Reexame necessário: hipóteses de cabimento no CPC/15
O art. 496 enuncia duas hipóteses de cabimento do reexame de ofício que podem ser reconduzidas a uma. No inciso I, mencionam-se as sentenças contrárias à Fazenda Pública. No inciso II, alude-se às sentenças de procedência de embargos à execução fiscal.
terça-feira, 15 de março de 2016
Atualizado às 06:45
1. Sentenças contrárias à Fazenda Pública
A diretriz estabelecida pelo Código de Processo Civil é a da observância da remessa necessária de sentenças contrárias à União, Estados, Municípios e Distrito Federal, bem como suas autarquias e fundações de direito público (essas últimas, a rigor, também têm natureza de autarquia). Trata-se das pessoas jurídicas de direito público interno (C. Civ., art. 41), às quais tradicionalmente se confere a denominação de "Fazenda Pública".
Portanto, em regra, a remessa necessária não se aplica a pessoas jurídicas de direito privado, nem mesmo àquelas que integram a Administração Pública indireta, como é o caso de empresas públicas e sociedades de economia mista. Exceções podem ser estabelecidas por leis esparsas (v. alguns exemplos adiante).
O art. 496 enuncia duas hipóteses de cabimento do reexame de ofício que podem ser reconduzidas a uma. No inciso I, mencionam-se as sentenças contrárias à Fazenda Pública. No inciso II, alude-se às sentenças de procedência de embargos à execução fiscal. Ocorre que a execução fiscal apenas pode ser promovida por entes da Fazenda Pública. Daí que as sentenças de procedência dos embargos à execução fiscal sempre são contrárias à Fazenda Pública. Ou seja, a hipótese do inciso II já estaria abrangida pela do inciso I.
2. Exceções
Mas não é toda sentença desfavorável à Fazenda Púbica que se submete à remessa necessária. Os §§ 3.º e 4.º do art. 496 estabelecem exceções de duas distintas ordens.
A primeira consiste em um limite quantitativo, de dimensão econômica (art. 496, § 3.º). Não há remessa necessária de sentenças cuja condenação ou proveito econômico para o vitorioso tenha valor certo e líquido de até: (I) mil salários mínimos, quando contrárias à União e respectivas autarquias e fundações; (II) quinhentos salários mínimos, quando contrárias aos Estados, o Distrito Federal, as respectivas autarquias e fundações ou os Municípios que constituam capitais dos Estados; e (III) cem salários mínimos, no caso de todos os demais municípios e respectivas autarquias e fundações. O CPC/15, ao prever expressamente que o valor deve ser líquido, recepcionou orientação do STJ já sumulada, no sentido de que as hipóteses de dispensa da remessa necessária por limite de valor somente incidem quando for líquida a sentença (Súmula 490).
A segunda exceção concerne a um limite qualitativo, de consonância da sentença com orientação jurisprudencial ou administrativa assente (art. 496, § 4.º). Assim, não se submeterão ao reexame necessário as sentenças em concordância com: (I) acórdão proferido em procedimento de resolução de recursos repetitivos no STF ou STJ, (II) súmula de tribunal superior, (III) entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência ou (III) entendimento que esteja em conformidade com orientação vinculante firmada no âmbito administrativo do próprio ente público, consolidada em manifestação, parecer ou súmula administrativa.
3. A inexistência do recurso - O conhecimento e a extensão do recurso
No Código anterior, nas hipóteses de reexame de ofício, determinava-se que o juiz remetesse o processo para o tribunal, houvesse ou não apelação (art. 475, § 1.º). No CPC/15, o dever de remessa está limitado aos casos em que não houver apelação.
A regra é em certa medida compreensível: se a Fazenda Pública já recorreu, fazendo com isso que o pronunciamento vá ao reexame do tribunal, é desnecessária a sobreposição de medidas. Mas merece ressalvas:
(1ª) o recurso interposto pela Fazenda Pública pode ser parcial, ou seja, não atingir todo o objeto de sua sucumbência na causa. Por exemplo, ela foi condenada a pagar dez milhões e recorre apenas pedindo a redução da condenação para seis milhões. Contra uma parte da condenação, de seis milhões, não há impugnação recursal. Contra essa parcela - e ressalvada a hipótese do art. 496, § 4.º -, impõe-se reexame de ofício;
(2ª) o recurso interposto pela Fazenda não é conhecido, por falta de cumprimento dos pressupostos de admissibilidade recursal. A hipótese equivale à de não-interposição de recursos, para o fim de definição do cabimento do reexame necessário. O recurso interposto, por não preencher os pressupostos de admissibilidade, não permitirá o reexame da solução dada ao mérito da causa. Então, terá de haver reexame de ofício - observados os limites dos §§ 3.º e 4.º do art. 496.
4. O reexame necessário na ação monitória
A ação monitória é um procedimento especial de processo de conhecimento em que, em determinadas condições, a tutela jurisdicional condenatória pode ser produzida independentemente de sentença: a própria decisão inicial do juiz, fundada em cognição sumária, constituirá título executivo judicial, se o réu não opuser embargos monitórios (art. 700 e seguintes). Quando for ré a Fazenda Pública, se ela não interpuser tais embargos, não haverá a imediata formação do título executivo. Ressalvados os limites dos §§ 3.º e 4.º do art. 496, haverá reexame necessário, para só depois, se houver confirmação da decisão pelo tribunal, formar-se o título executivo (art. 701, § 4.º).
Trata-se, portanto, de caso em que o reexame necessário não incide sobre sentença, mas sobre decisão interlocutória.
5. Duas hipóteses ainda controvertidas quanto ao cabimento da remessa necessária
Mas não é apenas no procedimento monitório que uma decisão interlocutória pode vir a produzir resultado estável contra a parte sucumbente. Há pelos menos outros dois casos no Código, relativamente aos quais não há regra expressa quanto à remessa necessária.
A decisão concessiva de tutela antecipada antecedente pode estabilizar-se, quando não for objeto de recurso (art. 304). Nessa hipótese, não fará coisa julgada (art. 304, § 6.º), mas produzirá efeitos por tempo indeterminado. Sua desconstituição depende de nova ação, com prazo decadencial de dois anos (art. 304, §§ 2.º, 3.º e 5.º). Discute-se se tal decisão que concede tutela antecipada em caráter antecedente submeter-se-ia à remessa necessária, quando não houvesse agravo contra ela. A questão ainda está em aberto, mas parece que a resposta deve ser negativa. O caráter excepcional da regra do reexame necessário não autoriza sua interpretação ampliativa. Não hipótese, não se tem a solução do conflito mediante cognição exauriente, mas apenas a estabilização de resultados práticos, ainda revisáveis. A submissão ao reexame necessário dependeria de regra expressa, como há na ação monitória. Questão outra reside em saber se, não havendo recurso da Fazenda Pública, sempre se estabilizará a tutela antecipada contra ela concedida em caráter antecedente.
O segundo caso é ainda mais delicado. O art. 356 autoriza o juiz a julgar antecipadamente parte do mérito da causa, remetendo a restante à instrução probatória. Nessa hipótese, tem-se a solução da causa mediante cognição exauriente e apta a fazer coisa julgada (art. 502), mas veiculada em decisão interlocutória, conforme exposto em mais de um texto publicado nesta série. Pela letra do art. 496, não seria caso de reexame necessário, aplicável apenas à "sentença". Mas aqui parece mais difícil rejeitar o reexame de ofício apenas se invocando o princípio hermenêutico de que exceções devem ser interpretadas estritamente. A rigor, trata-se de pronunciamento com a mesma eficácia e autoridade que a sentença de mérito (diferentemente da decisão da tutela antecipada antecedente). Apenas o veículo formal do pronunciamento é outro: decisão interlocutória em lugar de sentença. Nessa ordem de ideias, não faria sentido que uma sentença condenatória contra um município (não capital de Estado) no valor de cem salários mínimos se submetesse ao reexame e outra condenação, no valor de cinco mil salários mínimos, contra esse mesmo município (eventualmente até no mesmo processo), não se submetesse apenas porque veiculada em interlocutória... Mas existe ainda outro argumento contrário ao reexame obrigatório nessa hipótese. Estabeleceu-se para a decisão interlocutória de mérito do art. 357 um regime de eficácia mais intenso do que o da própria sentença final. A interlocutória de mérito, em princípio, é desde logo eficaz, pois o recurso cabível contra ela, o agravo de instrumento (arts. 356, §§ 2.º e 5.º, e 1.015, II), não tem efeito suspensivo automático (art. 995) - diferentemente da sentença final, que é objeto de apelação, que em regra tem efeito suspensivo (art. 1.012). Some-se a isso a previsão de "dispensa" de caução para a execução provisória - disposição cujo exato sentido também é controverso, mas que também sugere alguma especial eficácia da decisão em questão. A ausência de reexame estaria em consonância com esse contexto. A questão ainda precisará ser amplamente debatida pela doutrina e os tribunais - até que se consolide uma orientação.
6. Previsões de remessa necessária em leis esparsas
Existem ainda outras hipóteses de cabimento da remessa necessária que estão previstas em legislação extravagante. É o que se dá, por exemplo, com as sentenças concessivas de mandado de segurança (art. 14, § 1.º, da Lei 12.016/2009) e as sentenças que extinguem a ação popular por carência de ação ou improcedência do pedido (art. 19 da Lei 4.717/1965).
O novo Código não revogou essas regras.
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*Eduardo Talamini é advogado, sócio do escritório Justen, Pereira, Oliveira & Talamini - Advogados Associados. Livre-docente em Direito Processual (USP). Mestre e doutor (USP). Professor da UFPR.