Revisão de parcelas em contratos de mútuo deve observar a lei vigente ao tempo da contratação
Entendimento do TJ/SP afasta aplicação de Lei Federal mormente dedicada a trabalhadores do regime celetista, privilegiando cooperativas de crédito que atuam com boas práticas e estrita observância à legislação estadual vigente.
quarta-feira, 20 de abril de 2016
Atualizado às 14:37
É crescente o número de ações judiciais que objetivam a revisão contratual de parcelas decorrentes de contratos de empréstimo consignado em folha de pagamento. Especificamente no Estado de São Paulo, as cooperativas de crédito de algumas classes de servidores públicos têm figurado constantemente no polo passivo de algumas dessas ações.
Na defesa dos interesses da Cooperativa de Economia e Crédito Mútuo dos Policiais Militares e Servidores da Secretaria dos Negócios da Segurança Pública do Estado De São Paulo - COOPMIL, temos observado comumente, decisões que aplicam entendimento destoante da legislação aplicável ao caso, principalmente no que tange a vigência dos dispositivos legais que norteiam as demandas.
Inicialmente, cumpre esclarecer que por se tratarem de servidores públicos civis e militares do Estado de São Paulo, existe ordenamento jurídico específico que leciona acerca da limitação dos descontos em folha de pagamento. O Decreto Estadual nº 60.435, de 13/5/2014, dispõe em seu artigo 2º, item 5 que a limitação em comento não poderá superar o percentual de 30% sobre os rendimentos líquidos do servidor, não existindo controvérsia quanto a tal patamar.
Muito embora o entendimento dos tribunais já esteja pacificado quanto a aplicação dos 30%, por vezes, o disposto no artigo 26 do antedito Decreto tem sido deixado à margem em algumas Decisões. Vejamos o que disciplina o referido artigo:
Artigo 26 - Este decreto entra em vigor na data de sua publicação, produzindo efeitos após 90 (noventa) dias da data de sua publicação, ressalvados os convênios firmados anteriormente e revogadas as disposições em contrário, em especial o Decreto nº 51.314, de 29 de novembro de 2006.
Nos termos do artigo supratranscrito, o Decreto nº 60.435/2014 é aplicável apenas aos contratos firmados a partir da publicação do novel diploma, estando expressamente previsto que em relação aos contratos anteriores a legislação aplicável é o Decreto Estadual nº 51.314/2006.
Por seu turno, o diploma anterior, vigente até 11/8/2014 (90 dias após a publicação do Dec. Nº 60.435/2014), previa a limitação dos descontos a título de empréstimo consignado em um percentual de 50% sobre os rendimentos líquidos dos servidores, senão vejamos:
Artigo 6º - As consignações não poderão exceder, em sua totalidade, a 50% (cinqüenta por cento) dos vencimentos, proventos, soldos ou pensão do servidor público civil ou militar, ativo, inativo ou reformado ou do pensionista da administração direta e autárquica. Nesse sentido, a 19ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, ao julgar Agravo de Instrumento interposto por esta banca, em face de Decisão que antecipou a tutela para limitar os descontos em apenas 30%, aplicou com brilhantismo o critério temporal das normas sobre o tema, ao julgar demanda movida em desfavor da COOPMIL com o fito de reduzir os descontos referentes a empréstimos contratados com a cooperativa. Vide: Agravo de instrumento - Contratos de mútuo - Ação cominatória - Decisão deferindo os benefícios da gratuidade da justiça à autora e concedendo a antecipação de tutela, para limitar os descontos das parcelas dos mútuos a 30% dos vencimentos brutos - Recurso não merecendo ser conhecido na passagem em que pretende a revogação da gratuidade da justiça concedida à autora - Impugnação reclamando a instauração de incidente próprio (Lei 1.060/50, art. 7º e parágrafo único) - Irresignação parcialmente procedente quanto ao mais - Pretensão à limitação dos descontos não se restringindo ao chamado crédito consignado em folha de pagamento - Precedentes - Autora, porém, pensionista de regime especial, do serviço público do Estado de São Paulo - Disciplina de consignações referentes aos servidores públicos do Estado de São Paulo estabelecida pelo Decreto Estadual 51.314/06, este fixando em 50% o limite dos descontos em folha - Diferenciação de trato encontrando explicação no fato da maior estabilidade na relação de trabalho entre o servidor e a Administração Pública - Maior limite de endividamento que, por outro lado, confere ao servidor vantagens no ato da contratação, seja por lhe permitir melhores taxas de juros, seja por lhe possibilitar a obtenção de maiores empréstimos - Quadro diante do qual nada justifica atribuir ao servidor público o mesmo limite estabelecido pela lei ao empregado celetista, em 30%, também à luz do princípio da boa-fé objetiva, vale dizer, o da ética que os contratantes devem guardar no ato da celebração e da execução do negócio jurídico - Contrato de mútuo celebrado com a ré, ora agravante, iniciado antes da vigência da nova disciplina sobre o tema, oriunda do Decreto Estadual nº 60.435, de 15.5.14 - Prestações do referido mútuo não suplantando 50% dos rendimentos líquidos da autora - Contrato, ademais, celebrado em época na qual era integral (50%) a chamada margem consignável da autora - Incabível a pretendida limitação.
Agravo conhecido em parte e, nessa parte, provido. (Relator(a): Ricardo Pessoa de Mello Belli; Comarca: São José do Rio Preto; Órgão julgador: 19ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 7/3/2016; Data de registro: 18/3/2016)
Em sentido contrário ao Acórdão em comento, algumas Decisões do próprio Tribunal de São Paulo têm admitido a limitação em 30% sobre os rendimentos do servidor, encontrando amparo sob o pálio da Lei Federal nº 10.820/2003, esta, aplicada por analogia, uma vez que dispõe especificamente acerca de empréstimos de trabalhadores contratados sob o regime celetista, conforme estabelecido em seu artigo 1º.
Sob esse aspecto, em seu voto, o Eminente Relator do Acórdão supra esclarece que a Lei Federal não deve ser aplicada pelo fato de que o servidor público, diversamente do celetista, apresenta estabilidade na relação de trabalho existente entre ele e a Administração Pública, sendo assim, pode dispor de maior parte de seu salário, a seu critério, uma vez que o fantasma do desemprego não o assombra.
Ademais, por ser funcionário público, e mais, associado à Cooperativa de Crédito (COOPMIL), gaza de um acesso a taxas de juros mais vantajosas do que as disponíveis para trabalhadores celetistas, e consequentemente, maior número de contratações e valores de empréstimos.
Importante ainda mencionar que o Acórdão da 19ª Câmara está em perfeita consonância com o entendimento do Colendo Superior Tribunal de Justiça, que já analisou questão semelhante:
AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 696.612 - SP (2015/0087856-6) RELATOR : MINISTRO HERMAN BENJAMIN AGRAVANTE : NILVA BAPTISTA DE CARVALHO SILVA ADVOGADO : MARIA LUIZA MICHELAO PENASSO E OUTRO (S) AGRAVADO : BANCO NOSSA CAIXA S/A ADVOGADO : EDUARDO JANZON AVALLONE NOGUEIRA E OUTRO (S) DECISÃO Trata-se de Agravo de decisão que inadmitiu Recurso Especial (art. 105, III, a e c, da CF) contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo assim ementado (fl. 285, e-STJ):
AGRAVO REGIMENTAL - Ação ordinária - Empréstimo consignado em folha de pagamento - Servidora pública estadual - Aplicação do Decreto Estadual nº 51.314/06, que prevê a limitação dos descontos a 50% dos vencimentos do servidor-Agravo regimental negado. Não houve interposição de Embargos de Declaração.
[...]
Sobre a situação fática posta nos autos, o Tribunal bandeirante consignou (fl. 286, e-STJ): A decisão foi clara ao reconhecer que em se tratando de servidor público estadual no Estado de São Paulo, a referida modalidade de contrato é regulamentada pelo Decreto nº 51.314/2006, que limita a margem de consignação no patamar de 50% do salário do devedor. Assim, sendo a autora funcionária pública estadual, incide a regra específica do Decreto nº 51.314/2006, de forma que os descontos em folha de pagamento devem ser limitados a 50% (cinquenta por cento) dos seus vencimentos. (...). Por isso, em que pese a possibilidade de o banco credor debitar na conta corrente e folha de pagamento da autora as prestações referentes aos empréstimos por ela contraídos, tais descontos deveriam limitar-se a 50% dos seus vencimentos líquidos percebidos pela requerente. Não se pode conhecer da insurgência contra a ofensa do art. 649, IV, do CPC, pois os referidos dispositivos legais não foram analisados pela instância de origem.
[...]
(...) Agravo regimental improvido. (AgRg no AREsp 500.308/MG, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, DJe 27/6/2014). Ante o exposto, com fulcro no art. 544, § 4º, II, b, do Código de Processo Civil, nego provimento ao Agravo. Publique-se. Intimem-se. Brasília (DF), 12 de maio de 2015. MINISTRO HERMAN BENJAMIN Relator.
(STJ - AREsp: 696612 SP 2015/0087856-6, Relator: Ministro HERMAN BENJAMIN, Data de Publicação: DJ 19/6/2015). Sem grifos no original.
Sob esse aspecto, a controvérsia existente em relação da aplicação da Lei Federal nº 10.820/2003 deve ser afastada pelo critério da especificidade, uma vez que existe diploma específico para a aplicação nos casos em que figurarem como beneficiários de empréstimo os servidores públicos de São Paulo.
Desta forma, o entendimento da 19ª Câmara do Egrégio Tribunal Bandeirante deu lídimo entendimento à aplicação do critério temporal da legislação aplicável aos servidores públicos do Estado de São Paulo, afastando ainda a aplicação de Lei Federal mormente dedicada a trabalhadores do regime celetista, privilegiando assim as cooperativas de crédito que atuam com boas práticas e estrita observância à legislação em vigência.
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*Saulo Costa Magalhães é advogado associado do escritório Nelson Wilians & Advogados Associados.