PL do Senado propõe solucionar conflitos decorrentes da extinção dos contratos de compra e venda, mas fere direitos dos consumidores, além de divergir de jurisprudência do TJ/SP
Texto, no entanto, diverge de jurisprudência do STJ.
sexta-feira, 8 de abril de 2016
Atualizado em 7 de abril de 2016 15:05
Recentemente fomos surpreendidos com o PLS 774/15, de relatoria do senador Romero Jucá, que pretende alterar a lei 4.591/64, conhecida como a lei de incorporação imobiliária, para inclusão do art. 67-A naquele diploma legal. Segundo consta do site do Senado Federal, a proposta encontra-se na pauta da Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania.
O projeto tem por objetivo, sobretudo, encerrar as discussões que envolvem o percentual de retenção dos valores pagos pelos consumidores em caso de distrato ou resilição unilateral.
Tal como se sabe, a maioria dos contratos de venda e compra de imóveis firmado entre construtoras e consumidores possui cláusula contratual asseverando que, havendo distrato entre as partes ou resilição unilateral pelo consumidor sem culpa da construtora, parte do pagamento (normalmente um percentual de 30%) poderá ser retido pela empresa pelos "prejuízos indiretos" na extinção do contrato. Além disso, caso a unidade já tenha sido entregue ao consumidor, também é estabelecida no contrato a possibilidade de ser calculado um valor decorrente do período em que o adquirente ocupou o imóvel, valor que também poderá ser descontado da totalidade paga.
A cláusula contratual que autoriza a retenção dos valores pelos prejuízos indiretos e ocupação no imóvel é tida como válida pela jurisprudência de São Paulo. Nesse sentido, a Seção de Direito Privado do TJ/SP editou a Súmula 1 que assevera ser admitida a "compensação com gastos próprios de administração e propaganda feitos pelo compromissário comprador, assim como o valor que se arbitrar pelo tempo de ocupação do bem".
A respeito do valor decorrente do período em que ocupou o bem, os julgados normalmente fixam o percentual de 0,5% (meio por cento) do valor venal do bem.1 Já no tocante ao percentual de retenção dos valores pagos pelos prejuízos indiretos, embora normalmente os contratos estabeleçam o percentual de 30%, a jurisprudência entende referido percentual elevado, reduzindo-o normalmente a um patamar de 10%2 a 20%3. Ressalte-se, contudo, que há casos excepcionais que, admitindo o momento de crise que atravessa o mercado imobiliário, permitiu a retenção de 40%4.
Pois bem.
Em razão da ausência de um percentual fixo para a retenção dos valores na jurisprudência, o projeto prevê que "em caso de desfazimento do contrato, seja mediante distrato ou resolução por inadimplemento de obrigação do adquirente, este fará jus à restituição das quantias que houver pago diretamente ao incorporador" (art. 67-A). A respeito das deduções, o PLS determina que a retenção dos valores não poderá exceder a 25% das quantias pagas.
Embora sejam raros os casos em que a jurisprudência admite uma retenção num percentual tão elevado, até aqui nenhum grande problema.
Da mesma forma, caso o consumidor tenha recebido as chaves, em caso de extinção do contrato, o projeto prevê que o adquirente responderá pelo (i) pagamento dos impostos reais incidentes sobre o imóvel (art. 67-A, § 3º, inciso I); (ii) cotas de condomínio e contribuições devidas a associação de moradores (art. 67-A, § 3º, inciso II); (iii) valor correspondente à fruição do imóvel, "calculado de acordo com critério pactuado no contrato ou, na falta de estipulação, fixado pelo juiz em valor equivalente ao de aluguel de imóvel do mesmo padrão do objeto do contrato" (art. 67-A, § 3º, inciso III) e, por fim, (iv) demais encargos incidentes sobre o imóvel e despesas previstas no contrato (art. 67-A, § 3º, inciso IV).
Como visto, as deduções acima listadas são permitidas pela jurisprudência. É possível imaginarmos, inclusive, que a depender do período em que o consumidor ocupou o imóvel, este acabe não tendo qualquer crédito para ser levantado, deixando, inclusive, um saldo devedor em favor da construtora.
Ocorre que, na maioria dos casos, os consumidores desistem antes mesmo do recebimento das chaves. Isso porque o maior motivo para a extinção dos contratos decorre do fato do consumidor não conseguir a obtenção do financiamento prometido ou, ainda, mesmo tendo obtido a concessão do financiamento, ficar receoso quanto as condições de honrar suas obrigações.
Nessas hipóteses, entre a assinatura do contrato e a desistência, poucos meses são transcorridos e a obra sequer foi entregue. Possivelmente o adquirente já pagou uma entrada diretamente à construtora, tendo pago, também a comissão de corretagem. A respeito da comissão de corretagem, interessante verificar que o projeto assevera que, em caso de extinção contratual, os valores não serão devolvidos.
Ocorre que o próprio STJ discute a validade ou não da cláusula que obriga o adquirente ao pagamento da comissão de corretagem adquirido no estande de vendas, tendo determinado, inclusive, a suspensão de todas as ações que versem sobre tal matéria5 (REsp 1.551.956). A questão, portanto, encontra-se sub judice.
Mas o mais grave certamente é a determinação do § 5º, do art. 67-A, do Projeto. Segundo tal dispositivo, realizados os cálculos das retenções devidas e havendo saldo remanescente aos consumidores, "o pagamento será realizado em três parcelas mensais e subsequentes, vencendo-se a primeira após um prazo de carência de doze meses, contados da data do desfazimento do contrato" (art. 67-A, § 5º).
A determinação é absolutamente abusiva. Assim, havendo saldo remanescente, o consumidor devolveria imediatamente a unidade, autorizando que o construtor realize a venda a terceiros, mas apenas poderá receber parte do que pagou após um ano da assinatura do distrato, com a ressalva de que o crédito seria pago em três parcelas.
A determinação fere uma série de direitos dos consumidores. Resta asseverar que a jurisprudência do TJ/SP, atenta a tal conduta por parte de algumas empresas, editou a súmula nº 2, onde assevera que "a devolução das quantias pagas em contrato de compromisso de compra e venda de imóvel deve ser feita de uma só vez, não se sujeitando à forma de parcelamento prevista para a aquisição".
Assim, cremos que o projeto não será aprovado, porque fere uma série de direitos dos adquirentes, além de confrontar julgados já sólidos dos Tribunais Estaduais.
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1 Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação nº 0033709-49.2012.8.26.0602, Rel. Carlos Alberto Garbi, j. 8 de Março de 2016.
2 Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação nº 3003786-27.2013.8.26.0428, Rel. Alexandre Coelho, j. 16 de Março de 2016.
3 Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação nº 1000761-24.2015.8.26.0152, Rel. Mary Grün, j. 23 de Março de 2016.
4 "REMUNERAÇÃO DA COMISSÃO DE CORRETAGEM. Documentos expedidos no ato da compra que discriminam todos os valores devidos pelo autor a título de comissão de corretagem. Cobrança não abusiva, porquanto pactuada. Remuneração devida. [...] RETENÇÃO DE 40% DOS VALORES PAGOS. Razoabilidade, no caso concreto. Desfazimento do negócio por iniciativa do autor, sob o argumento de que não tem mais condições de efetuar o pagamento das parcelas. Desistência em momento de grave recessão do mercado imobiliário e notória desvalorização dos imóveis. Valor destinado a cobrir as despesas administrativas suportadas pela ré. Recurso parcialmente provido. (Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação nº 1003703-87.2015.8.26.0068, Rel. Hamid Bdine, j. 10 de Setembro de 2015).
5 Determinada suspensão do trâmite das ações de corretagem em todo o Brasil.
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*Alexandre Gomide é sócio da banca Junqueira Gomide & Guedes Advogados Associados, especializada em Direito Imobiliário.