Honorários advocatícios. Penhorabilidade
Na realidade, sob o manto da ´relativização´da lei, o que se verifica é uma verdadeira substituição do legislador pelo juiz e, portanto, uma transgressão do princípio da separação dos Poderes.
segunda-feira, 23 de maio de 2016
Atualizado às 07:47
Ao examinar este poderoso rotativo na quarta-feira, 18/5, surpreendi-me com a notícia segundo a qual, no julgamento do EREsp 1.264.358-SC, ocorrido em 18/5, a Corte Especial do Colendo STJ, por votação unânime, teria decidido que "A regra disposta no art. 649, inciso IV, do CPC (ora revogado) não pode ser interpretada de forma literal. Em determinadas circunstâncias é possível a sua relativização, como ocorre nos casos em que os honorários advocatícios recebidos em montantes exorbitantes ultrapassam os valores que seriam considerados razoáveis para sustento próprio e de sua família."
Informa a nota que o processo envolve um advogado que teria a receber da Fazenda Nacional cerca de R$ 2 milhões, a título de honorários sucumbenciais, tendo aquela pleiteado compensação com dívida de IPI, cuja execução lhe foi direcionada em decorrência de sua qualidade de administrador da pessoa jurídica devedora.
Considerando-se que o Tribunal qualificou o montante dos honorários de "montante exorbitante", o signatário supôs se tratasse de caso em que ao advogado, embora tendo trabalhado pouco e durante curto espaço de tempo, teria sido outorgado o direito de receber o que o vulgo costuma chamar de "uma respeitável bolada". Para certificar-se do que realmente houvera ocorrido, tomou a iniciativa de examinar o processo, que tramita eletronicamente. E qual não foi sua surpresa ao verificar que, em verdade, a cliente do advogado, vitoriosa na ação anulatória do débito tributário, por ele vem sendo representada desde abril de 1993, ou seja, há 23 anos, ou 276 meses. Além dele, vem também trabalhando na causa uma advogada, sendo que o precatório referente aos honorários, no valor nominal de R$ 1.897.962,00 foi expedido em 19 de março de 2001, para cumprimento em 10 parcelas mensais. Esse valor, atualizado com base nos critérios da Justiça Federal, alcança hoje aproximadamente R$ 5 milhões, que, divididos pelos 276 meses, representa o valor mensal de R$ 18.115,94. Supondo-se que os advogados partilhem igualmente tais proventos, tocaria a cada um o valor mensal de R$ 9.057,97, equivalente a exatos 10,29 salários mínimos ora vigentes. Esse, o resultado do total dos honorários sucumbenciais, devidamente atualizados e rateados pelo tempo em que vêm os advogados trabalhando no caso, a contar da propositura da ação.
No julgamento do recurso em tela, a norma legal discutida foi a do art. 649, inciso IV, do CPC anterior, que não previa nenhuma limitação à impenhorabilidade dos honorários de profissionais liberais, até porque o parágrafo 3° do texto original foi vetado quando da promulgação da lei 11.382, de 6 de dezembro de 2006. Na realidade, sob o manto da "relativização" da lei, o que se verifica é uma verdadeira substituição do legislador pelo juiz e, portanto, uma transgressão do princípio da separação dos Poderes. Como lecionam os professores Atahualpa Fernandez e Atahualpa Fernandez Bisneto, "carecem de legitimidade as decisões que desconsiderem as normas jurídicas e imponham vazios argumentos de "justiça" tirados de convicções pessoais do operador do direito, de comandos emergentes da mera interpretação pessoal ou ideológica do julgador. Nunca é dispensável a interpretação dos textos legais no sistema da própria ordem jurídica positiva em consonância com os princípios e garantias constitucionais e, sobretudo, à luz dos valores comunitariamente aceitos e compartidos" (Cf. "O pecado de algumas ideais associadas ao direito", em "Jus Navigandi").
Mas, sem prejuízo da crítica ao respeitável julgado, o que importa é olhar-se adiante, pelo que se torna indispensável a análise do assunto à luz do art. 833, inciso IV, e § 2° do vigente CPC (lei 13.105/15), por força do qual é possível a penhora dos honorários dos profissionais liberais naquilo que exceder 50 salários mínimos mensais. E com relação à normatização atual, entende o signatário que, salvo melhor juízo, deve ser levada em conta a necessária proporcionalização dos honorários relativamente ao período em que se deu o patrocínio da causa. Isso, sim, corresponde a uma tarefa do aplicador da lei, que é interpretá-la, sem relativizá-la, ou sem retirar-lhe a força e o poder.
Sem embargo, o que mais chamou a atenção do signatário foi o trecho da notícia em que se transcreve o que teria sido afirmado num dos votos proferidos no julgamento, verbis: "Agora, não pode ser penhorado, honorário de 10 milhões, de 5 milhões, de 1 milhão, de 500 mil, onde vamos parar ? Aí nós vamos criar uma casta de profissionais que só tem privilégios e não tem deveres (...)" O signatário confessa ter muita dificuldade em acreditar que esse raciocínio tenha sido formulado por aquele insigne Ministro, ainda mais quando se tem em linha de conta ser oriundo da classe dos advogados, mesmo que haja exercido a profissão não como profissional liberal, mas na qualidade de funcionário de instituição financeira de economia mista. Em vista desse raciocínio, poder-se-ia supor que o advogado em questão houvesse recebido proventos de algum Tesouro cornucópico imaginário, do qual se extravasassem profusamente privilégios destinados à casta à qual ele pertencesse, tais como abonos, gratificações, vale-isso, vale-aquilo, auxílios (moradia, alimentação, saúde, educação, inter alia), férias reforçadas, adicional de férias, carro com motorista, aposentadoria integral, etc.
No entanto, não foi possível confirmar essa impressão quando do exame dos autos, pelo que caberia a seguinte pergunta: acaso ter-se-iam informações de que aludido advogado recebesse mensalmente valores significativos, que causas de valor expressivo caíssem regularmente em seu colo, e que, além disso, nesses últimos 23 anos não tivesse tido nenhuma necessidade de tomar empréstimos, ou de arcar com os custos indispensáveis ao exercício da profissão, entre outros, aluguel de escritório, salários dos funcionários e respectivos direitos trabalhistas, aquisição de máquinas, utensílios, despesas de locomoção, recolhimento de impostos, taxas e demais contribuições etc, tendo em vista que ninguém até hoje tomou a iniciativa de criar um "auxílio-escritório de advocacia", a fim de mitigar os riscos dos advogados em geral, os quais, exatamente por assumir tais riscos, nem sempre têm a certeza de que, ao final do mês, serão as receitas suficientes para cobrir os custos e, por não gozarem da segurança decorrente de recebimentos mensais fixos, têm que ostentar a coragem de verdadeiros heróis da iniciativa privada? Talvez assertivas quejandas se devam à enganosa ideia de que tudo o que entra no caixa dos profissionais integrantes dessa "privilegiada casta" -- inclusive os "milhões" recebidos após trabalho realizado ao longo de dúzias de anos, graças à "celeridade" da tramitação dos processos - represente lucro líquido, e que, após enfiarem as "boladas" nos bolsos, vão gozar a vida em paraísos turísticos ou em jogatinas de cassinos ! Aliena nobis, nostra plus aliis placente!
No entanto, aconselha a prudência aguardar-se a publicação do acórdão para que melhor se possa aquilatar o ocorrido. Atente-se para que não se está a defender o advogado em questão, até porque o signatário sequer o conhece e dele não recebeu procuração; esta também não objetiva a defesa da classe dos advogados, a uma porque há instituições específicas encarregadas desse mister e, a duas, porque advogados são, em geral, forjados na luta contra as injustiças, de modo que sabem e podem vocalizar suas insatisfações motu proprio; no entanto, não se pense apenas na classe dos advogados: pense-se, por exemplo, na classe dos magistrados, da primeira à última instância, composta na sua quase totalidade por pessoas merecedoras do maior respeito e admiração da parte de seus compatriotas, e que, embora obviamente não liberais, não deixam de ser profissionais, no caso, da judicatura. O signatário não tem a mínima dúvida de que se solidarizaria com qualquer deles que acaso viesse a sofrer uma injustiça, na hipótese de que, ao receber um "valor exorbitante", a título exemplificativamente de diferenças de vencimentos relativas a longos anos de profícuo e cansativo trabalho, acabasse por ver penhorado o montante praticamente na sua totalidade, ante a ausência da proporcionalização temporal do crédito, e mais ainda, se viesse a ser considerado membro de uma "casta de profissionais que só têm privilégios" em virtude do "valor exorbitante" recebido.
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*Lionel Zaclis é advogado do escritório Barretto Ferreira e Brancher - Sociedade de Advogados, mestre e doutor em Direito pela USP.