A desnecessária tipificação de um delito de feminicídio
Tipificação do feminicídio resultou de uma importante luta pelos direitos fundamentais das mulheres que, no entanto, desviou-se do caminho que vinha seguindo para enveredar-se por uma trilha tortuosa: a do Direito Penal.
quinta-feira, 3 de março de 2016
Atualizado às 07:37
Neste mês das mulheres as questões de gêneros voltam a estampar os veículos de comunicação e, neste contexto, minhas dúvidas a respeito da tipificação do feminicídio também voltaram a me visitar.
Desde a promulgação da Lei Federal 13.104/15, confesso uma grande dificuldade em concluir se, de fato, a tipificação do feminicídio como delito autônomo1, no Brasil, foi mesmo um passo positivo do legislador brasileiro, diante de tantos argumentos positivos e negativos a respeito.
Hoje, após melhor analisar o tema, parece-me bastante claro que a tipificação do feminicídio resultou de uma importante luta pelos direitos fundamentais das mulheres que, no entanto, desviou-se do caminho que vinha seguindo para enveredar-se por uma trilha tortuosa: a do Direito Penal.
De fato, a partir a década de 70 e, especialmente, durante a década de 90, grupos feministas da América Latina e Central consolidaram-se como movimentos politicamente influentes na luta internacional pelos direitos fundamentais das mulheres, logrando resultados significativos no combate aos alarmantes dados estatísticos de violência e, sobretudo, na garantia dos direitos das mulheres. Talvez o mais emblemático exemplo da atrocidade da violência contra a mulher no contexto das Américas sejam os casos de desaparecimento e mortes violentas, praticadas com requintes de crueldade, contra centenas de mulheres em Ciudad Juarez, Chihuauha, no México2. Exatamente em razão do contexto regional do problema, justificado por razões econômicas, sociais e políticas muito específicas, os países latino-americanos e da América Central acabaram por se tornar os Estados que mais avançaram na criação de mecanismos sócio jurídicos e legislativos para combater a violência contra a mulher3.
Até hoje, a mais importante concretização dos esforços destas organizações foi a Convenção de Belém do Pará ("Convenção Interamericana para prevenir, sancionar e erradicar a violência contra a mulher"), firmada em 9 de junho de 1994, justamente em solo brasileiro. Por este instrumento, os Estados Partes comprometeram-se a adotar medidas de cumprimento progressivo, dentre elas, prevenir, investigar e sancionar a violência contra a mulheres, incluindo em suas legislações internas as normas penais, civis e administrativas necessárias para tais fins.
O Brasil, desde então, vem adotando medidas significativas no combate à violência contra a mulher, mas ainda estava "em dívida" quanto ao compromisso internacional assumido de criminalizar a violência contra a mulher por meio de legislação específica, até, tardiamente, promulgar a Lei Maria da Penha (Lei Federal 11.340/06).4
Parece não haver dúvidas quanto aos resultados positivos concretos resultantes da instalação dos Juizados Especializados em Violência Doméstica e Familiar contra as Mulheres e das medidas protetivas instituídas pela lei - ainda que com inúmeras falhas e dificuldades5. Foi um passo importante e fundamental.
Mas o Brasil foi além e, a exemplo de diversos outros países do continente acabou por tipificar o tipo de feminicídio como uma modalidade de homicídio qualificado.
O fato é que um crime dessa natureza já encontrava suficiente resposta punitiva na nossa legislação. Qualquer homicídio praticado por motivo fútil é um homicídio qualificado (e hediondo) segundo nosso ordenamento. Daí porque não é incomum a afirmação de que a tipificação do feminicídio nas mais diversas legislações tem por trás um viés simbólico, com a finalidade de destacar o desvalor dessa conduta para determinada nação.
Afora o inadmissível manejo da mais grave forma de intervenção estatal para tais fins, o recurso à tipificação penal é desnecessário: o feminicídio como categoria analítica das ciências sociais tem precisamente este papel6.
Ademais, no nosso caso, a situação não é tão simbólica assim.
Na nossa legislação, a figura qualificada de feminicídio trouxe novas causas de aumento (§ 7º, do art. 121, CP) capazes de elevar a pena até 45 (quarenta e cinco) anos - o que não é passível de ocorrer em se tratando de um homicídio qualificado praticado contra vítima do sexo masculino nas mesmas circunstâncias (por exemplo, se for menor de 14 ou maior de 60 anos).
Não bastasse este tratamento desigual, o que constitui motivo suficiente para questionar a constitucionalidade do dispositivo, a própria redação do tipo causa outra sorte de problemas. Pela redação da figura é possível que qualquer homicídio contra vítima mulher venha a ser capitulado nesta categoria, afinal, tanto as "razões da condição de sexo feminino" quanto a ideia de "menosprezo à condição de mulher" não têm maior precisão terminológica7. Também a disposição do inciso I, §2º-A, do CP deve ser interpretada a partir da nota distintiva deste crime, que é a motivação de gênero, e não o simples fato de ser praticado no âmbito doméstico ou familiar contra pessoa do sexo feminino8.
Se se concorda que o que está por trás da incriminação do feminicídio é o efeito simbólico de alcançar o reconhecimento social deste tipo de violência9, seria preferível que o tipo não trouxesse inovações tão severas com relação às penas10. Mesmo porque parece irrecusável que essa disposição somente se justifica a partir de uma clara intenção preventiva do legislador11.
Como reiteradamente se afirma, o conceito de feminicídio estabeleceu-se nas ciências sociais como uma "categoria analítica destinada a desvelar os fatores discriminatórios que determinam a morte violenta das milhares de mulheres em todo o mundo e, ao mesmo tempo, sentar as bases científicas para quantificar estes crimes cuja autêntica dimensão ainda permanece na obscuridade" permitindo, assim, dar-se visibilidade a um fenômeno social camuflado em meio a uma violência supostamente neutra. Daí não decorre, contudo, uma necessidade de criminalização12.
Não penso haver, por todo o dito, qualquer justificativa para recorrer a uma tipificação desta conduta porque (1) é desnecessária, pois já encontra previsão legal com penas consideravelmente severas, além de ser inócua inclusive para meros fins simbólicos; (2) confere tratamento desigual em algumas hipóteses e (3) é capaz de permitir, no cotidiano forense, a capitulação indevida de casos sob a rubrica de feminicídio, corrompendo dados estatísticos importantes - que certamente hão de aumentar - prejudicando a utilidade deste conceito para pautar medidas públicas preventivas fundamentais e muito mais efetivas.
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1 A expressão adotada na rubrica do novo tipo penal não reflete, com rigor técnico, o sentido de crime praticado por motivos de gênero, com bem observado por Luciano Anderson de Souza e Regina Cirino Alves Ferreira em: Feminicídio: primeiras observações. Boletim IBCCRIM, São Paulo, v. 23, n. 269, p.3-4, abr. 2015.
O termo feminicidio designa um conjunto de delitos de lesa humanidade e indica um intuito de destruição do gênero feminino marcado pela impunidade e negligência estatais. Já a expressão femicidio, desde sua origem, procura designar o assassinato de mulheres pelo fato de serem mulheres e teve o mérito de nomear um fenômeno social que ainda permanecia obscuro, dando-lhe visibilidade e condições de classificação, investigação e reconhecimento social. O Brasil, portanto, não contemplou essa discussão ao eleger a expressão feminicidio em detrimento do termo femicidio (mais apropriada). Cf. TOLEDO VÁSQUEZ, Patsilí. Femicidio/Feminicidio. Buenos Aires: Didot, 2.014.
2 A situação de inação do governo Mexicano levou o país a responder perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos pelas omissões em investigações de mulheres mortas. Cf. COPELLO, Patrícia Laurenzo. Hace falta un delito de feminicídio?. Revista de Derecho Penal: Fundación de Cultura Universitária, Montevideo, v. 20, 2ª epoca, dez. 2012, pp. 247-248.
3 Veja-se a respeito dados da Assembleia Parlamentar Euro-Latino-Americana: Feminicídio na União Europeia e América Latina, 17/06/13. Disponível em https://www.europarl.europa.eu. Acesso em 05.01.16.
4 O texto da lei baseou-se precisamente na Convenção de Belém do Pará.
5 Cf. BANDEIRA, Lourdes Maria; ALMEIDA, Tânia Mara Campos de. Vinte anos da Convenção de Belém do Pará e a Lei Maria da Penha. Revista Estudos Feministas, vol. 23, n. 2, p. 501-517, mai/ago. 2015.
6 Cf. DINIZ, Débora; COSTA, Bruna Santos; GUMIERI, Sinara. Nomear feminicídio: conhecer, simbolizar e punir. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 23, n. 114, p.225-239, mai./jun. 2015.
7 Para além da imprecisão terminológica, a questão da prova da situação do inciso II ("menosprezo ou discriminação à condição de mulher") pode ser fonte de problemas, ao contrário de redações como a da da legislação da Nicarágua, por exemplo, que detalha hipóteses em que se considera presente a violência de gênero com referências, inclusive, ao local do crime e aos vestígios deixados na vítima.
8 "Otra ideia plenamente admitida en la teoria e en el ámbito judicial es que el feminicidio no puede definirse sin más como la muerte violenta de una mujer a manos de un hombre. El sexo del autor no marca el límite del concepto porque lo determinante no es quién causa la muerte sino por qué" COPELLO, Patrícia Laurenzo. Hace falta un delito de feminicidio?.... p. 249.
9 Idem, ibidem, p. 255.
10 Como ocorreu com a legislação do Chile, que recorreu à figura do feminicídio com fins declaradamente simbólicos, sem prever agravação alguma da pena em relação a outros tipos penais equivalentes. Cf. COPELLO, Patricia Laurenzo. Apuntes sobre el feminicidio. Revista de Derecho Penal y Criminología: Espanha, Madrid, 3ª epoca, n. 8, jul. 2012, p.136.
11 Que também é reiteradamente criticada como ineficaz: "A única solução para a violência de gênero - igual que para outros conflitos profundos da sociedade - passa por mudanças estruturais na conduta e os valores comunitários que nada têm a ver com o Direito Penal". Idem, ibidem, p. 141. Trad. Livre. No mesmo sentido LEFRANC WEEGAN, Federico; CAMPOS ESPINOSA, Lizbeth Myriam. Acerca del feminicidio. Iter Criminis: Revista de ciencias penales, México, n. 3, , nov./dez. 2011, pp. 52 e ss.
12 No sentido de que a finalidade de identificação do fenômeno social para apurar dados relativos a este tipo criminalidade não impõe necessariamente recorrer a demandas de ampliação de penas ou a novas tipificações penais também se manifestam: DINIZ, Débora; COSTA, Bruna Santos; GUMIERI, Sinara. Nomear feminicídio: conhecer, simbolizar e punir..., p. 238.
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*Tatiana de Oliveira Stoco é advogada criminalista no escritório Joyce Roysen Advogados. Mestre e doutoranda em Direito Penal pela USP.