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O portador de deficiência visual e o cão-guia, por Eudes Quintino e Pedro Quintino

O portador de deficiência visual e o cão-guia

A lei é um instrumento social de enorme valia. Justifica-se por si só, vez que dita as regras que devem ser observadas no relacionamento entre as pessoas, tudo visando um convívio social harmônico numa sociedade adequadamente ordenada.

domingo, 1 de maio de 2016

Atualizado em 29 de abril de 2016 13:36

O deficiente visual no Brasil, compreendendo a cegueira e a baixa visão, passa por sérias dificuldades na locomoção em nossas cidades, muitas delas antigas, sem sinalização sonora ou no solo, com inúmeros obstáculos arquitetônicos que dificultam sua inclusão social. Daí as novas vias e logradouros públicos, em virtude das recentes legislações, pelo menos nos locais de grande circulação, vão implantando adaptações que venham melhorar a acuidade visual. Muitas vezes o portador de deficiência visual opta pelo uso da bengala, mas as calçadas irregulares, os degraus imprevisíveis e até mesmo os obstáculos de maior porte, como um orelhão, por exemplo, não são alcançados pelo tatear da bengala. E, inevitavelmente, ocorre a queda com graves ferimentos ou quebraduras.

Apesar de se ter notícia que a integração do cão e do homem remonta à própria história da humanidade, o cão-guia teve sua origem logo após a Primeira Guerra Mundial, com o treinamento de cães para acompanhar os soldados veteranos que ficaram cegos. Como os resultados foram positivos a ideia prosperou e, hoje, há escolas com profissionais habilitados para a seleção de cães-guia e responsáveis por um treinamento rigoroso e intensivo para que os animais possam interpretar situações de perigo e conduzir com segurança seu par. No Brasil, um cão adestrado e pronto para o trabalho, segundo a estimativa do jornal Folha de São Paulo (Cotidiano, B-3, edição de 27/4/2016), custa em torno de R$60.000,00, valor acessível para um grupo diminuto de cegos.

A relevância do cão-guia, definido como animal castrado, isento de agressividade, de qualquer sexo, de porte adequado, treinado com o fim exclusivo de guiar pessoas com anomalia visual, ganhou tanta importância que a lei 11.126, de 27/7/2005, regulamentada pelo decreto 5.904, de 21/9/2006, conferiu o direito do portador de deficiência visual de ingressar e permanecer em ambientes de uso coletivo acompanhado de cão-guia. Isto quer dizer, em consonância com a cidadania plena apregoada pela Constituição Federal, que a pessoa usuária de cão-guia tem o direito de ingressar e permanecer com o animal nos veículos, compreendendo todas as modalidades de transporte interestadual e internacional com origem no território brasileiro, e nos estabelecimentos públicos e privados de uso coletivo. Nada mais é do que a celebração do princípio da isonomia. O desrespeito sujeitará o infrator às sanções penais, cíveis e administrativas cabíveis e no caso de se impedir ou dificultar o ingresso e a permanência do usuário do cão guia nos locais já referidos, ou de condicionar o acesso à separação da dupla, a multa prevista vai de R$1.000,00 a R$30.000,00.

É de se ressaltar também, com pena aplicação à matéria ora estudada, que o desrespeito também atinge as medidas protetivas previstas na Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Pessoas Portadoras de Deficiência, homologada pelo Brasil pelo decreto 3.956, de 08/10/2001.

A lei é um instrumento social de enorme valia. Justifica-se por si só, vez que dita as regras que devem ser observadas no relacionamento entre as pessoas, tudo visando um convívio social harmônico numa sociedade adequadamente ordenada. A lei é ordem e uma boa lei é uma boa ordem, já sentenciava Aristóteles. Assim, na realidade, in casu, a lei mira o portador de deficiência física e estabelece condições para sua proteção, fazendo com que o intérprete busque corretamente sua finalidade social. Para tanto, deve penetrar no conteúdo da norma e direcioná-la para os objetivos pretendidos.

Muitas vezes este direito é contestado, com infringência frontal à lei, principalmente por comerciantes da área de alimentação, que desconhecem o teor da lei, ou mesmo a conhecendo, com receio de causar certo constrangimento aos seus clientes, permitem somente a entrada do portador de deficiência visual. Esquecem, no entanto, que o animal está executando um trabalho para o qual foi habilmente preparado e eventual proibição ou separação constitui discriminação e importa em violação dos direitos humanos, passível de danos materiais e morais fixados em ação própria perante o Judiciário, de acordo com o regramento civil.

Nossos tribunais, de todas as instâncias, de forma reiterada, vêm decidindo neste sentido:

APELAÇÃO AÇÃO INDENIZATÓRIA DEFICIENTE VISUAL DISCRIMINAÇÃO IMPOSIÇÃO DE DIFICULDADE DE ACESSO DE CÃO-GUIA PROTEÇÃO À PESSOA COM DEFICIÊNCIA TUTELA CONSTITUCIONAL E SUPRALEGAL PREVISÃO LEGAL APLICAÇÃO IMEDIATA VIOLAÇÃO DE GARANTIA ASSEGURADA POR LEI (ESTADUAL) DANOS MATERIAIS E MORAIS1

É também conhecida a decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo que conferiu à advogada Thays Martinez, com deficiência visual desde os quatro anos, o direito de usar o metrô acompanhada se seu cão-guia2. É ela também autora do livro intitulado "Minha vida com Boris", que é seu cão-guia, da raça Labrador (Livraria Cultura). Além de relatar as dificuldades enfrentadas por uma pessoa deficiente visual, sublima de forma carinhosa a amizade que nutre por Boris, que passou a ser seu inseparável companheiro.

O animal, preparado para uma missão tão nobre, passa a ser uma extensão do corpo do deficiente visual, integrando-se a ele como o L'Oeil qui Voit ou como dizem os americanos, The Seeing Eye. Na realidade, apesar de se apresentarem como uma dupla, formam um só conjunto, com movimentos harmônicos e coerentes, num silêncio quase que indizível, num linguajar expressivo que se lê pelo leve contato corporal, e ao som de suave comando de voz caminham com mesma naturalidade do pacato cidadão. Para tanto, o cão-guia, com o equipamento obrigatório, composto por coleira, guia e arreio com alça, portará também sua identificação e seu condutor deverá exibir, quando solicitado, documento comprobatório do registro da escola de cães-guia, acompanhado do atestado de vacina e sanidade do animal.

A tarefa do cão de assistência indiscutivelmente possibilita o resgate da dignidade da pessoa portadora de deficiência visual, para que ela possa ter a dimensão projetada não só pela lei, mas pela própria condição de ser humano, na realização de sua plena cidadania.

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1 (Relator(a): Maria Lúcia Pizzotti; Comarca: São Paulo; Órgão julgador: 20ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 27/5/2013; Data de registro: 29/5/2013; Outros números: 7224918000)

2 Folha de S. Paulo.

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*Eudes Quintino de Oliveira Júnior é promotor de Justiça aposentado, mestre em Direito Público, pós-doutorado em Ciências da Saúde. Advogado e reitor da Unorp.





*Pedro Bellentani Quintino de Oliveira, mestrando em Direito pela Unesp/Franca, pós-graduando em Direito Empresarial pela FGV/São Paulo, advogado.



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