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Mãe de criação e adoção, por Eudes Quintino

Mãe de criação e adoção

O afeto que se estabelece na guarda de fato em nada difere daquele concedido judicialmente.

domingo, 8 de maio de 2016

Atualizado em 6 de maio de 2016 13:19

Muitos poetas derramaram seus versos e escritores suas prosas enaltecendo a figura materna. E com justa razão. A mãe é sempre destaque ímpar, inconfundível, insubstituível e que proporciona sentimentos profundos de respeito e gratidão. É o canal por onde transita o sentimento mais nobre do ser humano. A cada ano que passa, de forma justa e devida, as homenagens se repetem e perpetuam o reconhecimento do carinho dispensado para quem dispensou afeto sem limites, desde a vida uterina.

Há, se assim for possível dizer, categorias diferenciadas de mães. A mãe biológica, aquela que gerou e deu à luz o filho; a genética, que cedeu seu material procriativo; a maternidade substitutiva, aquela em que a mulher suporta a gravidez em favor de outra, com a consequente entrega da criança após o parto; a maternidade proveniente da adoção; a maternidade criadeira da Roda dos Enjeitados do período imperial, que tinha por finalidade receber a criança abandonada pela mãe; e a maternidade de criação, que é o objetivo do presente esboço acadêmico.

A figura da mãe de criação sempre ocupou um lugar relevante com presença marcante no Brasil. Com incidência maior na segunda metade do século passado, era até assunto corriqueiro quando a mulher assumia uma criança "para criar", expressão própria para designar o ato de tomar para si tamanha responsabilidade de solidariedade. Daí que a população, principalmente das cidades menores, denominava de "filho de criação" aquele gerado neste regime. Geralmente a entrega era compartilhada entre parentes ou pessoas muito próximas dos pais que, em razão de dificuldades financeiras para sustentar o filho, confiavam-no àqueles que gozavam de bom nome e com condições para tanto. E a criança passava a ser um membro da nova família, sem, no entanto, qualquer reconhecimento judicial ou documental.

Tal situação persiste ainda até os dias atuais e encontra sérias restrições no Estatuto da Criança e do Adolescente no tocante à regularização da criança e, principalmente, quando trata da adoção. Com relação a este instituto, a legislação menorista exige o cumprimento do estágio de convivência com a criança, pelo prazo que a autoridade judiciária fixar1, com a finalidade de constituir laços monoparentais, reconstituídos ou homoafetivos. Dispensa-se, no entanto, o estágio se o adotando já estiver sob a tutela e a guarda legal do adotante durante tempo suficiente para se avaliar a conveniência da constituição do vínculo2. A guarda de fato, segundo a mesma legislação3, não autoriza, por si só, a dispensa da realização do estágio de convivência. Se o candidato não for cadastrado anteriormente, somente será deferida a guarda quando se tratar de adoção unilateral; de adoção pleiteada por parente que mantenha vínculos de afinidade e afetividade; ou por quem detenha a tutela ou guarda legal de criança maior de três anos4. Assim, pela intenção do legislador, somente a guarda legal é documento hábil para a dispensa do período de adaptação ou convivência. Por outro lado, em diversas oportunidades, faz ver que toda criança ou adolescente deve ser criado ou educado no seio da família natural. A adoção, portanto, é uma medida excepcional. Com as modificações introduzidas pela lei 12.010/2009, criou-se a adoção unilateral e a bilateral e o direito do adotado de conhecer sua identidade genética.

Não se pode olvidar, no entanto, aqueles casos em que a guarda de fato por pessoa que não seja parente, exercida até mesmo por tempo superior ao da guarda legal, circunstância que poderá ser verificada após um estudo social preliminar, é fato relevante e merece ser levado em consideração. Em tal caso, seguindo ainda o raciocínio do legislador, pela interpretação analógica, poderia suprimir o estágio referido na lei. Aparentemente há uma verdadeira contradictio in adjecto, pois se tem a impressão que fica descartada a adoção intuitu personae ou a adoção à brasileira, ambas com muita frequência em nossos tribunais.

Se a mãe de criação, não inscrita no cadastro de postulantes à adoção, é detentora da guarda de fato de uma criança e com ela vem convivendo de forma pacífica e harmoniosa, criando todos os vínculos afetivos, sentimentos e promessas de uma convivência digna durante um expressivo período de tempo, ao requerer a adoção deverá a Justiça, obrigatoriamente, determinar a apreensão do menor e encaminhá-lo para um abrigo institucional, rompendo de forma violenta a relação estabelecida? Sempre oportuna a confissão de Steve Jobs ao final da vida de que seus verdadeiros pais foram Clara e Paul, casal que o adotou e com quem manteve uma convivência harmônica.

A criança, que de fato vive razoável tempo com a mãe de criação, já pode ser considerada como um filho. Seria um excesso de preciosismo, desnecessário até, exigir-se como conditio sine qua non a inscrição da candidata no cadastro único criado pela lei. Esta se preocupa, e com razão, em cuidar de casos onde não ocorreu a convivência anterior e não com aqueles em que já há uma definição afetiva devidamente estabelecida. Daí que a adoção intuitu personae, conforme reconhecimento de muitos doutrinadores, continua presente na nova legislação, mesmo que obliquamente.

O afeto que se estabelece na guarda de fato em nada difere daquele concedido judicialmente. Até mesmo pela ausência da chancela judicial os detentores desta guarda vão demonstrar uma carga maior de dedicação, proteção, bondade, apego, ternura, transversalizando e privilegiando a relação interpessoal construída em base sólida. É como se estivesse transitando pelo pensamento de Foucault quando trata do cuidado do outro, fazendo ver a existência de uma ação ética, visando aproveitar as interações e relações emanadas de um ambiente em que se busca a educação, a emancipação, a liberdade e o bem estar do outro.

A ascendência genética, por si só, já não é mais suficiente para determinar a filiação. Pelo contrário, em razão das novas práticas consolidadas no âmbito da dignidade da pessoa e no princípio do melhor interesse da criança, o vínculo da socioafetividade se expandiu e incorporou a contribuição daqueles que participaram da construção dos laços afetivos com a criança.

Tamanho é o reconhecimento da mãe de criação que, mesmo em não sendo caso de adoção, apesar da inexistência de lei específica, nossos tribunais, reiteradamente, vêm autorizando a inclusão de seu nome na certidão de nascimento da criança, juntamente com o nome da mãe biológica. Assim, em igualdades de condições, as duas mães vão se juntar na relevante missão e cumprir a tarefa que lhes foi reservada pela vida e pela lei.

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1 Estatuto da Criança e do Adolescente, lei 12.010/09, art. 46.

2 Art. 46, § 1º da referida lei.

3 Art. 46, § 2º da referida lei.

4 Artigo 50, § 13 da referida lei.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp.


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