A suspensão do fornecimento de energia em unidades inadimplentes que prestam serviços de saúde
Não se pode admitir o corte indiscriminado de serviços essenciais, mas também não se pode admitir que uma unidade consuma pesada carga de energia sem a contraprestação devida, onerando todos os demais usuários.
sexta-feira, 4 de março de 2016
Atualizado às 14:13
Inicialmente, é prudente afirmar que este texto não pretende, em hipótese alguma, relegar a segundo plano direitos essenciais como a saúde e a vida.
O objetivo é, tão somente, tentar demonstrar que, exatamente por impactar em importantes direitos, a suspensão do fornecimento de energia elétrica àquelas unidades consumidoras que prestem serviços essenciais à população passa por um procedimento diferenciado.
Ademais, é sabido que a esmagadora jurisprudência milita em favor da impossibilidade de suspensão do fornecimento de energia elétrica nestes casos, o que vem a reforçar o intuito deste trabalho, que é o de passar breves ideias, no sentido de instigar um pouco o debate.
Em nosso sentir, numa interpretação apenas parcial do sistema, se considera que a interrupção do fornecimento de energia desconsidera direitos fundamentais consagrados na Constituição.
Argumenta-se que, ante a relevância dos serviços de saúde, prestados tanto pelo Poder Público, quanto por particulares, o princípio da continuidade do serviço deveria ser absoluto, afastando-se prejuízos ao atendimento da população.
Data máxima venia, a suspensão do fornecimento de energia a unidades ligadas à prestação do serviço de saúde não afronta princípios constitucionais, tampouco vai de encontro ao interesse da coletividade.
É exatamente para evitar prejuízos à população que, nos casos de serviços essenciais (vg. iluminação pública, saúde, educação), o procedimento legal previsto exige cautelas adicionais. Vê-se que o artigo 17 da lei 9.427/96 estabelece medidas a serem tomadas pelo Poder Público em caso de aviso de suspensão direcionado à unidade que presta serviço essencial, o que não afasta, em paralelo o dever de se exigir judicialmente dos responsáveis pelo débito o cumprimento de tal obrigação.
Ora, no prazo concedido pela norma seguida pelas concessionárias, o responsável pela unidade que presta serviço essencial pode adotar variadas condutas para resguardar o interesse público. Cita-se, como exemplo, o próprio pagamento. Outra medida que pode ser adotada pela unidade consumidora é a instalação de geradores, caso não seja do seu interesse continuar com o fornecimento de energia da distribuidora.
Não se pode admitir o corte indiscriminado (claro) mas também não se pode admitir que uma unidade consuma pesada carga de energia sem a contraprestação devida, onerando todos os demais usuários.
Exatamente para não haver corte indiscriminado é que a União estabeleceu um procedimento prévio que garante a comunicação aos responsáveis pela dívida, que deverão adotar condutas para evitar prejuízos à coletividade, dentre as quais citamos, a título exemplificativo: transferência de pacientes, renegociação ou pagamento da dívida, instalação de geradores.
Repita-se: não se relega a segundo plano direitos essenciais como saúde e vida mas - com total respeito às diversas opiniões em contrário - o enfoque poderia ser diferente, no sentido de reconhecer a responsabilidade dos gestores de unidades que prestam serviços essenciais, obrigando-os a honrar com os custos inerentes a tais serviços, sob pena de responsabilização.
A atuação das concessionárias no sentido de não prejudicar a vida e saúde dos cidadãos resta consolidada em várias medidas contributivas adotadas e, especificamente quanto ao fornecimento de energia, cristaliza-se na medida em que as concessionárias não realizam suspensões de fornecimento de forma indiscriminada, antes seguindo um rígido procedimento, que objetiva alertar as autoridades para a inadimplência, dando condições para que se evite a medida drástica. A resolução normativa Aneel 414/10 retrata bem a diferenciação de procedimentos.
Exatamente pela importância dos serviços essenciais é que não se pode tolerar qualquer mau uso de recursos, como também não se tolera a corrupção, a incompetência administrativa, a má-fé dos que gerem esses serviços.
Nossa lei maior, ao descrever os fundamentos do Estado Democrático de Direito (art. 1º), traz a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político.
Em seguida, no artigo 3º, são vistos os objetivos fundamentais da República: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Os núcleos informativos e básicos de todo o sistema jurídico nacional gravitam necessariamente em torno dos princípios erigidos pelos representantes da sociedade à condição de fundamentais.
No capítulo dos princípios gerais da atividade econômica, o Constituinte apontou o direcionamento desejado para a prestação dos serviços públicos, notadamente quanto à competência do legislador ordinário em aprovar leis regulamentando a referida atividade (art. 175).
Ou seja, essa previsão de regulamentação da prestação dos serviços públicos, pela própria necessidade de detalhamento (que não se justificaria numa carta constitucional), desde que siga a principiologia delimitada pelo Constituinte, não haveria de ser questionada sem que se cogite de alterações no cenário constitucional atualmente vigente, ou mesmo a invasão de um Poder (Judiciário) na esfera de outros (Legislativo e Executivo).
George Marmelstein1 cita que o STF, assinalando a possibilidade de limitação dos direitos fundamentais, decidiu que não há, no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto.
Para Alexandre de Morais, "os direitos e garantias fundamentais consagrados pela Constituição Federal não são ilimitados, uma vez que encontram seus limites nos demais direitos igualmente consagrados pela carta Magna (princípio da relatividade)"2.
Eros Roberto Grau, na obra "A ordem econômica na Constituição de 1988"3, com toda propriedade alerta:
Aqui devo salientar, contudo, inicialmente, que, assim como jamais se interpreta um texto normativo, mais sim o Direito, não se interpretam textos normativos constitucionais, isoladamente, mas sim a Constituição, no seu todo.
Não se interpreta a Constituição em tiras, aos pedaços.
A interpretação de qualquer texto normativo da Constituição impõe ao intérprete, sempre, em qualquer circunstância, o caminhar pelo percurso que se projeta a partir desse texto até a Constituição.
A Constituição, no seu artigo 1º, erigiu a princípio fundamental não só a dignidade da pessoa humana (inc. III), como também os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (inc. IV).
Na medida em que o artigo 175 da CF/88, no parágrafo único, transfere à lei a disposição sobre os direitos dos usuários (inc. II) e o legislador ordinário, por intermédio das leis 8.987/95 e 9.427/96, seguidas pela resolução normativa Aneel 414/10, considerando os interesses da coletividade (inclusive a dignidade da pessoa humana, o direito à vida e à saúde) estabelece um procedimento diferenciado para a suspensão do fornecimento de unidades que prestem serviços ligados à saúde, não se encontra razão para afirmar que o exercício de tal direito pela distribuidora de energia seria fundado em normas inconstitucionais ou ilegais.
Afinal de contas, "os serviços públicos têm uma conotação coletiva muito mais ampla que as atividades econômicas privadas. Visam à coesão social, sendo muitas vezes um instrumento técnico de distribuição de renda e realização da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF), com o financiamento, através das tarifas dos usuários que já têm o serviço, da sua expansão aos que ainda não têm acesso a ele".4
Não é a suspensão do fornecimento de energia, na forma estabelecida pela resolução da Aneel (que garante procedimento prévio para possibilitar a adoção de medidas tendentes a evitar o corte) que fere a dignidade da pessoa humana, o direito à saúde, o direito à vida.
A dignidade da pessoa humana, o direito à saúde, o direito à vida, são desrespeitados por condutas como a do administrador público que se nega a atender o ofício dando conta da possibilidade de suspensão, ou pela conduta do representante dos órgãos de fiscalização que, eventualmente tomando conhecimento da inadimplência de um importante hospital, não move contra os administradores procedimentos tendentes à responsabilização dos gestores. Repita-se: a suspensão do fornecimento de unidades que prestam serviços essenciais não é realizada indiscriminadamente, nem com irresponsabilidade ou desrespeito da concessionária quanto aos direitos fundamentais.
Nada obstante o respeito às teses contrárias, uma interpretação conforme a Constituição não afastaria a legitimidade da suspensão do fornecimento de energia, ainda que a unidades ligadas a serviços essenciais.
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1 Curso de Direitos Fundamentais. São Paulo: Atlas, 2008. Pág. 368
2 Curso de Direito Constitucional. 14ª ed. São Paulo: Atlas, 2003. Pág. 61
3 16ª ed. São Paulo: Malheiros, 2014. Pág. 161
4 ARAGÃO. Alexandre Santos de. Serviços Públicos e Direito do Consumidor: Possibilidades e Limites da Aplicação do CDC, in Elena Landau (Coord.) - Regulação Jurídica do Setor Elétrico, Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2006. Pág. 180
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*Umberto Lucas de Oliveira Filho é advogado do escritório Queiroz Cavalcanti Advocacia - Unidade Bahia. Especialista em Direito Ambiental pela UFBA. Especialista em Direito Processual Civil pela UFPE.