de idade avançada. Esta é somente parte da clientela e, incrivelmente, sequer a mais importante.

Quem deve ter a prioridade no gasto público brasileiro, o que inclui a previdência social: idosos ou crianças? A resposta para tanto encontra previsão constitucional desde 05/10/1988, no art. 227 da Lei Maior. Crianças e adolescentes contam com absoluta prioridade. Em terminologia redundante, externou o Poder Constituinte a precedência eleita.

No entanto, o que temos, do ponto de vista previdenciário, em prol de crianças e adolescentes? Com exceção do precário salário-família, além de proteção indireta produzida pelos benefícios a idosos (avós que sustentam os netos), não há um serviço direto a estes, como creches e pré-escolas. Em verdade, o Brasil, na atualidade, tem reduzido o debate público deste segmento da sociedade à matéria estritamente penal.

A criação de serviços previdenciários de apoio tem o condão, como nos mostram países escandinavos, de estimular a melhoria na taxa de natalidade, o que também é um problema na realidade nacional. Brasileiras adiam ou abandonam seus projetos de maternidade em prol do trabalho, o que poderia ser revertido com ações previdenciárias, mediante serviços focados nesta clientela. Com isso, o rápido envelhecimento populacional tende a inviabilizar nosso modelo protetivo.

Não se pretende, como veremos no passo 7, apontar idosos como privilegiados ou responsáveis pela falência do sistema. São, igualmente, vítimas da má-gestão e das promessas falsas do passado. Todavia, não podemos viver em um país, que mais recentemente, adota a terminologia da "absoluta prioridade" para os jovens (até 29 anos de idade), inseridos na CF/88 pela EC 65/10 e, novamente, pela "absoluta prioridade" dos idosos, prevista no art. 3º da lei 10.741/03, a partir dos 60 anos de idade.

Um modelo protetivo que preveja, com "absoluta prioridade" a cobertura de toda e qualquer pessoa ao longo de praticamente 2/3 de sua existência terrena, evidentemente, não tem qualquer compromisso com a realidade. A prioridade deve ser dada a crianças e adolescentes.

6. Criar Regras de Transição Razoáveis

No debate público, é dito com destaque que direitos adquiridos serão respeitados. A afirmativa, ainda que relevante e tranqüilizadora, esconde, nas entrelinhas, a dificuldade em lidar com as diversas situações de expectativa de direito, ou seja, de pessoas já engajadas em atividade remunerada por muitos anos, mas, ainda, sem alcançar o quantitativo mínimo de contribuição e/ou idade para fins de aposentadoria.

Para tanto, a dogmática jurídica, nos últimos anos, tem desenvolvido a necessidade de uma transição razoável entre regimes previdenciários, o que, em bom português, significa aplicar, a tais pessoas, um novo regramento que será mais severo que o anterior, mas, ao mesmo tempo, não tão rigoroso quanto o novo. Um meio termo. Esta é, em apertadíssima síntese, a ideia.

Desta forma, no debate parlamentar da matéria, deve-se, na melhor medida, prestigiar as pessoas já no sistema previdenciário vigente e próximas de aposentadoria. Aqui, notemos, são dois atributos necessários. Não há expectativa alguma para pessoas jovens com ainda longos períodos de trabalho antes da jubilação. A expectativa é daqueles que estão às portas da aposentadoria, com poucos anos de trabalho faltante. São estes que devem, com prioridade, ostentar garantias de transição.

7. Reconhecer os Erros do Passado

Temos de admitir, especialmente junto aos idosos de hoje, que o Estado brasileiro ofereceu vantagens e benefícios que não poderiam ser concedidos ou mantidos no futuro. Temos de admitir que muitas pessoas, hoje aposentadas, têm total razão ao criticar os valores recebidos, tendo em vista as promessas feitas no passado e as armadilhas normativas no momento da concessão de seus benefícios.

Foi notório o discurso político, em meados do Século XX, ao estimular os trabalhadores a contribuir desde cedo e com valores elevados, como forma de preservar, como se dizia, uma prestação justa e razoável. Não foram poucos os trabalhadores de boa-fé que, na crença de uma aposentadoria tranqüila, verteram valores vultosos na esperança de um futuro tranqüilo. Temos de reconhecer que foram enganados.

No entanto, tal realidade, ainda que dramática, não permite que gerações futuras paguem pela irresponsabilidade dos gestores do passado. As promessas foram quebradas, mas a tentativa de reverter tal realidade somente produziria mais injustiça.

Pelo menos, devemos admitir que os idosos de hoje não são privilegiados e usurpadores do dinheiro público, mas sim clientela iludida pela política estatal de outrora que, com a miragem de benefício fácil e elevado, foram lubridiados. Merecem estes idosos, ao menos, um pedido de desculpas.

8. Resistir à Tentação de Eleger Bodes Expiatórios

Como visto parcialmente no item anterior, não adianta buscar reformas previdenciárias a partir de erros do passado ou políticas indevidas de proteção social. Isso nada ajuda no processo de convencimento da sociedade e do Parlamento quanto a reformas previdenciárias.

Digo isso pensando, em especial, na categoria de servidores públicos. É certo que muitos, hoje aposentados, não verteram um tostão sequer para suas aposentadorias, quando, no máximo, contribuíram para o custeio de pensões por morte. Todavia, a questão não deve ser assim avaliada, pois, afinal, a regra legal vigente era essa. O benefício de servidores, historicamente, sempre fora um prêmio pelo tempo de atividade em função pública.

Se tal política se mostrou equivocada, isso não é responsabilidade daqueles que dela se beneficiaram e, muito menos, dos atuais servidores ativos, os quais têm vertido contribuições elevadíssimas sobre suas remunerações integrais, na vã expectativa de receber benefícios em patamares equivalentes. O ônus das escolhas equivocadas do passado é de toda sociedade, e não de determinado segmento.

Se assim fosse, a caça às bruxas deveria perpassar o próprio RGPS, pois temos milhares de benefícios concedidos sem qualquer suporte atuarial ou mesmo moral, como, por exemplo, as pensões para jovens viúvas ou viúvos que buscaram matrimônio com idosos visando unicamente vantagens previdenciárias. Teríamos também de rever milhares de aposentadorias especiais de trabalhadores que não se engajaram, em momento algum de suas vidas, em atividade insalubre, mas a obtiveram em razão das categorias profissionais que ocupavam. E assim por diante.

Temos de reconhecer que muitos erros ocorreram, mas, agora, temos de olhar para o futuro. As novas gerações dependem de nossas ações, hoje, em prol dos objetivos da proteção social.

9. Estabelecer Mecanismos de Controle Periódicos

Uma vez alcançado o objetivo de desconstitucionalização das regras previdenciárias básicas de aposentadoria e pensão, fixadas as regras gerais em lei e de forma equilibrada atuarialmente, será necessária a previsão normativa de entidade capaz de gerir de forma eficiente o sistema previdenciário. De nada adiantará modelo equilibrado se, ainda, for vulnerado pelas fraudes que ainda persistem.

Da mesma forma, tal gestão autônoma deve produzir acompanhamento atuarial e, periodicamente, expor à sociedade e ao parlamento, a necessidade de ajustes pontuais no regime, sem o influxo do debate político que, não raramente, mascara o real problema. Como se disse anteriormente, tanto as escolhas do gasto público como a eleição de prioridades em matéria protetiva serão prioridades do legislador ordinário. Contudo, a identificação de tais necessidades e avaliação das dificuldades do modelo deve ficar a cargo de entidade insulada das influências políticas.

10. Criar Regras de Interação com os Sistemas de Assistência Social e Saúde

Muito embora a Constituição de 1988 tenha, no âmbito da seguridade social, criado subsistemas autônomos de previdência social, assistência social e saúde, é necessário reforçar a interação entre estas áreas de atuação.

A criação de uma unidade de gestão, a partir de um ministério da seguridade social ou mesmo com um conselho nacional, seria capaz de identificar redundâncias de proteção e eliminar gastos desnecessários, produzindo melhor eficiência no gasto público.

Por exemplo, a possibilidade de perícias médicas pelas equipes do SUS, assim como a consolidação de prestações assistenciais em conjunto com a cobertura previdenciária, poderá, no futuro, estimular a proteção da vida digna e, ao mesmo tempo, criar melhores formas de impedir que a proteção social seja usada como forma de privilégio e estímulo ao ócio.

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*Fábio Zambitte Ibrahim é advogado do escritório Barroso Fontelles, Barcellos, Mendonça & Associados. Doutor em Direito Público pela UERJ. Mestre em Direito Previdenciário pela PUC/SP. Professor Adjunto de Direito Financeiro e Tributário da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.


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